“Merece uma bala na cara!”: povo Akroá-Gamella, no Piauí, sofre ameaças enquanto defende território e Cerrado

Casos deste ano já superam as violências sofridas pelos Akroá-Gamella do Piauí sistematizadas pelo Relatório Violências Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados 2023

A imagem mostra área de Cerrado destruída parte do território tradicional reivindicado pelo povo Akroá-Gamella do Piauí. Foto: Divulgação/Povo Akroá-Gamella

Por Renato Santana, Assessoria de Comunicaçao do CIMI Regional Nordeste.

Se tornou rotina para lideranças Akroá-Gamella da aldeia Barra do Correntim, município do Bom Jesus, sudoeste do Piauí, registrar boletins de ocorrência denunciando ameaças ocasionadas pelas tentativas de impedir o desmatamento de uma área de Cerrado vital para a existência de um ribeirão que abastece a comunidade. Neste ano, o primeiro conjunto de intimidações foi levado à Polícia Civil em 13 de maio de 2024. Todavia, as ameaças e a destruição ambiental seguiram.

A terra alvo da disputa é reivindicada pelos indígenas e os invasores alegam que ela os pertence. Há suspeitas de grilagem. Ocorre que o ribeirão é fundamental para os indígenas. Sem as águas, a comunidade não sabe como poderá sobreviver no local. No último dia 7 de junho, um novo boletim de ocorrência foi lavrado pelo cacique James Rodrigues dos Santos. “Uma pessoa me avisou. Disse que o Carlão falou que eu merecia uma bala na cara”, conta.

O cacique notificou as autoridades policiais de que esta e outras ameaças partem de Carlos Lunkes Gotz, conhecido na região como Carlão, homem apontado pelos indígenas como o autor das hostilidades e que comanda as ações de desmatamento no território tradicional Akroá-Gamella. A reportagem não conseguiu contato com Gotz pelos meios de comunicação encontrados na internet.

Gotz não é do Piauí, mas de Santa Catarina. De acordo com o cacique, ele teria entrado em terras próximas às reivindicadas pelo povo. Aos poucos, relatam os Akroá-Gamella, avançou as cercas e passou a se dizer proprietário do território ocupado pelos Akroá-Gamella. Logo teve início a depredação ambiental, sendo a mais grave relacionada à intervenção na mata e nas margens do ribeirão que chega aos indígenas.

Em pesquisa no JusBrasil, é possível verificar envolvimento de Gotz em ao menos uma dezena de processos judiciais movidos contra ele por gigantes do agronegócio, como a Monsanto, Bunge Alimentos S/A e a Arysta Lifescience do Brasil Indústria Química e Agropecuária, além de bancos públicos, como a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil. A maior parte corre no Tribunal de Justiça do Piauí, sendo outros em Santa Catarina.

De tratores e denúncias

Conforme lideranças Gamella, “um trator de esteira e dois de pneu” vêm sendo usados para desmatar a área. A denúncia dá conta ainda que o objetivo dos invasores é a construção de uma estrada. “Vem arregaçando tudo e derrubou a cabeceira do riacho. Arrancou os lajedos, as ribanceiras. Moço, tá feio lá. Tá complicado, viu. Vamos ficar embaixo sem água porque o riacho vai secar. Tá acabando mesmo e vamos ficar num mato sem cachorro”, diz uma liderança.

O Relatório Violências Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados 2023, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), relaciona o povo Akroá-Gamella do Piauí em sua sistematização de conflitos possessórios. No caso, a denúncia envolve desmatamento e pressões no território Morro D’Água, em Baixa Grande do Ribeiro, a 582 quilômetros de Teresina. Entre 2022 e 2023, foram desmatados 400 hectares de Cerrado no território tradicional.

Em 2021, o Ministério Público Federal (MPF), a Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública do Estado (DPE) recomendaram a demarcação das terras indígenas Akroá-Gamella. Da mesma forma, o Instituto de Terras do Estado do Piauí (Interpi) foi acionado para tratar dos conflitos fundiários, na medida em que há terras públicas reivindicadas e que poderiam ser cedidas ao povo indígena.

