Mesmo sem lei, Escola sem Partido se espalha pelo país e já afeta rotina nas salas de aula

Foto: Lula Marques

André* pede um expresso médio. “Puro, por favor.”

Quando o garçom vai embora, ele continua a conversa, apertando os olhos castanhos sob as sobrancelhas grossas. Filósofos como Schopenhauer, Maquiavel e Gramsci são citados para embasar seus argumentos.

“Schopenhauer diz que, quando uma pessoa te ofende, é porque ela não sabe te rebater. Ela quer desqualificar seu argumento desqualificando você”, ele explica, dando um gole no café.

O assunto é Escola Sem Partido. André é um apoiador do movimento contra a “doutrinação ideológica”. Segundo o grupo, cujas ideias estão entre as propostas do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) para a Educação, professores se aproveitariam da “audiência cativa” dos estudantes para aliciá-los para uma corrente ideológica – quase sempre de esquerda.

A reportagem é de Ingrid Fagundez, publicada por BBC News Brasil, 05-11-2018.

Os mesmos princípios estão em um projeto de lei que deve ser votado nesta semana em comissão especial da Câmara. A proposta estabelece que cada sala de aula deverá ter um cartaz especificando os deveres dos docentes, como “não cooptar os alunos para nenhuma corrente política, ideológica ou partidária”.

“Enfim”, André dá de ombros, balançando os fones de ouvido ao redor do pescoço. “Quando você debate com professores, eles usam as táticas que Schopenhauer explica, apelam para a plateia. Ele não quer te dirigir à verdade. O objetivo é convencer a sala de que você é um aluno arrogante.”

André está no Ensino Médio. Ele tem 16 anos.

Independentemente da aprovação do texto no Congresso, André discute os conceitos do Escola Sem Partido como se eles estivessem valendo. E, de certa forma, eles estão.

Na semana passada, Ana Caroline Campagnolo, deputada estadual eleita pelo PSL em Santa Catarina, postou em suas redes sociais uma mensagem incentivando estudantes a gravar seus professores na segunda pós-eleição e denunciá-los caso suas “manifestações político-partidárias ou ideológicas” humilhassem ou ofendessem “sua liberdade de crença e consciência”.

Na postagem, ela escreveu que “muitos professores doutrinadores” estariam “inconformados e revoltados” com a vitória de Bolsonaro. Na quinta-feira, o juiz Giuliano Ziembowicz, da Vara da Infância e da Juventude de Florianópolis, determinou “a retirada imediata” dessas mensagens das redes da deputada.

Ao longo de um mês, professores, alunos e pais relataram à BBC News Brasil que ações como a sugerida por Campagnolo já acontecem nas salas de aula. Não são sempre casos conhecidos, mas transformações sutis e amplas – brigas, palavras silenciadas, conteúdo suprimido -, que alteram a dinâmica de ensino.

Nesta reportagem, André e outros atores que vivem essas transformações contam como o Escola Sem Partido já é um programa em movimento em colégios do país.

Há alguns meses, em uma turma do oitavo ano, o professor de história Ricardo caminhava por entre as carteiras para checar que tipo de soluções os alunos estavam propondo para o país. Era essa a atividade do dia em uma das escolas privadas em que trabalha. Ele perguntou a uma adolescente qual era sua sugestão. “Matar todos os comunistas”, ela teria respondido.
“Perguntei o que são comunistas, mas ela não sabia, eram os pais que falavam isso. Tinha certeza que, se questionasse algo, seria demitido no dia seguinte. Então não falei nada.”

Os princípios do projeto e do movimento Escola Sem Partido insistem na defesa do direito dos pais sobre o ensino dos filhos, para que eles “recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.

O discurso de que professores devem repassar apenas o conteúdo aprovado pelas famílias é recorrente entre os apoiadores do movimento. Outro ponto forte é o de que deve haver espaço igual para visões opostas sobre todos os temas – em teoria, seria possível criticar, mas também necessário listar as vantagens do capitalismo, por exemplo.

Para o professor da faculdade de educação da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Movimento Educação Democrática, Fernando Penna, é visível que essas ideias já chegaram às escolas.

