Segundo Renán Vega, professor da Universidade Pedagógica Nacional da Colômbia, há notícias de cerca de 50 unidades estadunidenses, de onde 200 a 300 militares, além de pessoal de 25 agências secretas dos EUA, encabeçadas pela CIA e pelo DEA, operam diariamente e livremente para intervir no país “também em termos econômicos, políticos, sociais e culturais”. “Tudo isso difundido como muito positivo pelos meios de comunicação”, alerta. Doutor em Estudos Políticos pela Universidade Paris VIII, mestre em História e bacharel em Economia pela Universidade Nacional, Renan Vega recorda que “nos últimos 25 anos, a Colômbia foi o terceiro principal país em investimento militar dos Estados Unidos”, tendo implementado “com seus manuais, a lógica contrainsurgente e anticomunista, nos quais ensinam a torturar, matar e desaparecer” com opositores. Pela sua representatividade e conhecimento, o professor integrou a Comissão Histórica do Conflito e suas Vítimas da Mesa de negociação de paz entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-Exército do Povo (FARC-EP). Vega tem mais de 10 livros publicados, entre os quais destacamos: Gente Muy rebelde (4 Tomos); Capitalismo y Despojo; Colômbia e el imperialismo contemporâneo.
Caio Teixeira e Leonardo Wexell Severo I ComunicaSul
LEONARDO – A partir de sua ampla experiência e seus estudos sobre a presença militar dos Estados Unidos em território colombiano, como avalias o seu impacto na soberania, na estabilidade social e na garantia dos direitos humanos e constitucionais do país?
Venho investigando a presença dos Estados Unidos não apenas em termos militares, mas econômicos, políticos, sociais e culturais há muitos anos. Me refiro a meados do século 19, em que tenho estudos sobre o papel dos EUA na separação e independência do Panamá da Colômbia; na sua responsabilidade no Massacre das Bananeiras, em dezembro de 1928 [quando foram assassinados cerca de três mil trabalhadores colombianos da multinacional estadunidense United Fruit Company, segundo o escritor Gabriel García Márquez]; do alinhamento automático aos EUA quando a Colômbia participou na Guerra da Coréia em meados do século passado e, também, investigações dirigidas a distintos aspectos da presença estadunidense em nosso país nos últimos 50 anos.
Talvez o estudo mais sistemático que apresentei – e o mais sintético – foi o informe que fiz como parte da Comissão Histórica do Conflito e suas Vítimas da Mesa de membro da negociação de paz entre o governo e as FARC-EP, em que avaliei a presença dos Estados Unidos em múltiplos aspectos ao longo da nossa vida republicana até os dias de hoje.
CAIO- Como funcionam as estruturas operativas, administrativas, das forças militares estadunidenses na Colômbia? Atuam a mando de quem? Qual o papel do governo colombiano na sua atuação? Elas são autônomas? Que tipo de armamentos e equipamentos possuem e que ameaça representam para os demais países da região?
RENAN– Bem, é um assunto muito complexo porque existem duas realidades. Há uma realidade que se faz pública e uma realidade real que é secreta. Então, o que se conhece é pouco, considerando a dura realidade que não se conhece. Entre EUA e Colômbia, existem pactos militares abertos e outros secretos ou pouco conhecidos. Desde meados do século XX estamos falando da presença contínua de praticamente 80 anos durante os quais a Colômbia se converteu no principal aliado dos EUA na região e esse papel se fortaleceu nos últimos 25 anos com a assinatura do chamado “Plano Colômbia”, que foi elaborado diretamente pelos EUA, redigido originalmente em inglês e depois traduzido para o castelhano. Através dele se incrementa a presença direta dos EUA em território colombiano.
Nesses últimos 25 anos, a Colômbia chegou a ser o terceiro país mais importante do mundo em investimento militar estadunidense. No ano de 2009, pouco antes de terminar o segundo governo de Álvaro Uribe, se tornou pública a assinatura do que apareceu para a opinião pública como um tratado vergonhoso para o país e para a América Latina, através do qual se acordava a abertura e instalação de sete bases militares dos EUA em território colombiano. Logo, uma decisão judicial contrária à que se tomou no país deu a impressão de que tais bases não poderiam existir, não poderiam funcionar. Mas no governo de Manuel Santos se optou por outro tipo de política que é permitir a chegada de militares dos EUA que se movem em território colombiano como se estivessem em sua própria casa, sem que fosse necessário assinar acordos aprovados pelo Senado ou por distintas instâncias do Poder Executivo da Colômbia.
