Mesmo sob pressão de policiais e fazendeiros, indígenas Guarani e Kaiowá resistem e retomam seus territórios ancestrais

A retirada de pauta do julgamento do RE 1.017.365 está entre as principais motivações das retomadas no estado de Mato Grosso do Sul; indígenas são alvos de disparos de armas de fogo

O território Kurupi, no município de Naviraí, é alvo de ataques de policiais, fazendeiros e seus aliados em Mato Grosso do Sul. Foto: Arquivo Cimi

Por Marina Oliveira, Assessoria de Comunicação do Cimi.

Logo após o injusto e brutal assassinato de Alex Recarte Vasques Lopes, jovem de 18 anos que saiu para buscar lenha nas redondezas da Terra Indígena (TI) Taquaperi e não retornou mais, os Guarani Kaiowá intensificaram uma onda de retomadas em Mato Grosso do Sul – estado tomado pelas espinhosas cercas do agronegócio. A morte de Alex foi no dia 21 de maio deste ano e, mesmo após um mês, a resistência dos Guarani e Kaiowá pulsa sobre as terras ancestrais desses povos.

Além disso, outra forte situação que motivou os Guarani e Kaiowá a se movimentar para reconquistar os seus territórios foi a retirada de pauta do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que seria retomado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 23 de junho deste ano.

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Jopara – Coronel Sapucaia

A primeira retomada mais recente foi na madrugada do dia 22 de maio, um dia após a morte de Alex: o povo Guarani e Kaiowá retomou uma fazenda no município de Coronel Sapucaia (MS), na fronteira com o Paraguai, a partir de TI Taquaperi – onde Alex vivia.

Mas, na manhã do mesmo dia, os indígenas já receberam a primeira intimidação: o acesso à retomada – denominada de Tekoha Jopara – foi impedido por um bloqueio realizado por viaturas do Departamento de Operações de Fronteiras (DOF). A barreira foi posicionada na rodovia MS-286, que atravessa a TI Taquaperi e também dá acesso a outras comunidades indígenas da região.

De acordo com informações recebidas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), os indígenas continuam acampados na retomada Jopara, sendo rondados por advogados de ruralistas e pessoas ligadas a sindicatos rurais. Por isso, os Guarani e Kaiowá temem enfrentar ações de reintegração de posse.

“Os Guarani e Kaiowá temem enfrentar ações de reintegração de posse”

Após o brutal assassinato de Alex Lopes, de 18 anos, a comunidade da reserva indígena Taquaperi decidiu retomar a fazenda onde o jovem teria sido morto. Lideranças cobram investigação federal do caso. Foto: comunidade Taquaperi

Após o brutal assassinato de Alex Lopes, de 18 anos, a comunidade da reserva indígena Taquaperi decidiu retomar a fazenda onde o jovem teria sido morto. Lideranças cobram investigação federal do caso. Foto: comunidade Taquaperi

Guapo’y – Amambai

Apesar do medo e da apreensão pairarem no ar, o território de Guapo’y, em Amambai (MS), segue em pé, resistindo até mesmo às armas letais da Polícia Militar (PM). A retomada do território também foi uma resposta imediata ao assassinato de Alex.

Desde que chegaram ao local, os indígenas sofrem, diariamente, constantes ataques realizados por policiais, fazendeiros e jagunços. Na manhã do dia 24 de junho, logo após os indígenas chegarem à Sede da fazenda construída sobre Guapo’y, os invasores entraram na área com intuito de expulsar, por meio do uso da força, os indígenas – mesmo não havendo ordem judicial. O caso ficou conhecido como o ‘Massacre de Guapo’y’.

“Desde que chegaram ao local, os indígenas sofrem, diariamente, constantes ataques realizados por policiais, fazendeiros e jagunços”

Enterro Vitor Guarani Kaiowa, em Guapoy, Amambai (MS) – Foto povos Guarani Kaiowa – 27 de junho de 2022

Esse episódio ficou marcado pela morte de Vitor Fernandes Guarani Kaiowá, de 42 anos, assassinado a sangue frio e em plena luz do dia por agentes da polícia. Além de Vitor, dezenas de pessoas ficaram feridas devido aos disparos de arma de fogo e de bala de borracha – lançados pelos invasores contra os indígenas.

A reserva de Amambai é a segunda maior do estado de Mato Grosso do Sul em termos populacionais, com quase 10 mil indígenas. Para os Guarani e Kaiowá, Guapo’y é parte de um território tradicional que lhes foi roubado – quando houve a subtração de parte da reserva de Amambai. Os indígenas ainda clamam por atenção e exigem proteção às suas vidas e aos seus direitos.

Agora, os indígenas aguardam audiência para que os equipamentos e pertences do fazendeiro sejam retirados do local. Apesar da resiliência, há preocupação com novos ataques.

Comoção – despedida de Vitor

No dia 27 de junho, cerca de 2 mil pessoas marcharam e acompanharam o enterro de Vitor Fernandes Guarani e Kaiowá, momento marcado por muita comoção e revolta. Por meio de vídeos e fotos, é possível ver bandeiras e faixas pedindo “Justiça” e a demarcação imediata dos territórios Guarani e Kaiowá.

A marcha ocorreu após a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF) realizarem um acordo com o fazendeiro que ocupa, atualmente, a área da retomada dos Guarani Kaiowá.