Ele diz estar numa posição privilegiada para atestar o alcance das regras: percorreu 23 estados brasileiros dando palestras sobre o assunto. Em todos, conta, encontrou professores que, como Rafael, foram pressionados para cumpri-las ou denunciados por não fazê-lo: “é um processo muito difuso”.

A chave para entender o crescimento orgânico do movimento são os projetos de lei que carregam seu nome nas esferas municipais e estaduais. São mais de 150 deles, de acordo com o último levantamento do grupo Professores Contra o Escola Sem Partido, feito em janeiro. E mesmo que apenas 14 tenham sido aprovados em estados como Ceará, Rio de Janeiro e Paraíba, a percepção de que o projeto está valendo teria se espalhado entre os pais. Vários deputados e senadores eleitos neste pleito também defendem essa bandeira.

“Recebemos muitas mensagens na página dizendo ‘isso é lei, vocês não podem fazer reclamar'”, diz a professora Fernanda Moura, membro do grupo.

A capilaridade das propostas também seria explicada pela publicação de vídeos, fotos e textos nas redes sociais. A página do Facebook do Escola Sem Partido tem 192 mil curtidas, mas os registros de professores discutindo com seus alunos sobre política, muitas vezes de forma agressiva, são compartilhados incontáveis vezes pela internet.

As mães entrevistadas disseram receber esse tipo de material pelo WhatsApp.

“Vejo vídeos de professores que não levam para aula um debate saudável, mas sua opinião. Os pais ligaram o alerta”, diz Raphaela, mãe de um menino de 9 anos, que estuda no Rio.

Desde que viu o então deputado federal Jair Bolsonaro postar sobre os abusos docentes, Raphaela tem distribuído links e fotos entre outras mães. “Quem tem que dominar e saber das coisas do filho é a família, sem ficar com essa coisa de sexualidade, de comunismo.”

Fernando Penna, da UFF, considera que essa é uma estratégia do Escola Sem Partido para provocar “pânico moral”. Penna diz que o movimento explora situações que são realmente condenáveis – professores xingando ou constrangendo alunos – para destruir o espaço democrático da escola. Segundo ele, esses excessos são problemáticos e devem ser corrigidos, mas isso não pode acabar com qualquer debate em sala.

“Eles usam casos extremos e dizem que isso está acontecendo em todo Brasil. É criar a doença para vender a cura. Espalham o pânico e aí falam: ‘você está com medo? Podemos resolver isso’.

Fundador do Escola Sem Partido, o advogado Miguel Nagib não quis discutir o tema. Em entrevista à BBC News Brasil em 2016, para uma reportagem sobre bullying político entre crianças, Nagib disse que os seis deveres dos professores estabelecidos pelo movimento apenas propõe “limites éticos e jurídicos da atividade docente”: “sejam quais forem as preferências políticas e ideológicas do professor, ele está legalmente obrigado a respeitar esses limites”.

“Foi André que começou a falar sobre o assunto, por causa dos casos que aconteciam na escola. Aí fui averiguar e vi que os estudantes são humilhados”, diz Juliana, mãe do adolescente.

Ela senta ao lado do filho na padaria de São Paulo em que acontece a entrevista. Quando termina de responder à primeira pergunta – como conheceu o movimento -, passa a palavra a ele. E assim é por boa parte da conversa.

André explica que há dois tipos de doutrinação: quando o professor dá sua opinião sobre algum tópico político, econômico ou do noticiário e quando, sem anúncio, “puxa a sardinha” para teóricos ou versões da história que “prefere”.

O último tipo é o que o jovem considera mais perigoso.

“O aluno que não sabe nada assume que o professor está certo. Não estou falando que precisaria falar de todos os autores de um tema, mas citar que existem outros. Ser sincero, sabe?”, ele balança a cabeça, a xícara na mão. “Mas é muito mau caratismo hoje em dia.”

Juliana franze a testa e concorda: “Demais.”

À direita na página do Escola Sem Partido, os itens do menu aparecem em pequenos ícones de quadro negro. Abaixo de “Deveres do Professor” estão “Flagrando o Doutrinador”, “Planeje sua Denúncia” e “Conselho Aos Pais”.

Ao clicar no último, abre-se uma página com um texto curto, endereçado aos “senhores pais”: “Processem por dano moral as escolas e os professores que transmitirem conteúdos imorais aos seus filhos”.