Então, quando se diz que os EUA estão presentes com sete bases militares isso não é correto, porque essa presença é muito maior que em apenas sete lugares do território colombiano. Tem-se falado na presença dos EUA em mais de 50 lugares, com mais de 50 unidades militares. Aqui funciona o que alguns estudiosos costumam chamar de “quase bases”. Elas não se apresentam como bases formais, ainda que estas também existam, como lugares de trânsito, como lugares de onde operam distintas forças dos EUA de maneira permanente ou de maneira transitória. Alguns pesquisadores afirmam que, diariamente, pelo território colombiano se movem entre 200 e 300 militares dos EUA partindo da principal base que é a embaixada dos EUA.
Mas como lhes digo, há uma quantidade de pactos secretos que não conhecemos e há aqui a presença de 25 agências secretas dos EUA em território colombiano, entre as quais, evidentemente, as mais conhecidas são a CIA (Central Intelligence Agency) e o DEA (Drug Enforcement Administration), mas há igualmente outra quantidade de agências que se movem aqui livremente sem nenhum tipo de denúncia, sem nenhum tipo de controle. Inclusive, em relação a isso, se apresenta uma imagem positiva pelos meios de informação que mostram essa presença como garantia de segurança no território colombiano. Assim, é muito difícil saber com exatidão, pelo seu caráter secreto. E tenho um dado a adicionar: na Colômbia funciona a embaixada dos EUA na Venezuela! Recordemos que o país vizinho rompeu relações diplomáticas com os Estados Unidos e, logo em seguida, com aprovação do governo colombiano, os EUA reabriram sua embaixada para a Venezuela em Bogotá. E o que isso representa? Uma quantidade de aparatos secretos e nem tão secretos de sabotagem contra o governo venezuelano que operam a partir de Bogotá com toda a impunidade e a partir daqui são planejadas todas as ações contra o governo venezuelano. O caso mais conhecido foi a Operação Gideão, em maio de 2020, quando tentaram desembarcar na Venezuela mercenários estadunidenses preparados no território da Guajira colombiana, com participação direta dos EUA, para assassinar o presidente Nicolás Maduro. [A operação foi desbaratada pelo serviço de inteligência venezuelano e os mercenários mortos ou presos]. Isso mostra a magnitude da presença dos EUA em território colombiano, sem que precise obedecer a qualquer formalidade.
Portanto, é errado dizer que estão presentes apenas em sete lugares, em sete bases, porque estão presentes em muito mais lugares no território colombiano, em zonas estratégicas, sobretudo nas regiões fronteiriças com a Venezuela. Criou-se um dispositivo tenaz para cercar a Venezuela com bases militares que cobrem todo o Caribe a partir do território colombiano. Este é um assunto que precisamos trazer sempre ao tratar deste tema.
LEONARDO – Existem relatos de tortura e ensino de técnicas praticadas contra “forças opositoras”. Esses casos podem ser identificáveis? Eles se relacionam com a doutrina de Segurança Nacional e com a identificação de um suposto “inimigo interior”?
Vou iniciar pelo fim. A Colômbia está apegada à doutrina de segurança interna Estados Unidos desde meados do século 20, e reproduz esta mesma concepção da qual as Forças Armadas têm se nutrido, educado e formado nessa doutrina terrivelmente anticomunista, criada durante o período da Guerra Fria. Tenho uma tese que na Colômbia a Guerra Fria não acabou, e que é um dos poucos países do mundo, e o principal da América Latina, onde não terminou. Sendo assim, o tratamento das questões de segurança na Colômbia se faz a partir de uma concepção contrainsurgente e anticomunista.
E esta lógica foi ensinada por militares estadunidenses com os seus manuais desclassificados [antes com carimbo de reservado, confidencial, secreto e ultrassecreto não poderiam ser consultados], nos quais efetivamente ensinaram a torturar e a matar. E isso está documentado. Sabemos que há exceções, mas esta é a regra.
Sabemos que mais de 50 mil militares e policiais colombianos foram formados na Escola das Américas dos Estados Unidos, na qual se ensina, entre outras práticas, a matar, torturar e desaparecer, e enxergar os que consideram “inimigos internos”, como animais desprezíveis que se têm de matar. Esta é a linguagem que se utiliza nestes centros de treinamento.
Os militares colombianos reproduziram tais ensinamentos de várias maneiras, mas também têm terceirizado este trabalho. Há um setor que está diretamente ligado aos militares, que são os paramilitares.
