Por Salah H Khaled Jr.
O processo penal contemporâneo é uma máquina pulsante de ódio. Geneticamente projetado para a destruição de inimigos eleitos, sua arquitetura nefasta foi capaz de permanecer praticamente intacta por milhares de anos: as reformas realizadas ao longo dos últimos séculos pouco fizeram para colocar em questão a estrutura do edifício. [i]. São simples benfeitorias que agregam valor ao espetáculo de sangramento do outro que é o ritual processual penal. Como é notório, ele impõe sofrimento em si mesmo. [ii] Projetado para a distribuição de dor, seu sentido muitas vezes consiste na mera confirmação de uma hipótese persecutória previamente acordada entre o acusador e um juiz que também se comporta como se acusador fosse. A sobreposição de papéis e indistinção de funções é um traço marcante de seu amálgama autoritário. [iii]
Certamente tudo isso soa bastante familiar para quem conhece as mazelas do processo penal de perto. O império do processo penal do inimigo permanece inabalável: a revolução constitucional geralmente não o alcança. Seu núcleo autoritário demonstra extraordinária resiliência. Blindadas contra oxigenação democrática e conduzidas por magistrados travestidos de vingadores sociais, as práticas punitivas contemporâneas encheriam de orgulho figuras do passado como Eymerich, Kramer, Sprenger, Napoleão e Manzini. [iv] Eles e muitos outros são responsáveis por um legado autoritário que ainda nos acompanha: uma doutrina de ódio processual capacitada para o extermínio ritual de indesejáveis.
Durante muito tempo a doutrina brasileira deu as costas para a história do processo penal. Simplesmente fez de conta que ela não existia, apesar de tomar emprestados conceitos impregnados de significação fascista. Mas os conceitos também têm uma história. São necessariamente produto de circunstâncias temporais e espaciais, exteriorização narrativa de convicções de pessoas que inevitavelmente são seres-no-mundo e, logo, reféns de sua própria história, que sempre conforma o limite do pensável.
Logicamente a história não explica tudo. Apontar continuidades autoritárias não significa dizer que tudo permanece como um dia foi, o que seria visivelmente anacrônico. O passado não é simplesmente algo passível de apropriação pelo presente. Não é argila que pode ser moldada conforme a vontade de uma criança que brinca despreocupadamente. Ele está consolidado para sempre. Nada pode fazer com que aquilo que foi deixe de ter sido, assim como nada pode fazer com que volte a ser novamente.
No entanto, isso não impede que o passado venha a ser objeto de disputa de significado no presente. O espectro amaldiçoado do revisionismo histórico sempre pode ser invocado para tentar redimir o irredimível. Em outras palavras, assim como existem aqueles que se dedicam ao empreendimento espúrio de negação do Holocausto, existem aqueles que procuram reabilitar as práticas punitivas da Inquisição. Como se óculos cor-de-rosa pudessem retratar de forma não sangrenta o suplício que ceifou as vidas de centenas de milhares de pessoas. A barbárie da Inquisição é fartamente documentada e consolidada na historiografia contemporânea. Seu histórico de violência não pode ser negado através de meros ornamentos argumentativos. Como parece óbvio, a simples compilação de legislação do final do medievo e da Idade Moderna não é um meio adequado de conhecimento das práticas punitivas do período: a realidade não pode ser conhecida através de dispositivos legais.
Permita que eu ilustre de forma simples o argumento. Vamos supor que uma grande catástrofe faça terra arrasada do que hoje relutantemente chamamos de civilização. Cerca de oitocentos anos depois, um exemplar da CF/88 é encontrado acidentalmente. Ele retrataria de forma adequada o Brasil que vivemos hoje, mofado por ares repletos de ódio punitivista? Parece óbvio que não. Quem dera fosse assim. Não precisaríamos lamentar as violações de direitos fundamentais que são cada vez mais banalizadas e naturalizadas como meros artefatos indesejáveis na paisagem. O descompasso entre lei e realidade é da ordem das coisas. Quem iguala ser e dever-ser de forma tão imprudente projeta sua cegueira normativa sobre um passado banhado de sangue que é irredimível por definição.