As reclamações das famílias parecem ser o principal motor de aplicação dos princípios do Escola Sem Partido. É uma técnica eficaz, dizem os professores, porque os fazem temer processos e demissões.

“A pressão é inegável. O professor sabe que vai ser uma dor de cabeça enorme e eles usam o Judiciário como um tipo de ameaça”, diz Fernanda Moura, do grupo de docentes contrários ao movimento.

Em artigo publicado no site do Escola Sem Partido sobre a visita da filósofa americana Judith Butler ao Brasil, em 2015, quando ela participou de um evento sobre questões de gênero, Miguel Nagib escreveu sobre a “ideologia de gênero” na sala de aula. O termo não é reconhecido por estudiosos da área e foi popularizado por segmentos contrários à ideia de que gênero é uma construção social e, portanto, não está restrito ao sexo biológico de uma pessoa.

No texto, Nagib diz que ao tratar seus alunos como “cobaias de teoria de gênero”, os professores estão correndo um risco: “ser réu numa única ação judicial já é motivo de dor de cabeça. Imagine figurar como réu em dezenas de processos ajuizados por dezenas de pais!”.

A deputada Ana Caroline Campagnolo, que incentivou estudantes a denunciaram “doutrinadores”, diz que teve um raciocínio semelhante ao de Nagib ao processar uma de suas professoras.

Antes de se candidatar, Campagnolo, então mestranda, entrou com uma ação contra a professora da Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc) Marlene de Fáveri. Ela pedia indenização por danos morais em processo por perseguição ideológica.

Segundo a deputada eleita, De Fáveri teria a atacado em sala de aula por suas posições cristãs antifeministas, além de abandonar a orientação de sua dissertação. A docente nega qualquer agressão contra a estudante. Em setembro, a Justiça julgou a ação improcedente por falta de provas.

De Fáveri, por sua vez, protocolou uma queixa-crime contra a ex-mestranda por calúnia e difamação. Ela diz que a denúncia foi aceita pelo juiz no início de outubro e agora espera a decisão. Enquanto isso, conta que segue normalmente com sua vida, dando aulas, palestras e orientando alunos.

“Não mudei ritmo de trabalho porque tenho compromisso com os estudantes e a sociedade. Continuo na defesa dos valores que protejo acirradamente: os direitos humanos, a cidadania e a liberdade de cátedra”, disse a professora, que participa de debates sobre o Escola Sem Partido.

Em entrevista à BBC News Brasil, Campagnolo afirmou que mesmo sem vitória na Justiça, considera que ganhou a disputa. Ela pediu uma indenização de R$ 17,6 mil em seu processo, mas argumenta que os custos de De Fáveri com trâmites judiciais foram muito maiores, o que fizeram a ação “cumprir seu papel pedagógico.”

“Houve um incômodo de dois anos que é impossível mensurar com dinheiro. Meu processo teve uma função pedagógica, porque os professores vão pensar nisso antes de repetir os mesmos erros. Eles devem arcar com as consequências de seus atos ilícitos.”

Neste ano, em um colégio particular de Porto Alegre, pressão semelhante de um grupo de pais levou à demissão de um professor de Português. Uma das mães que participou da ação, Karina, diz que o motivo foi um livro de Antonio Prata, Nu de Botas, indicado como leitura obrigatória para sua filha de 13 anos.

Em uma das crônicas, o escritor conta como durante um passeio ao Pico do Jaraguá, quando criança, suas irmãs viram uma mulher fazendo sexo oral em um homem. Na história, o pai de Prata tenta explicar o episódio, dizendo que a prática era comum entre os casais, inclusive os gays. No texto, o escritor usa as palavras “chupar” e “pinto”.

Karina classifica o livro como “obsceno” e “pornográfico”. “Ele tem cenas bastante chulas. Situações, assim, de homossexualismo, mas de uma maneira grosseira.”

O alerta sobre a crônica de Prata foi dado por WhatsApp, aplicativo no qual todas as famílias daquela sala de sétimo ano se reúnem. Segundo Karina, o primeiro pai escreveu: “vocês estão acompanhando a leitura das crianças?”, o que foi seguido por manifestações de revolta de outros membros.

Nu de Botas foi a gota d’água. Pouco antes, o mesmo professor havia pedido uma redação dando como exemplo um texto que defendia a saída do presidente Michel Temer, escrito por um “jornalista esquerdista”.