Há uns 20 anos, quando havia cinco divisões militares no país, foi escrito um documento chamado “A Sexta Divisão”, que eram os paramilitares, ligados ao Exército colombiano. Qual a particularidade desta Sexta Divisão? Que são as próteses do Exército colombiano, patrocinados, financiados, formados e respaldados pelos Estados Unidos, que tem executado todo tipo de atrocidades que as Forças Armadas, abertamente, não podem realizar legalmente. Então os paramilitares se encarregam de cometer esses crimes.
Matam e executam de forma colossal, torturam, decapitam, destroçam com motosserra e jogam as cabeças dos opositores para os crocodilos, inclusive queimando-os vivos em crematórios no estilo nazi. Tudo isso tem sido visto no país nos últimos 30 anos. Em todas estas práticas criminosas encontra-se presente de forma muito direta o Exército colombiano e as Forças Armadas [integrada pela Polícia],
Vou dar um exemplo: há poucos dias foi noticiada a extradição do chefe do Clã do Golfo, Dairo Otoniel Uzuga, conhecido como Otoniel. O fato é que Otoniel participou de um massacre tristemente célebre na Colômbia, que vai cumprir 25 anos, realizado em julho de 1997. O Massacre de Mapiripán foi a execução a sangue frio, com procedimentos sádicos, de agricultores de um povoado que fica nas planícies orientais do país.
Como foi realizado este massacre? Em aviões do Exército colombiano foram transportados paramilitares que se encontravam do outro lado do país, em Antióquia. Foram levados até o local do massacre onde estavam sendo realizadas neste momento operações conjuntas entre boinas verdes dos Estados Unidos e do Exército colombiano. O fato é que foi por aí que passaram os paramilitares responsáveis pelo massacre.
Um pouco antes de ser extraditado, Otoniel recordou este massacre dando os nomes completos dos militares colombianos que participaram da empreitada. Temos assim a mesma conjunção de forças: paramilitares, Exército colombiano e forças dos EUA que estavam implementando cursos de capacitação para matar guerrilheiros, e o que mataram foram “guerrilheiros-civis”, como eles chamam, “cúmplices dos terroristas”, como dizem na linguagem atual.
Esses militares que se aliaram com os paramilitares, e que possibilitaram o massacre, disseram que foi dada uma lição aos guerrilheiros. E qual foi essa lição? Decapitar, torturar, massacrar crianças, mulheres, idosos e jovens. Mais de 60 colombianos foram assassinados ali, com a cumplicidade e a participação direta de paramilitares e do Exército colombiano. E o batalhão do Exército colombiano que recepcionou os paramilitares estava sendo formado doutrinariamente por boinas verdes dos EUA. Este é um exemplo muito concreto, um entre muitos. Exemplos como este se repetem com massacres por todo o território colombiano nos últimos 40 anos. Mais recentemente, em março, tivemos o massacre de Putumayo, no qual foram assassinados 11 agricultores colombianos acusados de serem membros da dissidência das FARC. Esse foi o último massacre realizado à luz do dia.
CAIO – O Plano Colômbia foi criado com a desculpa de combater o narcotráfico na Colômbia, mas hoje pode-se ver claramente que mesmo com todo esse operativo militar e de inteligência estadunidense o narcotráfico continua crescendo. Acreditas que o povo colombiano começa a compreender essa farsa e por isso Gustavo Petro lidera as pesquisas para a eleição presidencial do dia 29?
RENAN– Bem, comecemos pelo Plano Colômbia que foi uma quantidade de mentiras e falácias. Sempre se disse, inclusive nos estudos acadêmicos mais renomados que foi um plano contra as drogas, quando na realidade, desde o início, ele foi concebido como um plano contrainsurgente que tinha por objetivo destruir as bases sociais do movimento guerrilheiro que nesse momento era muito forte na Colômbia e que se encontrava sobretudo em território ao sul do nosso país. O Plano Colômbia foi arquitetado para isso. Mas se disfarçou sob a bandeira da luta contra a produção e comercialização de narcóticos. Isso ficou claro quando se repassaram os recursos financeiros e armas para supostamente combater o narcotráfico que, na verdade, foram repassados diretamente para combater o “terrorismo”, a denominação que passou a ser utilizada depois do 11 de setembro e que serviu justamente para tentar confundir a opinião pública.
