Meu amigo e o veado

lucc3adlio-de-albuquerque-mc3a3e-preta-1912-ost-180x130-mbas-bahiaPor  Leonardo Soares dos Santos.

Eu adoro conversar com meu amigo da direita. Juro.

Sempre aprendo muito – de como é bom e saudável odiar a espécie humana, de preferência aqueles de cor “mais escurinhas” (esse meu amigo fala desse jeito) e que teimam em falar framengo.

Conversar com ele nunca é um simples bate-papo, recheado de amenidades (tipo: “vc viu? Agora teremos Xuxa contra Xatanás!”; “como podem terem sequestrado aquela ovelha filha da Leci Brandão e irmã gêmea do John Lennon?”).

Não, mais do que recreio, os conceitos operados pelo amigo da direita racista, xenófoba, homofóbica permite desvendar os dilemas morais da sociedade, de maneira muito mais efetiva do que as críticas sociais sofisticadas.

Eu não trocaria meu amigo por nenhum livro do Sartre, Bertrand Russell ou Raymond Aron. Mas de jeito nenhum!

Melhor ainda se esse papo se dá lá pelas 11 ou meio-dia; com 5 minutos, a instrutiva resenha te abre o apetite: sou capaz de comer um veado inteiro, aquele mesmo veado do Roberto Da Matta.*

De tão bom resolvi compartilhar um pouco com terceiros. Não o gosto pelo veado do Da Matta, mas pelo papo.

Bem, por onde eu começo? Puxa, que difícil. Só rola tópicos interessantes em nossas tertúlias: o que fazer com os “drogados”, a arte de “chegar dando tiro na favela” ou “saudades do governo militar” (não resisti, citei só para deixar vocês com água na boca).

Melhor, vamos começar com o tema mais explosivo para o meu dileto confrade: “cota para vagabundos”.

Esse é o assunto que o faz simplesmente babar: “as pessoas só pensam nos pretos, nos pretos; mas tem o branco, o índio, o japonês e o oriental”.

Mas pergunto se essa raiva contra as cotas não guarda um certo racismo. Ele segue o trabalho de esclarecimento:

Veja, isso não tem nada a ver com racismo. Não sou racista. Mamãe já teve varias empregadas negras. Elas sempre me pegavam no colo. Uma delas era a minha “mãe preta”. Elas me serviam sempre com muito gosto, sorrindo de orelha a orelha, com as canjicas de fora. Mas eram mulheres honradas, decentes. Incapaz de um “ai”, não tinha esse mimimi dessa nossa modernidade.
Eu chegava a brincar com os filhos delas. Adorava brincar de cavalinho com eles. Mesmo quando eu exagerava nos cascudos, eles se comportavam bem, apesar da origem (todos vinham da favela). E nunca roubaram nada lá em casa. Um negócio surpreendente, mas é a pura verdade. E sempre foram tratados como iguais, pois sabiam que eramos como uma família. Tanto assim, que ás vezes, minha mãe atrasava por dois, três meses o salário, e elas – nem tchum! Nem ligavam, continuavam trabalhando sem reclamar – eram extremamente profissionais! Se precisassem chegar mais tarde em casa, por ter que cuidar de mim enquanto meus pais davam uma esticada no restaurante ou no cinema (ou os dois), eram com elas mesmas. Tudo sem chiar, na maior boa vontade. Como trabalhavam aquelas condenadas.

Ás vezes rolava umas ofensas – de minha parte inclusive, umas cantadas do meu pai, uma mão boba aqui, outra ali, aquilo na mão, você sabe, essas coisas de homem – e elas sabiam que tudo fazia parte. Não tinha essas frescuras antigamente, esse negócio de feminismo e coisa e tal – tudo conversa fiada. Hoje, se você chamar uma gostosa dessas, de saia curtinha, vestidinho apertado de boazuda, tá arriscado a ser preso – eu também não concordo com essa ditadura. Mas voltando: acho que no fundo elas gostavam, as empregadas. Isso pra você ver o quanto a gente gostava dessa gente. Coisa de carinho mesmo.

Mas eu acredito que não podemos misturar as coisas. Meu pai – que inclusive teve um avô preto, que ele nunca lembra o nome – já dizia, cada “macaco no seu galho”.

Veja, eu não sou contra esse povo.  Mas acho que eles não nasceram para isso.  Por que essa coisa de eles entrarem na Universidade sem estudar. Não, tá errado. Tem que ter mérito.

E isso, eles tem para outras coisas: samba, futebol, funk. Acho que eles têm que desenvolver o que Deus deu a eles. Eles têm gingado, tem molejo, sabem requebrar, rebolam pra diabo! Essa que é a verdade.

Agora é isso. Eles já não fazem nada, vivem bebendo, vagabundeando, fumando o que não presta e fazendo filho. Agora, querer fazer faculdade com o meu dinheiro, e sem esforço, aí não. E tirando vaga de quem merece. Ah não. Vai trabalhar vagabundo!

Se tão tudo aí sem emprego decente e sem estudo é porque não se esforçam. A preguiça não deixa.

E essas cotas vão acabar criando o racismo. E nós nunca tivemos isso. Sempre vivemos misturados. Jogava com um monte deles na praia. Sempre dava uma gorjetinha para os garis na véspera de Natal. Sempre dou bom dia para o pessoal da limpeza lá do meu prédio. Eles são pobres e até feios – mas dignos, honestos. Trabalhadores. Nunca levantaram a voz. Sempre na deles. Que é assim que deve ser.

Na boa, nem preciso dizer o que o meu amigo disse pra mim sobre o que ele acha da Silvia Pilz. Ou preciso?

O certo é que depois de tanto ouvir, até eu tive vontade de comer o veado do Da Matta. E meu amigo também.

* Em sua crônica do Estadão do dia (“Quando comi um veado”: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,quando-comi-um-veado-imp-,1629296), o antropólogo e anti-petista Roberto Da Matta narra como comeu um veado em suas andanças para analisar os Apinayé. O veado acabou lhe custando um molar da arcada esquerda inferior. Só isso?

 Leonardo Soares dos Santos é historiador.

Imagem: Pintura de  Lucílio de Albuquerque. Mãe Preta. Óleo s/ Tela, 1912.

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