Por Almir Felitte.
No início do século XX, São Paulo fervia. As lavouras de café produziam como nunca e possibilitavam um grande acúmulo de capital no Estado, logo o excedente de dinheiro passou a financiar o desenvolvimento industrial da cidade paulistana, que se tornaria o coração urbano do Brasil. Socialmente, novas tensões surgiam na estrutura da recém criada República brasileira.
Alguns anos antes, em 1888, a Lei Áurea punha um fim à escravidão no país, sem apresentar qualquer política de reparação ou que ao menos forçasse o novo mercado de trabalho livre e assalariado a absorver a população negra, a quem restou a marginalização social. Antes disso, já estava em vigor uma política racista de embranquecimento da população, a qual encorajava europeus descontentes, sobretudo italianos, a se aventurarem no Brasil sob a promessa de terra e emprego.
Nascia, assim, uma nova classe de camponeses livres e operários urbanos para servir, e ao mesmo tempo antagonizar, os interesses da igualmente nova burguesia financeira e industrial do Brasil, cuja cidade de São Paulo se tornaria seu grande centro. Com uma população enorme de negros marginalizados por uma sociedade branca, uma massa de imigrantes europeus que viram seus sonhos de uma vida nova morrerem no chão sujo de uma fábrica e o espectro marxista e sindical que chegou ao Brasil junto com os navios europeus, era questão de tempo para que as tensões sociais transformassem o país em um barril de pólvora.
Atenta ao ambiente que se formava, a oligarquia paulista passou a aparelhar o Estado a seu favor. Em 1892, São Paulo unificaria suas corporações policiais, formando a Força Policial, a qual Dallari[1] chama de o Pequeno Exército Paulista. Mas somente em 1906 é que aconteceria o primeiro dos dois grandes movimentos de militarização das polícias estaduais. Foi nesse ano que o Estado de São Paulo patrocinou uma missão militar francesa, chefiada pelo Comandante Paul Balagny, a qual deveria treinar, reorganizar e armar a Força Policial Paulista seguindo o modelo militar.
A missão, que a princípio duraria dois anos, acabou ficando no país até 1914. Nesse mesmo período, começavam a se organizar os movimentos do proletariado brasileiro, principalmente em São Paulo, com a eclosão de greves que culminariam na grande manifestação de trabalhadores de 1917. Na ocasião, a capital paulista já contava com um grande aparato militar e a Força Policial cumpriu seu papel de defesa dos interesses da oligarquia ao reprimir duramente os protestos.
A Força Policial militarizada ficaria tão atrelada à função política de reprimir o movimento operário que, em 1926, São Paulo criaria a Guarda Civil para cumprir o papel de policiamento típico da segurança pública.
Anos mais tarde, o país sofreria com um de seus períodos mais nefastos. A promessa de reformas de base do Presidente João Goulart levou as elites brasileiras a uma movimentação que culminaria em um golpe de Estado, em 1964, colocando os militares no poder. A agitação popular contra a ditadura ganharia volume em meados de 1967, com o surgimento de grupos revolucionários armados, e em 1968 com movimentos estudantis que tomaram as ruas.
Mas o governo prontamente respondeu com grande repressão e o AI-5, ato institucional que retirava uma série de direitos da população. É nesse contexto que ocorre o segundo processo de militarização das polícias estaduais. Com o decreto 667/69, Costa e Silva determinava a extinção da Guarda Civil e da Força Policial, que integrariam a recém criada Polícia Militar, modelo que perdura até hoje.
Não há necessidade de se alongar a respeito das atrocidades que tal polícia viria a cometer sob pretextos políticos. O que se quer deixar claro, aqui, é que os dois processos responsáveis pelo militarismo que estrutura as polícias até hoje surgiram como uma resposta a momentos em que o Brasil passava por tensões sociais, manifestações populares e grande organização dos trabalhadores. Foram em momentos de ameaça ao status quo brasileiro que a polícia se militarizou, sempre em atendimento aos interesses de uma elite acuada.
Nem mesmo com a redemocratização esse aparato repressivo foi desfeito. Aliás, a Constituição de 1988, apesar das amplas mudanças, não trouxe inovações na área da segurança pública, mantendo a organização militar da polícia ostensiva, que continuou como força auxiliar do Exército.
As consequências desse continuísmo são claras: entre 2014 e 2015, o país registrou 6.491[2] vítimas da letalidade policial, boa parte tendo a PM paulista como responsável. Uma violência brutal, mas direcionada, já que quase sempre vitimiza pobres, negros e moradores de periferia. Segundo o GEVAC[3], da UFSCar, por exemplo, um negro tem três vezes mais chances de ser morto pela PM de São Paulo do que um branco.
Esses números, aliados aos recentes casos de violência contra manifestações de esquerda desde 2013, demonstram que, se a Polícia Militar trabalhou pela lógica da Doutrina de Segurança Nacional durante a ditadura, sob o pretexto de combater o comunismo, houve apenas uma pequena mudança para os dias de hoje. Atualmente, pode-se dizer que a PM segue a lógica da Doutrina de Segurança Social[4], na qual o inimigo interno não é mais caracterizado simplesmente por sua ideologia, mas por seu endereço, cor de pele ou classe social. Assim, manifestantes, pobres, negros e moradores da periferia sofrem constantemente com a violência policial.
Ao mesmo tempo, policiais são constantemente vítimas do modelo militar que também lhes oprime. Entre 2014 e 2015, foram 680 policiais militares mortos. Além disso, com regimentos internos rígidos, estrutura altamente hierarquizada e uma Justiça Militar que se preocupa mais com a disciplina dos subordinados do que com a violência da instituição, os policiais militares, quase sempre oriundos das camadas mais pobres, tem trabalhos extremamente precarizados. Mas sua capacidade para reivindicar melhorias é enfraquecida, já que seus regimentos preveem uma série de sanções ao policial que se insubordinar, algo que ficou bem claro no Rio de Janeiro e no Espírito Santo no ano passado.
Seja na sua relação com a sociedade civil, seja dentro da própria instituição, certo é que, desde o início do século, a militarização da polícia serviu sempre aos interesses das elites com o objetivo de desmobilizar as minorias e as classes sociais mais pobres. Nesse sentido, defender a desmilitarização da polícia, ao lado da democratização da mídia, é essencial para que a sociedade brasileira possa enfim se organizar. É simplesmente impossível falar em ampla mobilização popular enquanto boa parte dos brasileiros lutam pela sobrevivência diária.
Fonte: Justificando.