Na época muitas pessoas, dentre as quais me incluo, denunciaram o verdadeiro caráter do Plano. Os acontecimentos nos deram razão. No final, as Forças Armadas alegaram que foi uma operação vitoriosa, não em termos de narcóticos, mas em termos contrainsurgentes. A tese defendida pelas Forças Armadas colombianas é que o Plano Colômbia obrigou as FARC a sentar na mesa de negociação. Isto é apresentado como uma derrota das FARC diante da autoridade das Forças Armadas. O narcotráfico foi acessório, secundário. O Plano Colômbia militarizou nossa sociedade de maneira impressionante proporcionando um crescimento das Forças Armadas colombianas a níveis impensáveis.
Essas forças contam hoje, incluindo a Polícia que em nosso país é militar, com um contingente de 500 mil membros, constituindo-se em um dos dezesseis maiores exércitos do mundo. Mas não é apenas isso. Ao redor das forças militares existe um poder impressionante a nível social, a nível civil, pois elas possuem emissoras, universidades, hospitais, empresas aéreas, empresas de transporte, bancos. Portanto, são uma força muito poderosa num país que avoca a condição de nunca ter tido ditaduras, embora o poder dos militares seja inimaginável.
Isso vai se manifestar no próximo governo, independente de quem vença a eleição, já se sentem os primeiros sinais de que as Forças Armadas da Colômbia, e seguramente os EUA, não estão satisfeitos com a possibilidade de vitória de Gustavo Petro. Já começaram a dar mostras dessa inconformidade inclusive espalhando rumores de que vai haver um golpe de Estado através do não reconhecimento do resultado das eleições. Isto é muito possível na Colômbia porque aqui as fraudes eleitorais são “o pão de cada dia”. Haver fraude nessas eleições nem seria novidade. Seria novidade não haver fraudes. O bando que chegou à presidência em 2018 só chegou por meio de fraude eleitoral.
A fraude eleitoral não é apenas possível como tal, mas também pelo não-reconhecimento do resultado das eleições caso vença Gustavo Petro. Assim como por todas as forças que se movem por detrás para pressionar e para chantagear e que estão se movendo neste momento e que são as Forças Armadas. O seu comandante, Eduardo Zapateiro, manifestando-se politicamente, algo que está proibido pela Constituição, tem dito que não reconheceria uma vitória de Petro e que havia muitos “sapateiros” dispostos a se opor a que um ex-guerrilheiro chegue à presidência. Que não estão dispostos a aceitar que se toque em nada da estrutura desigual da sociedade colombiana. Este é o panorama do momento, falando de maneira franca e direta.
LEONARDO – Dentro do Plano Colômbia há muitos exemplos de atrocidades. Gostarias que falasse das execuções dos milhares de civis como se fossem guerrilheiros, os chamados falsos positivos?
Isso de “falsos positivos” é um eufemismo, uma mentira, são assassinatos de Estado. Muito menos foram execuções extrajudiciais, um termo equivocado porque não há pena de morte no país. São crimes de Estado. São antigos no país, não começaram com o Plano Colômbia, é uma velha prática do Exército colombiano. Mas ganharam força e se generalizaram nos dois governos de Uribe, sob a lógica de que a guerra vai sendo ganha com litros de sangue do adversário.
Então era preciso que se apresentasse muito sangue do inimigo. E o que fizeram? Muitos colombianos foram disfarçados de guerrilheiros, inclusive pessoas com doenças mentais e deficiências físicas foram massacradas. A cifra não se sabe com exatidão, a Jurisdição Especial para a Paz fala em 6.500 mortos, mas na realidade podem superar a 12 ou 15 mil. As mortes se generalizaram para dizer que o Estado colombiano estava ganhando a guerra contra o movimento guerrilheiro, especialmente contra as FARC. Os assassinatos se generalizaram.
Isso foi apresentado como algo muito positivo perante a opinião pública, que inicialmente aceitou a ideia, mas agora está vindo à tona uma crítica a esses crimes, embora sem chegar até os altos responsáveis. E quem são esses altos responsáveis? Os presidentes da República, vários, iniciando por Álvaro Uribe (2002-2010), mas também por Juan Manuel Santos (2010-2018) e atualmente por Ivan Duque. Ou seja, quase todos os presidentes dos últimos 50 ou 60 anos são responsáveis por esses assassinatos de Estado. Mas foram estabelecidos números limitantes para que sejam julgados esses responsáveis diretos. Dessa maneira parece não haver Justiça que os condene, mesmo existindo a documentação necessária para que isso aconteça.