O riacho, na imagem, abastece a aldeia Barra do Correntim. Com a destruição do Cerrado, o riacho está secando. Foto: Divulgação/Povo Akroá-Gamella

Suspeitas de grilagem

A comunidade suspeita de que a origem dos problemas esteja na grilagem de terras. “O sujeito chega devagarinho, vai tomando de conta e começa a vender pedaços de terra. São valentes. Se a polícia não chega para fazer arribar os panos, eles não saem, não. Ameaça a gente. Disse que ia vir gente até do Mato Grosso pra resolver o nosso problema”, declara. Denúncias foram encaminhadas ao Ministério Público Federal (MPF) e demais autoridades públicas.

“O rapaz (Gotz) que vive desmatando as cabeceiras do brejo continua fazendo o serviço. Ele nunca parou. Até agora não sabemos que existe Funai. Sabemos que tem, mas é muito difícil de eles virem aqui. Do meio ambiente também. Não vem, não. Pra cá não tem Estado. A gente sabe pelo nome que existe. Não tem melhora pra cá”, diz. O cacique entende a questão indígena como uma fogueira que a toda hora tentam apagar ou diminuir as labaredas.

Enquanto isso, o povo segue passando por necessidades básicas em um contexto de violência inerente à luta pela terra tradicional, ainda sem procedimento de identificação e delimitação. “Aqui é a ponta de rama. Estado num vem. Esse caba está secando o nosso brejo com o desmatamento que tá fazendo, a gente denuncia e ninguém aparece aqui para dar um jeito. Se fosse um fazendeiro denunciando, eu acho que já teriam achado um jeito de resolver”, ressalta.

Bom Jesus fica mais perto de Fortaleza, a pouco mais de 300 quilômetros de distância da capital cearense, do que em relação a Teresina, capital piauiense, distante quase 500 quilômetros do município onde se encontra a comunidade Akroá-Gamella. Para chegar ao local em que a aldeia está instalada, onde não há energia elétrica, é preciso enfrentar ainda 144 quilômetros de uma estrada não pavimentada – o que dificulta o acesso.

“Então aqui não chega ambulância e se precisarmos de hospital, o jeito é enfrentar esse chão todo de estrada. Temos uma escola, mas que não é indígena. Tem água encanada, mas não tem luz (…) o que nos ajuda mais é esse brejo, que está secando pelo desmatamento da cabeceira. São muitas dificuldades”, aponta o cacique James.

Retomada Vão Seco: reintegração de posse

Os Akroá-Gamella enfrentam dificuldades envolvendo a luta pela terra em outras partes do estado. Uruçuí, outro município localizado na região sudoeste do Piauí, possui, segundo o Censo do IBGE de 2022, 262 pessoas autodeclaradas indígenas e dois povos organizados, os Gueguê e os Akroá-Gamella. De acordo com estudos da historiadora Rebeca Freitas Lopes, pesquisadora da Universidade Estadual do Piauí (Uespi), a região é marcada por conflitos desde a década de 1960.

Em artigo publicado no portal Corre Diário, a historiadora afirma que os povos indígenas de Uruçuí sofreram com deslocamentos forçados, como ocorreu com os Gueguê na década de 1970 e com os Akroá-Gamella nos anos 60, quando foram expulsos de seus territórios por fazendeiros e políticos locais. Em Uruçuí, os Akroá-Gamella retomaram o território chamado de Vão Seco atuando em aliança com os Gueguê para proteger o Cerrado.

Enfrentam a oposição da Prefeitura de Uruçuí, que busca na Justiça uma reintegração de posse e constantemente criminaliza a mobilziação legítima do povo. Recentemente, em 4 de junho deste ano, o prefeito Francisco Wagner Pires Coelho registrou um boletim de ocorrência contra a liderança indígena dos Gueguê, Raimundo Delmiro, acusando-o de violação e depredação do patrimônio público – parte das terras retomadas são públicas.

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