“Tudo isso gerou bastante comoção nos pais e muitos ameaçaram fazer boletim de ocorrência. Chegamos na direção e a diretora não sabia de nada. Os professores estavam livres, completamente…”

Após as denúncias, a demissão aconteceu no mesmo dia.

Karina diz que a reação “ainda é tímida”, mas mostra que os pais estão atentos. Apesar de discreto, pondera, o movimento é suficiente para que os professores repensem a escolha do conteúdo e as coordenações, a escolha de seus funcionários.

André acha que seu professor de filosofia fala muito de Karl Marx.

O filósofo e sociólogo alemão concebeu teorias sobre sociedade, economia e política cujo conjunto ficou conhecido como marxismo. Seu pensamento sustenta que as sociedades humanas progridem por meio da luta de classes e que o Estado foi criado para proteger os interesses da classe dominante.

Para André, o professor tem preferência por Marx e dá muito espaço a sua obra, em vez de explorar autores elogiosos ao capitalismo. O aluno defende que Ludwig von Mises, membro da escola austríaca de pensamento econômico, ganhe mais espaço.

Uma das referências teóricas dos movimentos de direita no Brasil, Mises argumentava que o livre mercado era a única política econômica viável e que a intervenção governamental levaria ao socialismo.

Como o professor insistia em se concentrar em Marx, os embates começaram.

“Quase toda aula a gente discute. Ele me respeita, eu respeito ele. Apesar de ele dizer que o autor que ele gosta está certo e dar aula em função disso, quando a gente discute, ele admite algumas coisas”, André diz, levantando as sobrancelhas.

“Então, tipo, tem o professor que faz essas coisas sem perceber, talvez por ter vivido isso nas faculdades. Quando faz sem perceber, tenho amizade. Mas quando o professor faz de propósito, aí começo a olhar com…”

“Você se distancia?”, a reportagem pergunta.

“Não faço questão de ser amigo”, ele dá de ombros.

Os professores entrevistados concordam que este não é o ano mais tenso para a educação. Segundo eles, o de 2016, quando aconteceu o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, ou o seguinte, 2017, foram mais evidentes da polarização política entre os alunos. Hoje as queixas são menos frequentes. Alguns dizem que se adaptaram. Há palavras que tiraram do vocabulário, comportamentos que mudaram.

“Isso foi muito em 2016, quando o PT estava na berlinda. A pressão contra os professores está menos aparente hoje. Então tento fazer relações com a realidade durante a aula, mas de uma forma muito, muito cuidadosa”, diz o professor Ricardo, do Rio de Janeiro.

Há dois anos, ele foi chamado pela coordenação de uma das escolas. Os pais criticavam sua visão de história, que seria muito parcial. “Parece que foi quando você deu revolução cubana”, a coordenadora teria dito.

“Mas eu não tinha nem discutido revolução cubana ainda…não é uma crítica concreta. E tem outra: são 30 alunos na sala. Como vou agradar 30 famílias?”

Rafael diz que não recebeu novas reclamações da direção porque se calou.

Ele acha difícil estabelecer pontes entre eventos passados e o presente e às vezes limita-se a listar as informações sobre um episódio. Relações entre Getúlio Vargas, João Goulart e Lula e o fato de que todos eram socialmente progressistas e foram denunciados por corrupção teriam causado polêmica.

Um aluno começou a gritar que as mulheres de Vargas e Jango não tinham roubado milhões de reais como Dona Marisa.

“No caso da história, é impossível ensinar qualquer coisa sem traçar paralelos com a realidade atual. Mas as comparações estão cada vez mais censuradas, e isso prejudica a qualidade da educação. Ensino uma história sem vida, sem sentido. Parece que estamos nos voltando para pedagogia tradicional, em que o aluno deve decorar as coisas.”

Segundo ele, hoje precisa calcular todas as variáveis de suas ações. “Pausas dramáticas” para dizer que não é necessário gostar do conteúdo dado são necessárias constantemente.

“É o tempo todo tentando convencer que não estou doutrinando ninguém.”