Como eu dizia, por muito tempo a doutrina brasileira bebeu exclusivamente nessa fonte. Cresceu e se fortaleceu com uma dieta de ódio. Muitos autores assumiram abertamente a missão de reprodução ideológica e dogmática da cartilha delineada pelo Código de Processo Penal do Estado Novo de Vargas. Uma leitura atenta demonstra que a Exposição de motivos de Francisco Campos reflete de forma cristalina um programa político-criminal persecutório, estruturado em torno dos postulados definidos séculos antes por Eymerich no Manual dos Inquisidores. O CPP efetivamente recepciona o sistema “misto” instalado em 1808 na França por Napoleão para promover a desejável restauração inquisitória, retomando o espírito autoritário das antigas Ordenações Criminais do século XVII. Ele somente é um “terceiro” sistema no nome. [v] De fato, ele não foi introduzido no Brasil com a intenção de combater bruxas e heresias, propósito para o qual o Malleus Maleficarum foi concebido no final do século XV. Os inimigos eleitos foram outros: os opositores da ditadura vigente, que foram perseguidos de forma implacável por um regime que não hesitou em enviar uma judia comunista grávida – Olga, esposa de Prestes – para a Alemanha nazista: o pedido de extradição foi feito pelo governo nazista e aceito pelo Supremo Tribunal Federal. O próprio Getúlio Vargas e o ministro da Justiça, Vicente Rao, assinaram o ato de expulsão. Olga foi executada em uma câmara de gás do campo de extermínio de Bernburg. O questionamento é inevitável: que espécie de Código de Processo Penal poderia ter sido gestado por um regime de exceção como o de Vargas?
Seriam necessárias milhares de páginas para transcrever as barbáries perpetradas pelo Estado Novo contra os vulneráveis naquele contexto político de inspiração fascista. O legado desse aparato jurídico de extermínio permanece assombrando as práticas punitivas contemporâneas e a própria academia. A paleodogmática brasileira jamais mostrou qualquer restrição ou desconforto ao citar Manzini, arquiteto processual do fascismo italiano que tinha ideias bastante esdrúxulas sobre a presunção de inocência e que permanece de forma velada servindo de inspiração para juristas decididamente avessos ao devido processo legal. Para ele, no processo penal a primazia é da verdade real, de forma que o juiz tem o poder e o dever de convencer-se livremente, ou seja, de obter o conhecimento do fato que melhor corresponda à realidade do mesmo: não está obrigado a fundar sua decisão no que lhe apresenta o Ministério Público e o imputado; tem a faculdade de ordenar e cumprir por própria iniciativa – de ofício – as investigações que considerar úteis para descobrir a verdade real. [vi] Segundo Manzini, é equivocado dizer que as normas processuais penais são voltadas para a tutela da inocência, considerando que a inocência deve ser presumida enquanto a sentença condenatória não transitar em julgado; para o autor a presunção de inocência não pode ser sustentada na ideia de que a obrigação de provar cabe ao acusador, pois a prova de delinquência pode ser obtida por iniciativa do juiz e a acusação já está provada em si mesma pelos indícios que a fundamentaram. [vii]
Não são poucos os autores brasileiros que ainda compactuam com essas premissas e municiam práticas antidemocráticas com dogmática processual penal de colorido fascista.
Sim, meus amigos e amigas. Não é alarmismo. As labaredas da Inquisição permanecem acesas. Suas chamas infernais ainda são alimentadas com os corpos objetificados de acusados, apesar da instituição em si mesma ter sido abolida na primeira metade do século XIX. Oitocentos anos depois, o espírito do IV Concílio de Latrão ainda sobrevive. A história das práticas punitivas na Europa Continental conheceu um único intervalo não inquisitorial, que coincide com a derrocada do Império Romano. Preservada por séculos a fio pela Igreja – única instituição romana que sobreviveu ao ocaso de Roma – a epistemologia inquisitória ainda reina na Europa Continental e na América Latina, que recepcionou essa devastadora tradição.
A suposição de que a barbárie foi erradicada com o progresso promovido pela modernidade é um devaneio digno da predileção pela abstração em detrimento da realidade. O engenho inquisitório foi revigorado com a chegada da filosofia da consciência e a convicção de que o método seria o caminho para a extração da essência do real, ou seja, para a revelação da verdade. Apesar da frágil sustentação epistemológica, não são poucos os que ainda subscrevem a tais crenças e com base nelas constroem inúmeros artifícios ardilosos para a consecução do tão desejável esforço de busca da verdade, cujo sentido consiste na confirmação de uma imagem previamente eleita de culpabilidade. O malabarismo processual atinge o nirvana com a resignação do processo penal à condição de apêndice do processo civil: uma Cinderela que jamais desfrutou de suas próprias roupas, como bem observou Carnelutti.
Dessa herança de ódio decorrem infinitos problemas, como por exemplo: o desamor pelo contraditório, a inversão do ônus da prova, a flexibilidade da forma e a consequente minimização das nulidades, o primado das hipóteses sobre os fatos, a interferência do magistrado na gestão da prova, um insaciável apetite cautelar e a ambição de verdade que rotineiramente mata o in dubio pro reo. [viii] A lista é meramente exemplificativa: a versão completa seria incompatível com uma coluna de pequenas dimensões.
