Quando o avião aterrissou no Aeroporto Internacional Ben Gurion, pertinho de Tel Aviv, às quatro horas da manhã daquela quinta-feira Santa, 28 de março de 2002, eu não tinha ideia, e nem poderia ter, da dimensão e da gravidade dos fatos que iria testemunhar.
Não foi pouca coisa. Para ser sincero, foi assustador: Presenciei o início de uma grande operação militar, vi o assassinato de uma senhora a poucos metros de distância, acompanhei um enterro coletivo e, de dentro de uma kombi palestina, fui perseguido por um tanque israelense.
Não era para fazer este tipo de coisa que eu tinha escolhido jornalismo? Bom, não exatamente, mas aquilo me parecia menos monótono do que ser recepcionista de hotel, meu trabalho anterior. Menos monótono e um pouquinho mais tenso.
Fui para Israel como repórter da Caros Amigos, revista fundada pelo inesquecível Sérgio de Souza (1934-2008). A pauta inicial – radicalmente modificada no decorrer da viagem – previa, entre outras coisas, um pequeno relato sobre grupos europeus que, aos montes, chegam à “Terra Santa” para prestar apoio ao povo palestino. Para tanto, viajei com o Ya Basta!, grupo italiano engajado em campanhas de defesa dos direitos humanos, em lugares onde estes direitos insistem em não existir.
Um dia antes da nossa chegada, um atentado cometido por um homem-bomba palestino havia deixado 21 mortos e 140 feridos numa cidade balneária de Israel. As vítimas estavam celebrando a Pessach, a Páscoa hebraica, evento que marca o fim da escravidão sob o domínio dos faraós.
Pouco antes do atentado, o então presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Yasser Arafat, em discurso pela tevê, desejara à população de Israel “uma Páscoa de paz, do mesmo modo que gostaria de celebrar com os palestinos a liberdade”. Palavras ao vento. Foi o mais grave atentado da Nova Intifada.
“Você é o jornalista latino-americano?” perguntou-me um sujeito alto e de voz grossa. Era um dos líderes do Ya Basta!. Sem que eu demonstrasse interesse, ele disparou um discurso – e eu era a plateia.
Estávamos no saguão do aeroporto, na fila para os temidos interrogatórios da imigração. Havia a preocupação de que o grupo fosse impedido de entrar no país por ter uma posição clara em defesa dos palestinos. Se isso acontecesse, seriamos mandados de volta no primeiro voo disponível.
O líder ativista iniciou seu discurso: “Estamos aqui para denunciar ao mundo a ocupação israelense em terras palestinas, usurpadas em 1967. É uma ocupação ilegal e imoral, sob todos os pontos de vista”. Com o canto dos olhos, percebi um militar israelense nos observando.
Quanto mais nos aproximávamos das cabines de controle de passaporte, mais ele aumentava o tom da voz. Sem saber o que fazer, eu sorri para o militante, para ver se ele se acalmava um pouco e diminuía o tom da indignação, e depois sorri para o soldado israelense, como que dizendo “não tenho nada com isso, nem conheço este cara”. Imparcialidade jornalística, como se ensina nas escolas de jornalismo, é a alma do negócio.
Fui o primeiro da fila a enfrentar a funcionária militar da imigração. Imaginei uma mulher com cabelos raspados, o queixo quadrado e olhar tão árido como o deserto de Negev. Mas ela não era assim. Tinha o rosto redondo, olhos bons, e sem aquele uniforme, talvez fosse até bonita. Mesmo assim ou por isso mesmo, pressenti o que iria acontecer.
“Nunca confie numa mulher bonita de uniforme”, alertou-me, um pouco antes de morrer, meu querido bisavô Córis, navegador por vocação, cantor nas horas vagas e mulherengo em tempo integral. Ele não gostava de guerras, nem de uniformes, mas sabia reconhecer um mar furioso e uma mulher perigosa.