Também do Rio, mas professor de artes cênicas no ensino público, Pedro Bárbara diz que passou a medir seu jeito de pensar, falar e interagir com os alunos. Tudo aconteceu depois de uma reunião de quatro horas com a família de um estudante.

Durante o encontro, pai, mãe e irmã do menino sentaram ao redor dele, que estava acompanhado da diretora, para questionar suas práticas e os nomes usados em seu planejamento (Augusto Boal, Paulo Freire, Conceição Evaristo). A irmã seguia uma lista de perguntas, lendo trechos de suas falas em aula.

“Me deparei com processos que são orientados pelo Escola Sem Partido. Aprendi a identificar os discursos. Entrei no site deles e estudei o texto que fundamenta a ideologia dessa gente.”

Segundo Pedro, semanas antes ele fez um jogo teatral com a turma, no qual os alunos representaram os integrantes de um tribunal. Eles escolheram seus papéis antes de saber quem seria o réu: o discurso de ódio.

A atividade fazia parte de um trabalho maior, que tinha como base o Teatro do Oprimido, método do teatrólogo brasileiro Augusto Boal.

O professor conta que, quando disse as palavras “política” e “julgamento”, um aluno saiu da sala. O pai teria o aconselhado a retirar-se se algumas palavras – também “ideologia” e “gênero” – fossem ditas, independentemente do contexto.
Depois do encontro com a família, que chamou de “interrogatório”, Pedro conta que faltou aulas e fica ansioso antes de entrar na sala do estudante. Ele teme que o aluno esteja gravando ou anotando suas frases.

“Me vi mexendo nos planejamentos, mudando meu jeito de falar, policiando o que digo. Tenho uma língua grande, gosto de fazer provocações para que eles pensem de forma crítica.”

Pedro e Rafael dizem que sua relação com os estudantes está mais distante. Rafael evita fazer piadas ou contar histórias que possam ser gravadas pelos alunos. Quando apontam câmeras para ele, o professor para, sorri e diz que tem vergonha de aparecer. As crianças não têm má intenção, ele pondera. Elas acham graça do causo contado, mas seus pais podem ver aquilo como manipulação.

“Mas às vezes sinto que a gente está nos anos 1970, que tem espião para denunciar o professor pro DOI-CODI.”

Na sala do estudante que teria anotado suas falas, Pedro diz que as aulas estão mais “tecnicistas”. Com frequência ele levava os alunos para museus, exposições, praças da cidade, para falar sobre samba, cultura negra e arte contemporânea, costume que tem diminuído.

“A relação sempre foi divertida, mas não é mais. Continuo apresentando artistas e obras, mas o trabalho está devagar. Faço friamente o que preciso fazer.”

O tom é o mesmo de Rafael, que fala em um suspiro:

“A gente criou uma paranoia tão grande, uma autocensura, que qualquer coisa pode ser motivo para ser ridicularizado ou perder o emprego. Não trabalhamos por hobbie, precisamos levar comida para casa…”

A mãe de André estuda Pedagogia. Ela está terminando o curso, mas se recusou a imprimir a apostila sobre saúde e sexualidade. Ao checar o conteúdo na internet, viu que em uma seção sobre “novas famílias” havia casais gays com crianças. Isso a revoltou.

“Não existe uma família de um homem e uma mulher com filhos”, ela fala com as mãos, amassando o terninho cinza.

“Querem dizer o quê? Que não existe mais. Como não existe? Mesmo porque no dia que parar de existir, o mundo acaba. Porque precisa para a procriação”, sua voz ficando mais fina.

André interrompe a mãe:

“E ela está se formando para ser uma professora! Olha o que estão ensinando…”, ele balança a cabeça.

Juliana retoma a palavra:

“Por isso sou totalmente a favor do Escola Sem Partido. Estão tirando meu direito! A partir do momento que tiram meu direito, o que acontece comigo? Me revolto.”

“E viro revolucionário…”, André completa o jogral familiar, arqueando as sobrancelhas.

O Escola Sem Partido é a cereja do bolo de um amplo processo de transformação do papel da escola, diz a professora da Faculdade de Educação da USP Maria Isabel de Almeida.

Incentivado por interesses de grupos educacionais, e de alcance global, tal processo “de mercantilização da educação” desejaria tornar a escola um lugar de transferência de conhecimento, onde o professor é o fornecedor e o aluno, o cliente, deixando de lado sua função de formação do cidadão.

