Meu armário de tristeza é uma desordem

Foto: Pexels.com

Por Luciane Recieri, para Desacato.info.

Assim funciona a tristeza, ela encolhe quando alguém nos percebe tristes e indaga sobre, mesmo que não saiba explicar de chofre. Talvez tivesse que colocar a cabeça sobre os joelhos e recitar toda dor de uma vez só, como quando inventei de furar as orelhas, já com 17 anos. Uma rolha de vinho barato e uma agulha torta. Naquele dia decidi que seria bonita de brinco de vidrilho, coisa vulgar, barata, mas havia decidido mudar e usar rímel e batom. Doeu, mas passada a infecção, me senti a coisa mais especial do mundo.

… Não sou do tipo que economiza alegria nem tristeza. Divido, esbanjo as duas. E é pra qualquer um, não escolho com quem vou gastar minha reserva de humanidade. Só que ontem eu não tive tempo de ajuntar as coisas, de organizar. Meu armário de tristeza é uma desordem. Vem tristeza boba que fica importante, vem tristeza importante que cai na desimportância. E se começo a falar, podem pensar que tomei umas, mas não. Sofro de uma lucidez assustadora, principalmente nos momentos de loucura. Então digo: não é nada.

Descobri esta vocação quando era bem pequena: um menino da escola foi atropelado. Todos gritavam. Queria esconder o horror, não podiam sofrer mais. Peguei minha blusa e cobri seu rosto. Ajoelhei e pousei as mãos. Acabara ali a menina que fui. Quando chegou um homem e jogou minha blusa na calçada e cobriu o menino com jornal eu já tinha 50 anos.

Hoje? Não é nada. Alguém me perguntou sobre. Estendida a tristeza, parecia uma imensidão, mas foi dizer não é nada, ela encolheu tanto e me deixou espaço. À noite subirá, ocupará um espaço maior aqui, mas, quem sabe haverá alma boa o suficiente que me indagará? Não é nada. Ela encolhe.

 


Luciane Recieri é cientista social e escritora, em Jacareí /SP

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