O acordo estabelecido era de que o enterro em cova seja feito até 15 metros da cerca – uma forma de evitar um novo episódio de violência policial e permitindo, assim, que amigos e parentes de Vitor possam visitar o túmulo.

Kurupi – Naviraí

Ao mesmo tempo em que ocorria o ‘Massacre de Guapo’y’, o território Kurupi, em Naviraí, também no estado de Mato Grosso do Sul, era cercado por fazendeiros, policiais militares e seus aliados. Os ataques já completam mais de uma semana e, mesmo assim, os agressores seguem empoderados, agindo com truculência contra os indígenas.

De acordo com lideranças que estão dentro do território, os policiais militares construíram uma base de operações – de onde realizam constantes disparos de arma de fogo contra os indígenas. Esses ataques escancaram que, no estado de Mato Grosso do Sul, as forças de segurança têm agido organicamente e de maneira ilegal na defesa de interesses privados.

Acampados há pelo menos duas décadas às margens da BR-163, cerca de 28 famílias Guarani e Kaiowá, do território Kurupi/Santiago Kue, estão sob a mira de policiais, fazendeiros e jagunços há mais de sete dias.

Foi na noite do dia 23 de junho deste ano que os indígenas decidiram retomar parte de seu território ancestral, localizado no macro território Dourados-Amambai Pegua II, em Naviraí (MS). Os indígenas chegaram a ocupar a Sede da Fazenda Tejuí, uma das que incide sobre as terras Guarani e Kaiowá.

Os indígenas contam, ao Cimi, que a motivação da retomada ocorreu em razão das diversas ameaças que os indígenas voltaram a sofrer por parte dos fazendeiros da região. E, ao mesmo tempo, por medo de as demarcações sofrerem retrocessos perante o atual cenário político, ainda mais após a retirada de pauta do julgamento do RE 1.017.365 – julgamento que definirá as demarcações dos territórios indígenas de todo o país.

“Os indígenas contam que a motivação da retomada ocorreu em razão das diversas ameaças que os indígenas voltaram a sofrer por parte dos fazendeiros da região e ao adiamento do RE. 1.017.365”

Guarani e Kaiowá em manifestação em Brasília. Fotos: Laila Mendes e Egon Heck/Cimi

Guarani e Kaiowá em manifestação em Brasília. Fotos: Laila Mendes e Egon Heck/Cimi

Desde que voltaram a ocupar o território, os Guarani e Kaiowá estão sofrendo diversas ameaças e ataques. Na manhã do dia 1 de julho, caminhonetes, com homens fortemente armados, voltaram às redondezas da retomada para efetuar disparos de armas letais contra os indígenas. Até o momento, não há registro de mortes.

Testemunhas contam também que aviões estão sobrevoando o território, dando rasantes e lançando fogos de artifício – assustando toda a comunidade, principalmente as crianças que estão no local.

Os Kaiowá e Guarani denunciam que, se os invasores conseguirem entrar no acampamento, haverá um conflito inevitável com possibilidades de um novo massacre, como ocorrido em Guapo’y, em Amambai (MS). Pelo histórico de outros ataques em Mato Grosso do Sul, os indígenas temem que os policiais, fazendeiros e seus aliados estejam testando o nível de ação das autoridades, chegando cada dia mais perto da comunidade.

‘Caça-humana’

Na manhã desta sexta-feira (1), a equipe do Cimi recebeu um relato de que os indígenas da retomada de Kurupi, em Naviraí (MS), estão sendo “caçados” por policiais militares.

“A nossa família está sendo ‘caçada’ pelos [policiais] ‘militares’, é uma ‘caça humana’. Querem nos encontrar, nos torturar até a morte. Pisando na cidade, podemos ser pegos e executados. Eles estão procurando a gente por todos os lugares, querem nos matar”, afirma um Guarani e Kaiowá – que não terá a sua identidade revelada por questão de segurança.

Infelizmente, esse relato reforça como os indígenas do estado se sentem – acuados e monitorados constantemente – perante a ação da polícia, de fazendeiros e apoiadores do agronegócio em Mato Grosso do Sul.

Proibido despejo

Nesta semana, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, prorrogou até o dia 31 de outubro de 2022 a suspensão de despejos e desocupações, em razão da pandemia de Covid-19. A medida poderá resguardar os indígenas que fazem parte das retomadas até – pelo menos – o prazo estabelecido por Barroso.

Em maio de 2020, a Corte também determinou a suspensão de todos os processos que tratem do tema e que possam resultar na anulação de demarcações ou no despejo de comunidades indígenas.

A decisão do ministro Edson Fachin é válida até o fim da pandemia de Covid-19 ou até o término do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 – caso ele ainda não tenha sido concluído quando a crise sanitária for considerada encerrada.

Apesar disso, as medidas estão sendo burladas e desrespeitadas por juízes e forças de segurança.

Cimi acompanha e se solidariza

Além de se solidarizar com os Guarani e Kaiowá, o Cimi segue acompanhando todos os casos mencionados nesta matéria e pede, com urgência, o envolvimento de órgãos competentes, a fim de controlar a situação e investigar a sequência de episódios violentos contra os indígenas no estado de Mato Grosso do Sul.

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