Por Camila Rodrigues da Silva. Rosana Baeninger, do Observatório das Migrações em São Paulo, cita a validação de diploma como política social das mais urgentes.
A crise migratória é tema diário do noticiário mundial. Milhares de famílias da África e do Oriente Médio fogem de guerras e perseguições rumo a diversas regiões do mundo, em busca de vidas melhores. No entanto, grande parte dos destinos não conta com políticas públicas para receber e integrar essas pessoas. O Brasil, que também recebe um grande fluxo de latino-americanos, é um desses casos: a lei que rege as migrações internacionais no país até hoje se chama Estatuto do Estrangeiro, baseado na Lei de Segurança Nacional da época da ditadura.
“Do ponto de vista sociológico, o estrangeiro é o outro. Então, estamos dizendo que ele nunca vai ser igual a nós. E as políticas migratórias não podem ser pensadas como questão da segurança nacional”, analisa a demógrafa Rosana Baeninger, professora do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó”, da Universidade Estadual de Campinas (Nepo/Unicamp), e coordenadora do Observatório das Migrações de São Paulo.
Em entrevista ao Brasil de Fato, ela fala da falta de políticas migratórias, que tornam o imigrante dependente de uma rede formada por outros imigrantes já estabelecidos, e comenta os ganhos e limites do projeto de Lei da Migração (PL 2516/2015, atualmente sendo analisado por uma comissão especial na Câmara). “Precisamos quebrar as fronteiras nacionais e pensar como a lei vai dialogar com essa intensa mobilidade de população hoje no mundo, em âmbito internacional. Ainda estamos olhando muito para o nosso território”, critica.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato – Como o Brasil está inserido na crise migratória hoje? Quais são os principais fluxos migratórios para o país e dos brasileiros para fora? O que traz essas pessoas pra cá?
Rosana Baeninger – É preciso entender que a mobilidade do capital leva à mobilidade da força de trabalho. Os principais fluxos para o Brasil, até muito recentemente, eram da América Latina: bolivianos, paraguaios, argentinos e uruguaios. E isso se reconfigura de 2010 pra cá, quando as imigrações haitianas dão um novo contorno, além de pessoas de mais de 120 nacionalidades que estão pedindo refúgio no Brasil.
Quais são?
Desde 2013, o Brasil já tinha um acordo com a Síria para que eles tirassem os vistos lá, antes de vir para cá. Mesmo assim, em torno de 2 mil pessoas precisaram tirar o visto de refugiadas aqui. As nacionalidades são as mais diversas, porque não são só os países africanos. Essa nova onda de crise humanitária está incorporando novos territórios. Temos Bangladesh, Líbano, Cazaquistão e o Nepal, por exemplo.
Nos países de origem, há uma crise humanitária, social e econômica. Nos países de destino, o entendimento de crise vem com a ideia de fronteiras e das restrições à imigração que elas colocam. Então, para entender a migração no século 21, nós temos que entender que não há somente a emigração sul-norte [entre hemisférios], mas também o deslocamento dos periféricos para a periferia.
Isso acontece também com os brasileiros?
Sim. É bom apontar que a periferia do capital internacional também atrai países periféricos. Se vamos ver as solicitações de refúgio feitas no Brasil hoje, vamos ver que não estamos mais lidando com os fluxos históricos, como EUA e Japão, mas países como Portugal e Espanha. Com esse movimento dos periféricos para periferia, outros países com quem tínhamos pouca articulação passam a compor os destinos dos brasileiros.
É preciso entender que essa mobilidade tem a ver com o panorama internacional. Os destinos dos brasileiros hoje, justamente pelas restrições dos países centrais à entrada de imigrantes, começam a se diversificar. Irlanda e Austrália, por exemplo, são destinos que começam com uma corrente de estudantes, mas ampliam seus fluxos imigratórios.