A mulher perigosa, ali na minha frente, iria decidir se me deixava ou não entrar em Israel. Seria inútil argumentar que eu estava com os militantes, mas era apenas e exclusivamente um jornalista latino-americano, sem dinheiro no banco, sem contatos importantes…
Eu sabia. Ela iniciaria uma sequência de atos decorados, gestos, pausas e perguntas, uma encenação para que eu me sentisse culpado de alguma coisa, como um criminoso e que, no final das contas, cansado e rendido, confessaria o terrível crime que planejava contra o Estado de Israel.
As perguntas foram inocentes no início. Entretanto, quando eu estava menos tenso e menos inseguro, com os músculos mais relaxados, ela disparou:
– Qual a sua opinião sobre o Estado de Israel?
Como? Será que ela perguntou isso mesmo? Entendi corretamente?
– Minha opinião… bem… hum… essa é a primeira vez que venho.
Olhei para o relógio e tentei um ar mais decidido.
– Acho que a senhora deveria perguntar para quem sai e não para quem entra, certo? Ótimo, eu pensei, boa resposta. Confiança é o melhor cartão de visitas. Mas qual é o limite que separa a confiança da prepotência? A prepotência da agressividade? Tento outra vez.
– Acho Israel um país ótimo, muito civilizado e seguro.
Seguro? Mas que merda estou dizendo?
– O senhor pretende ficar aqui quantos dias?
– Duas semanas, nós vamos para Jerusalém.
– O senhor vai ficar hospedado onde?
Respondi. Ela me olhava diretamente nos olhos, mas era como se não estivesse prestando atenção nas minhas palavras, parecia observar a dilatação da minha pupila porque pupila dilatada, alguém me disse quando criança, é sinal de mentira.
– O senhor está junto com o grupo de italianos?
– Sim.
Resposta curta e direta. Mais cinco pontos. E completei:
– Mas não vou participar de nenhuma manifestação.
Observação cretina.
– Estou com esse grupo de italianos, mas não sou militante, sou jornalista, vim aqui escrever sobre o conflito.
Conflito? Palavra proibida. Menos dez pontos. Xeque-mate, ela havia conseguido. Eu me sentia patético e fraco, com medo de ouvir, simplesmente: “sinto muito, mas seu visto foi negado. Próximo”.
– O senhor, ela falou muito calmamente, espere ali naquele canto, por favor. Próximo.
A mulher adotou o mesmo procedimento para todo o grupo. Não devolveu nenhum passaporte porque “precisava conferir alguns detalhes”. Além disso, pediu muito educadamente, mas sem nenhum sorriso, para que todos tivessem paciência e fizessem silêncio. O tempo foi passando: 6, 7, 8 horas da manhã e nada. Nenhuma explicação pela demora e nenhum sinal dos passaportes. Estranhos procedimentos. Era só o início.
Às 10 horas, o líder do grupo explicou: “Todos os passaportes ganharam o mesmo carimbo: Entrada Negada. Fomos todos expulsos”. Puta merda, pensei, a culpa é minha. “Porém, enquanto eles esperavam o avião que nos levaria de volta à Europa”, ele continuou, “acionamos a embaixada italiana, fizemos pressão diplomática e, no final, as autoridades israelenses recuaram. Agora receberemos outro carimbo, e poderemos entrar”.
Silêncio. Ninguém comemorou, o mau humor já tinha se espalhado, estavam todos cansados demais. Além disso, entrar em Israel, naquele momento, não era motivo de alegria. Dias antes, o intelectual palestino-americano Edward W. Said (1935-2003) havia escrito um perturbador artigo, publicado em vários jornais internacionais, afirmando que aquele era o mais grave momento da história recente da região.
Nos bastidores do poder, as engrenagens da guerra já estavam em movimento e o Exército israelense dava início à Operação Escudo Defensivo, reforçando a análise perspicaz de Said. Por pura sorte, fui o único jornalista brasileiro a testemunhar, in loco, o que aconteceu.
(Continua na próxima terça-feira…)
Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes. Cobriu três guerras no Oriente Médio e conflitos na Europa e América do Sul. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira.
Outros relatos de guerra do autor:
Sem saída em Beirute, Outro Domingo Sangrento, Todos os riscos.