O fascismo processual que nos foi legado pela história que brevemente referi anestesia a capacidade de pensar. É uma serpente que coloniza o hospedeiro e faz dele refém de um dogmatismo grosseiro, que incapacita o ser humano para a experiência enriquecedora que é o diálogo, ou seja, o encontro com o outro. É preciso vomitar essa serpente. [ix] Ela degrada a dignidade de seus próprios devotos. Degenera sua capacidade de compreensão e faz com que não percebam o quanto é violenta a conivência com táticas ritualizadas de extermínio.
A tradição acusatória e democrática é estruturada de forma radicalmente distinta desde as suas bases. Não deposita crença desmedida nas capacidades de acusadores e magistrados; preocupa-se fundamentalmente com a possibilidade de resistência do acusado e incisivamente visa coibir a proliferação de indevidos espaços de subjetividade dados a fazer do processo um jogo de cartas marcadas. Para a consecução dessa finalidade, favorece espaços dialógicos e restringe a possibilidade de que o processo não seja mais que um monólogo: vale acima de tudo o contraditório e constrangimento do caráter alucinatório da evidência. [x]
É preciso ser claro para evitar eventuais incompreensões: não recorro ao passado como forma de afrontar inimigos. Não considero que os eventuais adeptos de uma dogmática que degenerou em dogmatismo sejam inimigos. Eu não tenho inimigos, ou pelo menos não considero ninguém como inimigo. Posso ter adversários acadêmicos e políticos, mas não inimigos. Discuto ideias que merecem problematização, já que capacitam o processo para a destruição. Não ataco pessoas. O texto deve ser compreendido como provocação acadêmica: gesto de escrita que visa colocar em xeque ideias assentadas no senso comum fascista em questão. O problema é a falta de diálogo. O fascista é refratário a ele: o ódio o impede de ver, ouvir e sentir. Rejeitar o diferente faz parte de seu modo de ser. Eis o desafio: como conversar com um fascista que se tornou refém de suas próprias convicções e não é capaz de perceber isso? [xi]
Viver também é deixar morrer. O monumento processual inquisitório de verniz fascista deve ser destruído e o entulho prontamente removido em nome da consolidação da democracia. O mundo será muito melhor quando todos perceberem que uma epistemologia processual fundada no ódio deve ser abandonada. É uma herança maldita. Quando isso acontecer, as serpentes que defendem o arcaísmo como projeto lamentarão a derrocada do processo penal de extermínio. Eu certamente não estarei entre elas. Somente as viúvas do fascismo poderão extrair alguma satisfação de um cortejo fúnebre tão sinistro.
Bom fim de semana e até a próxima sexta!
P.S.: O STF foi chamado a defender a democracia na última quarta-feira. A resposta? “Me ne frego”, lema fascista que significa “não me importa”. Com essa decisão, a presunção de culpabilidade praticamente foi oficializada pelo Supremo Tribunal Federal. Está autorizada e legitimada a prisão a partir da decisão de segunda instância. O Brasil é um país ainda mais autoritário com essa surpreendente reviravolta de posicionamento. Não é dizer pouco. Lamento pelo Estado Democrático de Direito. O fascismo avança a cada dia. Perdemos a noção de limite. O STF acaba de reafirmar o legado autoritário do processo penal, não demonstrando o menor pudor em aniquilar direito fundamental sob a alegação de “estar ouvindo a sociedade”. O desprezo pela presunção de inocência é semelhante ao de Manzini. Mais um capítulo da trágica história que relatei foi escrito. Temo pelos próximos episódios, como devem temer todos que amam a democracia. O fascismo insiste em nos roubar a esperança. E sem ela é difícil (sobre)viver.
Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.REFERÊNCIAS
[i] KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.
[ii] CARNELUTTI, Francesco. Las miserias del proceso penal. México: Cajica, 1965.
[iii] Ver MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O papel do juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (coord.) Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
[iv] Ver MANZINI, Vicenzo. Tratado de derecho procesal penal: tomo I. Buenos Aires: EJEA, 1951. Ver EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993. Ver Code d’Instruction Criminalle francês de 1808. Ver KRAMER, Heinrich. SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1993.
[v] Ver MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O papel do juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (coord.) Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
[vi] MANZINI, Vicenzo. Tratado de derecho procesal penal: tomo I. Buenos Aires: EJEA, 1951. p.262.
[vii] O Código Rocco de 1930 inspirou-se na doutrina de Manzini e não consagrou a presunção de inocência, de forma condizente com a anatomia política fascista existente no período. Percebe-se daí o absurdo de fazer deste autor uma orientação dogmática, como se as categorias processuais por ele delineadas pudessem estar desvinculadas de seu projeto político-criminal.
[viii] Por todos: LOPES JR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2016.
[ix] Ver a introdução de Rubens Casara em TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2014.
[x] Ver CUNHA MARTINS, Rui. O ponto cego do direito: the brazilian lessons. São Paulo: Atlas,2013.
[xi] Ver TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2014.
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Fonte: Justificando.