Mas não é só isso. No caso da Irlanda, por exemplo, a entrada de capital internacional para os frigoríficos do Brasil traz também novos imigrantes irlandeses a cidades cujos moradores nunca tinham se deparado com essa possibilidade de ir para a Irlanda. Então, se cria um imaginário social migratório que tem a ver com essa penetração do capital em localidades que não estão somente em regiões metropolitanas.
Nós ainda vamos ter, no caso do Brasil, um fluxo que vai para os Estados Unidos, para a Itália, para o Japão, para Portugal, mas aos poucos vão se ampliando os destinos.
Quais são os principais desafios que os imigrantes encontram quando chegam ao Brasil?
No caso dos refugiados e solicitantes de refúgio, há um tripé de apoio: o Comitê Nacional de Refugiados (Conare), a ACNUR [Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados] e a Igreja Católica, representada principalmente pela Caritas. No caso dos imigrantes que não estão solicitando refúgio, esses imigrantes também têm buscado as pastorais para tentar se inserir na sociedade. Mas isso não é um trabalho contínuo.
Não existe uma política migratória que dê esse reconhecimento ao imigrante. Eles enfrentam uma situação muito penosa de depender de uma rede de imigrantes que, ao mesmo tempo que ajuda, aprisiona. Aprisiona no sentido antropológico de que ele sempre vai dever alguma coisa para quem o recebe. Então, é bastante complicado. Porque essas redes vão tomando cada vez mais o espaço que o Estado não assume. Foi o caso dos haitianos na fronteira: o custo cobrado pela rede migratória para ajudar na travessia era enorme.
Na medida em que o Estado assume a importância de se pensar em políticas migratórias e oferece opções de entrada, é preciso que essas políticas avancem. Porque nós não vamos receber uma grande quantidade de imigrantes como recebemos na virada do século 19 para o 20, mas vamos receber imigrantes de diversificados países, e eles darão uma conotação social bastante importante no contexto nacional.
Hoje quais são as políticas públicas de imigração mais urgentes?
Uma das políticas que teve um impacto muito significativo foi o aumento da concessão de vistos no Haiti, que rompeu com a indústria da imigração na travessia pela fronteira. Para se fazer políticas sociais, é preciso saber de qual fluxo estamos tratando, qual a composição dele e que, não necessariamente, o Brasil é o país de destino final desses imigrantes.
No âmbito dessa mobilidade intensa de capital, esforço e trabalho, o professor Duval Magalhães [da PUC-MG] sempre tem colocado que o Brasil pode passar a ser um país de trânsito migratório. Portanto, as políticas migratórias não podem ser pensadas como questão da segurança nacional, mas como etapa de um projeto migratório que não necessariamente tem a ver com o Brasil. Pode ter a ver com outros espaços do mundo. Então, acho que o aumento do número de vistos já diminuiu a entrada na fronteira e já rompeu com aquela rede que se aproveitava desse fluxo migratório.
Internamente, em relação à recepção dos imigrantes, que outras políticas públicas faltam?
Uma das questões importantes é o reconhecimento do diploma. Alguns deles têm curso superior, mas não têm esse reconhecimento aqui. É preciso pensar uma política para dar possibilidade de os imigrantes, refugiados principalmente, validar seus diplomas. De outro lado, é importante pensar em políticas públicas em escolas para essa população, particularmente para a segunda geração que nasce e transita pelo país.
O que muda do Estatuto do Estrangeiro para o projeto de Lei da Migração que está em tramitação?
Do ponto de vista sociológico, o estrangeiro é o outro. Então, estamos dizendo que ele nunca vai ser igual a nós. O estatuto é de 1980, portanto, da era da ditadura, baseado na Lei de Segurança Nacional e na possibilidade de que somente migrantes altamente qualificados poderiam residir no país.
