Militarização dos abrigos para imigrantes indígenas em Roraima preocupa entidades e organizações da sociedade civil

Indígenas Warao em Pacaraima. Foto: Elaine Moreira
Por J. Rosha, ascom regional Norte I. 

Uma área de aproximadamente dez mil metros quadrados abriga cerca de 700 homens, mulheres e crianças dos povos Warao e E’ñepa na cidade de Boa Vista, a capital de Roraima, no extremo norte do Brasil. São pessoas de distintos clãs, situação que os coloca em permanente tensão, pois, em seu território comum na Venezuela, muito maior que o abrigo de Pintolândia, as diferenças vez por outra afloravam revelando as tensões comuns a qualquer povo.

Na noite do último dia 14 de abril três indígenas foram impedidos de entrar no abrigo. Eles levavam mulheres e crianças e, por estarem embriagados, foram barrados por soldados do Exército Brasileiro que passaram a montar guardar no local há cerca de três meses com o início da “Operação Acolhida”.

A reação dos soldados foi enérgica e desproporcional, chegando a ferir Marcelino Morales, um dos indígenas. Os soldados chamaram a Polícia Militar que chegou a utilizar gás de pimenta contra os indígenas. Na noite seguinte Marcelino, Jose Antonio Perez e Rafael Hernandez, todos do povo Warao, foram expulsos do abrigo. Há mais de um mês ele estão vivendo na Praça Germano Augusto Sampaio, separados de suas esposas e filhos.

O abrigo funciona há dois anos. Antes da Operação Acolhida era gerenciado pela Fraternidade Internacional e pela Secretaria de Estado de Bem estar Social – Setrabes, do Estado de Roraima.

A presença do Exército mudou radicalmente o dia a dia no local. Algumas entidades e organizações da sociedade civil passaram a ser impedidas de entrar. “O Exército tem outra sistemática. Isso dificultou o acesso ao abrigo”, diz Irmã Valdizia Carvalho, da Pastoral dos Migrantes.

Tornou-se difícil também para os indígenas que estão submetidos a uma vigilância extrema e intimidados pela ação de alguns funcionários da Fraternidade Internacional e Setrabes que, sem preparo adequado para tratar com indígenas, especialmente estrangeiros, acabam interferindo de forma negativa nos processos próprios dos Warao, como a escolha de suas lideranças – chamados por eles de “aidamos”.

Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real

A presença dos militares deu uma aparência de maior organização no Abrigo de Pintolândia. Porém, tem outro lado que a sociedade em geral desconhece e que vai de encontro às recomendações do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

Entre os dias 17 e 26 de janeiro, membros do Conselho percorreram   os estados do Pará (Belém e Santarém), Amazonas (Manaus) e Roraima (Boa Vista e Pacaraima) para verificar a situação dos direitos humanos dos imigrantes venezuelanos e elaboraram um relatório da visita com recomendações em vista de violações ali detectadas.

Desarticulação

O relatório produzido pelo CNDH vai ao encontro de sugestões feitas por organizações da sociedade civil divulgada na segunda semana de maio em Nota Pública assinada por entidades e organizações populares. De acordo com os observadores do Conselho, entre os representantes dos três níveis de governo (municipal, estadual e federal), foi constatada “a evidente desarticulação entre eles. O baixo nível de compartilhamento de informações sobre o fluxo migratório, a ausência de diálogo, de apoio técnico, de cooperação e de um trabalho minimamente coordenado”.

Eles destacam ainda que “em todas as reuniões realizadas com agentes governamentais, a missão ouviu acusações recíprocas e negativa de responsabilidades próprias” e conclui de forma incisiva: “salta aos olhos a ausência de vontade de cooperar”.

Sobre a atuação das Forças Armadas, a primeira recomendação da Comissão é dirigida ao Presidente da República, para “reavalie sua decisão pela militarização da resposta humanitária à chegada de venezuelanos, posto que ela vai na contramão do que a Nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/17) e preconiza de substituição do paradigma da segurança nacional pela lógica dos direitos humanos”.  No relatório os membros do CNDH destacam que fogem às competências das Forças Armadas a adoção das medidas de acolhimento adequadas, como “aspectos de documentação, abrigamento e acesso a direitos”.

Nas recomendações às Forças Armadas o CNDH pede que “preste esclarecimento sobre as funções atuais do Exército dentro dos abrigos e que a gestão destes locais seja transferida o quanto antes para órgãos públicos civis responsáveis pela assistência social”.

Abrigo de indígenas venezuelanos da etnia Warao na cidade de Pacaraíma. Local recebeu redários para acomodar as famílias. Foto: Leonardo Medeiros / Conectas Direitos Humanos

O Ministério da Defesa também deverá prestar contas detalhadas sobre alocação e execução orçamentária dos R$ 190 milhões para as ações de acolhimento dos imigrantes. À recomendação da prestação de contas se coloca a crítica pelo fato de que a execução orçamentária será quase integralmente realizada pela Base de Apoio Logístico do Exército no Rio de Janeiro, a mais de quatro mil quilômetros distante dos focos de imigração.

Situação preocupante

A Diocese de Roraima tem acompanhado a situação dos imigrantes indígenas por meio da Pastoral Indigenista. Para o Bispo Dom Mário Antônio da Silva os fatos acontecidos em Boa Vista e Pacaraima levam a concluir que os governos municipal, estadual e federal não possuem uma política de imigração que atenda às necessidades dos contingentes deslocados da Venezuela para território brasileiro.

Dom Mário considera a situação dos imigrantes preocupante devido à ausência também de “estruturas e condições de acolher esses irmãos e irmãs que vem da Venezuela de maneira digna como eles merecem”.

O Bispo de Roraima avalia a questão indígena, no tocante à imigração, como delicada e preocupante pelo fato dos imigrantes do povo Warao terem sido os primeiros a chegar em grande número a Roraima. Ele afere que os indígenas estrangeiros nem sempre são respeitados, pois ainda há muitos resquícios da sociedade local para com os direitos fundamentais desses povos, referindo-se à História recente daquele Estado onde os indígenas foram discriminados e perseguidos por alguns setores da sociedade.

“Embora estejam alojados nos abrigos, os relatos que a gente tem são de nem sempre são respeitados na sua cultura e dignidade. Portanto, falta um tratamento mais humanizado, uma compreensão até mesmo do seu estilo e da sua maneira de vida”, diz Dom Mario Antônio.

O religioso aponta esperanças de que as instituições à frente da gestão do abrigo para imigrantes possam atuar de forma coordenada para quem os refugiados gozem de saúde, segurança e possam, com o tempo, ter trabalho digno. “É preocupante e dói em nossos corações quando os indígenas são maltratados ou tratados com truculência, com autoritarismo dentro das comunidades católicas, dentro dos abrigos e até mesmo nas ruas de nossa cidade”, conclui.

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