No Brasil, ela acrescenta, esse processo se aliaria a uma onda conservadora que quer restringir discussões sobre sexualidade, gênero e raça na sala de aula.

“Estamos perdendo há décadas conceitos-chaves do processo educativo, que são substituídos por temas do mundo empresarial. As competências para o trabalho substituem uma formação crítica. Não é à toa que o ESP demoniza Paulo Freire”, diz Almeida, citando o célebre educador brasileiro. Freire criou um pensamento pedagógico assumidamente político. Para ele, o maior objetivo da educação é conscientizar o aluno.

Como outros elementos dessa tendência mercantilista, a professora cita as propostas de reestruturação da educação como a reforma do ensino médio, aprovada em 2017. Sua aplicação depende da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), ainda em elaboração.

Entre as principais mudanças da lei está o maior peso do ensino técnico e profissionalizante.

A reforma foi criticada por não detalhar as matérias das áreas de ciências humanas e sociais. Na versão original da Medida Provisória, apresentada pelo presidente Michel Temer em 2016, apenas matemática e português eram obrigatórias.

Inserido em (e fruto de) um ambiente de reação a mudanças sociais, culturais e políticas, o Escola Sem Partido também é muito influenciado pela religião, afirma o professor da Faculdade de Educação da UFRJ Luiz Antônio Cunha.

Ele diz que, apesar de não defender fé alguma em suas propostas, as inspirações do movimento são de caráter religioso.

Segundo Cunha, o objetivo do ESP seria o mesmo de grupos cristãos: salvar a instituição familiar de um suposto processo de degeneração. Ambos partiriam da mesma concepção, a de que o mundo está se corrompendo, prejudicando a família.

Para provar essa conexão, Cunha argumenta, basta notar que as bancadas católica e evangélica sustentam o movimento nas votações no Congresso.

Em seu raciocínio haveria, sim, posições políticas no Escola Sem Partido.

“A Escola Sem Partido toma partido ao apresentar a teoria da evolução no mesmo plano do criacionismo, como se fossem distintas interpretações da mesma questão. Não são duas possibilidades de interpretação da mesma coisa, portanto toma partido. Da mesma maneira como não tratar 1964 como golpe ou apresentar a atividade missionária no Brasil como evangelização dos índios e não mencionar que foi uma das maiores práticas de etnocídio que tivemos é tomar partido.”

O discurso do ESP, no entanto, é de que o aluno deve ter liberdade de religião e consciência – desde que estas sigam a escolha dos pais. No site do movimento, é citado o quarto ponto do artigo 12 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos:

“Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.”

Apesar de se declarar a favor a liberdade de consciência dos alunos, o fundador do grupo, Miguel Nagib, argumenta que, em sala de aula, não deve haver liberdade de expressão. De nenhum dos lados.

Em entrevista à BBC News Brasil em 2016, ele explicou que, como a presença dos alunos na escola é obrigatória, se qualquer um manifestar sua opinião livremente, os demais serão obrigados a escutá-la. Nesse caso, tal manifestação poderia ofender a liberdade de consciência e crença dos demais.

“Sala de aula não é Facebook, onde cada um fala o que quer, a qualquer hora, sobre qualquer assunto”, ele disse.
Para Nagib, nem os estudantes devem expressar suas opiniões. Caberia ao professor impedir que “este ou aquele aluno” abuse da “audiência cativa” dos colegas para promover suas próprias opiniões políticas, religiosas ou artísticas.

A ideia de escola do advogado é oposta a dos críticos do Escola Sem Partido. Para o professor da Faculdade de Educação da USP Ocimar Munhoz Alavarse, a escola seria “um espaço de proteção contra a vida”, já que ali qualquer tema ou discussão seriam possíveis – um exercício que às vezes o cotidiano adulto não permite.

“A vida é dura, difícil. E as escolas protegem os alunos, inclusive para que critiquem o conhecimento escolar. É o espaço para isso. O conhecimento humano tem essa característica: é sempre passível de questionamento. Absoluta é a religião: Deus existe e pronto. Agora, as outras coisas, não. Essa é a aventura do conhecimento. Alguns paradigmas caem, outros permanecem.”
De acordo com o professor, o ESP não estaria preocupado com a escola brasileira, mas com calar críticas a valores que o movimento defende, como o capitalismo e o modelo tradicional de família.