A Lei da Migração já tem um nome que denota outro instrumento. Estamos assumindo que existe a possibilidade de migração para o país, e isso eu vejo como bastante positivo. Mas ainda há algumas questões que precisam de maiores discussões, particularmente porque [mesmo a nova lei] ainda tem bastante enfoque na segurança nacional – como as categorias que classificam os imigrantes como temporários ou permanentes. Acho que é um debate que ainda precisa avançar. A Lei de Migração é importante, porque já é uma contraproposta do Estatuto do Estrangeiro. Mas, de outro lado, a lei precisa caminhar um pouco mais para decidirmos como vamos receber esses imigrantes.
O projeto de Lei de Migração [como está hoje] denota que o Brasil é o país de destino final desse imigrante. Nós temos que olhar mais a frente e pensar que não necessariamente será assim. Precisamos quebrar as fronteiras nacionais e pensar como a Lei vai dialogar com essa intensa mobilidade de população hoje no mundo, em âmbito internacional.
Nós ainda estamos olhando muito para o nosso território, e a questão das fronteiras é pouco discutida. Precisamos mudar as coisas para que os imigrantes tenham a proteção, a acolhida e o reconhecimento de sua importância no cenário nacional.
Sobre a recepção e a integração dos imigrantes, como a nova lei melhora a situação de hoje?
Na verdade, esqueci de falar da política de trabalho, porque a questão do mercado de trabalho é fundamental. Não existem políticas migratórias para absorvermos essa mão de obra imigrante sem que ela seja usada para abaixar os salários. Essa lei precisa ser mais debatida para que se possa dar condições ideais para o imigrante que quer se inserir no mercado de trabalho.
Na minha opinião, a única maneira de a sociedade receber bem esse imigrante é transpor seu estereótipo. A visão da sociedade brasileira sobre o imigrante é aquela do início do século 20, europeu, branco, que foi a migração considerada ideal pela sociedade brasileira. E não é esse o imigrante que tem chegado hoje. Para que os novos imigrantes, que são negros e descendentes de indígenas, possam se inserir na sociedade, é preciso que haja avanços nas políticas sociais. Para isso, a [formulação] Lei de Migração precisa ter mais diálogo com os próprios imigrantes.
A forma como a Lei de Migração vem sendo encaminhada não resolve esse problema?
Ela avança no sentido de enxergar o fenômeno, mas corre o risco de engessar algumas situações que hoje são muito mais flexíveis. Por exemplo: hoje os vistos de trabalho são dados pelo Conselho Nacional de Imigração, que é do Ministério de Trabalho. Qualquer visto de trabalho passa por lá, assim como o visto humanitário dos refugiados.
Na medida em que a Lei de Migração passa pelo Ministério da Justiça, ela pode engessar muito mais essas situações que o Conselho Nacional de Migração, que tem sido mais próximo de efetuar uma política, como foi no caso dos haitianos, que já ganharam carteira de trabalho. A transferência dessa lei para o Ministério da Justiça, porque nessa proposta o Conselho Nacional de Migração, algumas situações que nós temos conseguido resolver podem ficar engessadas, justamente porque estão com pouco diálogo com as políticas sociais.
Ainda vai levar muito tempo pro PL 2516 ser aprovado, não?
Talvez essa trajetória não seja curta, mas o que nos da esperança é que a municipalidade tem feito diversas ações para que esses imigrantes tenham maior inserção e integração. Por outro lado, não podemos esquecer que os imigrantes também são elementos de transformações e mudanças sociais. No caso de Santa Catarina, as associações de haitianos que se multiplicaram no estado denotam a capacidade de organização que eles têm, e isso é importante, porque essa demanda faz com que se crie políticas. A demanda acaba trazendo políticas sociais locais. Municípios de Santa Catarina têm feito isso, municípios de São Paulo, como Campinas, têm feito ações locais, e eu acho que elas são absolutamente importantes para esse caminhar de transformação da sociedade em seu conjunto com diferentes atores, não só com a Lei de Migração.
Foto: Reprodução/Brasil de Fato
Fonte: Brasil de Fato