“Essa legislação joga uma cortina de fumaça sobre os grandes problemas da educação no país: os estruturais, a falta de condições para os servidores trabalharem. Isso desaparece.”

A Constituição de 1988 também é constantemente citada por quem é contrário ao movimento de Nagib. Em seu artigo 206, a Carta Magna garante a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento”, além do “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”.

A mãe de André lembra de uma conhecida da igreja que frequenta. O nome dela é Thayná.

Juliana termina o chá, deixando a marca do batom na xícara, e diz que Thayná sofre muito: a adolescente estuda em escola pública e é hostilizada por causa de sua fé.

“No caso do André, ele está numa escola particular, né”, ela diz, esfregando os dedos polegar e indicador na frente do rosto.

“Jamais o professor vai conseguir fazer isso porque vai ser mandado embora.”

Na escola Antônio Peixoto, em Florianópolis, o cartaz com os seis deveres do professor está pendurado na parede da secretaria. No canto direito inferior, lê-se a fonte em letras pequenas: Escola Sem Partido.

O diretor do colégio, Marcelo Batista de Sousa, também presidente do sindicato das escolas particulares de Santa Catarina, diz que o movimento nada mais fez do que listar “coisas que são óbvias”.

Batista conheceu o grupo de Miguel Nagib há alguns anos, em um evento promovido pela Federação Nacional das Escolas Particulares. Lá, o diretor conta, ele recebeu seu primeiro alerta contra a doutrinação ideológica. Membros do movimento deram seu depoimento, assim como autoproclamadas vítimas de manipulação dos professores.

“De lá para cá, tomei contato com muitas coisas. Tomei conhecimento que o maior proprietário de escolas públicas do país não é o Estado, mas o MST. Isso é um exagero, penso, mas serve para entender que algumas pessoas se consideram donas da verdade.”

Na verdade, não é bem assim. Hoje, há cerca de 1,5 mil escolas públicas instaladas em acampamentos e assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em todo país, mas não são propriedade do MST. Elas estão vinculadas a Estados ou municípios, como as demais escolas da rede pública, e atendem aos assentados, informou a assessoria de imprensa do movimento.

Batista conta, no entanto, que foi a partir de “descobertas” como essa que decidiu implementar as regras do ESP no colégio em 2017. Ele afirma que não levanta a bandeira do movimento, apenas que o usa como fonte de orientações.

Seguindo tais princípios, Batista diz que todos os assuntos são tratados com uma “visão ampla”.

A maioria dos autores usados em sala se refere ao período entre 1964 e 1985 no Brasil como ditadura, mas o diretor cita uma entrevista do escritor e jornalista Fernando Gabeira como um contraponto.

Em 2010, Gabeira disse que, durante o regime militar, grupos armados lutavam para implantar a ditadura do proletariado, não a democracia. Ele participou da luta armada à época e foi preso e exilado.

“Passada a história, a gente olha para trás e vê dois grupos se debatendo. Mas quem vai concluir se é certo ou errado, se deveria ter ganhado um ou outro, é o aluno”, diz Batista.

Para o diretor, os dois lados defenderam ditaduras – um, a militar e o outro, a do proletariado – e ambos torturaram e mataram.
“É questão de ponto de vista. O Pinochet estava errado? Não sei, mas não vou defendê-lo pelo pouco que conheço. Falam mal de Pinochet, e ao mesmo tempo idolatram o regime da Venezuela, os dois dignos da mesma crítica.”

Apesar de defender os Seis Deveres, o diretor afirma que não os impôs aos professores, e que todos concordaram com as novas regras. Não há, segundo ele, pressão sobre os docentes – ninguém foi demitido ou ameaçado, já que todos entenderam as orientações.

Além disso, nenhuma reclamação foi feita pelos pais até agora. Batista não vê por que haveria de recebê-las.

“Quero fazer provocação àqueles que criticam a Escola Sem Partido: tirem os rótulos e vejam se não é aquilo que a gente sempre sonhou.”

Também não há embates na escola de Benjamin Ribeiro da Silva. O presidente do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo diz que, em seu colégio, a “doutrinação ideológica” “não prospera”.

“Se prosperar, vou demitir esse professor. Alguém não pode levar o aluno para onde ele acha certo.”

O presidente do sindicato defende que, em sala, é preciso mostrar todas as faces de uma questão. Ele dá um exemplo: deve-se explicar que a ditadura aconteceu, sim, e apontar seus lados bons e ruins.

Para Silva, o comportamento de “fazer a cabeça do aluno” não acontece na escola privada porque o professor perde o emprego. Já na educação pública, a maioria “faz o que quer”.

É por medo de não ser contratada – ou ser demitida em pouco tempo – que Renata Aquino, membro do Professores Contra o Escola Sem Partido, esconde sua ligação com o grupo. Professora de história, ela está procurando emprego nas escolas privadas do Rio e tirou do currículo, e da primeira página de buscas do Google, qualquer menção a sua militância.

Ela diz que não quer ser vista como “fonte de problemas”.

“O Escola Sem Partido é um projeto em movimento. O professor já é visto como inimigo da família. Nós, que somos recém-formados, temos que ocultar o que pensamos para trabalhar.”

André narra as dificuldades que as brigas entre professores e alunos causam na sala de aula. A reportagem da BBC News Brasil pergunta se há mais tensão por causa delas.

Ele balança a cabeça com vontade, os olhos apertados.

“Fica mais tenso porque eles não recuam, entendeu? Eles não entram na defensiva, entram na ofensiva. Dão respostas arrogantes e só vai perceber quem estudou Schopenhauer.”

O filósofo alemão aparece bastante nas falas do adolescente. Ele diz que conheceu o autor por meio de Olavo de Carvalho, escritor e filósofo conhecido como uma das referências intelectuais da nova direita brasileira.

André leu a edição de uma obra de Schopenhauer comentada por Carvalho: “Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão: em 38 estratagemas”.

“Ele fez uma edição para armar os estudantes a reconhecer essas falácias nos professores e contornar a situação. Hoje em dia, graças ao Olavo, sei reconhecer quando um professor está jogando um argumento ad hominem para mim…”, ele diz, com um sorriso de lado.

O adolescente concorda que transformações já estão acontecendo dentro de sala. Por enquanto, são sutis, diz, e vêm “de baixo para cima”.

Em seu escritório no Centro de São Paulo, em frente a uma foto da praça da República à noite, poucos carros sob as luzes amarelas, Fábio Santos de Moraes, presidente em exercício da Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) repete o verbo “resistir”.

“Tem uma mudança acontecendo, mas implementação oficial não tem. Em toda escola há resistência.”

No início da entrevista, ele lê a mensagem de WhatsApp de uma amiga sobre o caso de uma professora que foi sabatinada por vereadores em sua cidade. É uma das muitas que recebe todos os dias. “Veja só o absurdo…”, ele começa.

“Peço encarecidamente que possamos apoiar à direção da escola e os professores da escola frente a esse retrocesso de censura”, a mensagem continua, os dedos de Fábio escorregando pela tela.

Moraes diz que, para rebater essas ações, o professor deve estar ciente de seus direitos e de todas as legislações das quais o Brasil é signatário – o país assinou todos os acordos internacionais que asseguram de forma direta ou indireta os direitos das mulheres, assim como a eliminação de qualquer forma de discriminação e violência baseada no gênero.

Portanto, ele argumenta, falar sobre esses temas em sala seria algo não apenas natural, mas necessário.

Ele acrescenta que o sindicato pode orientar professores da rede pública em casos de pressão ou ameaça. E assim ajudá-los a “resistir coletivamente”.

“É um desgaste, mas a tendência é fazer enfrentamento.”

“Tudo isso está criando uma barreira enorme entre alunos e professores. Infelizmente, os professores não recuaram, eles insistem em fazer isso. A mudança não foi que ficaram mais pacíficos. Pelo contrário, eles ficaram mais…”

“Agressivos”, completa Juliana.

“Vai ser no grito. Se for necessário, será no grito”, ela continua, enfatizando as palavras.

O raciocínio de André segue a mesma linha da mãe:

“Eles nunca vão largar o osso. E, se necessário for, serão mais ofensivos. Nunca vão recuar. Essa é minha opinião.”

* Foram usados pseudônimos para preservar a identidade dos entrevistados.

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