Por Vitor Nuzzi.
Em 1950, aos 15 anos, Mercedes Sosa usou um pseudônimo (Gladys Osorio) para participar de concurso em uma emissora de rádio em San Miguel de Tucumán, uma região agrícola do noroeste argentino. Supera inibições, canta Triste Estoy (de Margarita Palacios), vence o concurso e ganha um contrato de dois meses. Mas ao chegar em casa, seu pai, que não sabia da história, pela primeira vez lhe dá um tapa no rosto. Não quer uma filha artista.
Com habilidade, a mãe da menina, Ema, consegue convencer o marido a autorizar a assinatura do contrato, já que Mercedes é menor de idade. Mas sob a condição que ela continua a estudar. Estava começando a carreira artística daquela que é considerada uma das mais importantes vozes latino-americanas.
Voz poderosa
Por sinal, uma voz realmente forte: ao nascer, às 7h de 9 de julho de 1935, seus berros “podiam ser ouvidos por toda a maternidade”. Mercedes nasceu no dia da independência da Argentina, saudado com tiros de canhão. Ema era lavadeira e Ernesto trabalhava na colheita de cana. Identificavam-se com o peronismo, especialmente com Evita, por sua origem pobre.
Mas os pais discordavam do nome da filha recém-nascida. A mãe preferia Marta. Por sua vez, o pai, que prevaleceu, escolheu Mercedes, nome de sua própria mãe, além de Haydeé, de uma prima próxima. Assim, a criança foi batizada como Haydeé Mercedes Sosa – mas Ema passará a vida chamando-a de Marta.
Perfil pessoal
Essas histórias abrem o livro Mercedes Sosa – Uma lenda, que acaba de ganhar uma versão em português, traduzida por Mariana D’Angelo. A autora da obra, resultado de oito anos de pesquisa, é a professora dinamarquesa, hoje residente na Turquia, Anette Christensen. Na introdução, a escritora afirma não considerar ter escrito “uma biografia completa” da artista argentina: “É mais propriamente um perfil pessoal dela”.
A autora conta ainda que por meio de Mercedes passou a gostar da América do Sul, “e percebi que o continente é muito negligenciado pela mídia fora dos países de língua espanhola”. O livro está disponível na Amazon ou sob encomenda (mybook.to/Sosa-Uma-Lenda). Assista aqui um book trailer. Anette dedica o trabalho a Fabián Matus, filho de Mercedes, às Avós da Praça de Maio e a todos aqueles “que sofrem com o fardo da pobreza, da perseguição, da censura, da tortura e de qualquer forma de injustiça social”.
Mudanças e riscos
Mercedes, a propósito, cresceu em uma região vizinha à Bolívia e sofreu influência indígena, o que ajuda a explicar ter se tornado, também, uma intérprete de músicas folclóricas. Mas as influências foram muitas, como citou, até a Bossa Nova e o “jazz” de Milton Nascimento. “Minha carreira tem sido uma constante busca, não por aplausos, mas uma jornada musical pessoal envolvendo mudanças e riscos”, declarou.
Os leitores brasileiros talvez sintam falta de histórias envolvendo artistas daqui. Como o próprio Milton, por exemplo, com quem Mercedes fez uma gravação sempre lembrada de Volver a los 17, da chilena Violeta Parra. Mas o livro traz depoimentos da cantora Maria Rita, filha de Elis Regina, e do também cantor Fagner, que dividiu o microfone com Mercedes em Años.
Ditadura e ameaças
A face política da obra da artista é bastante explorada no livro. Mercedes teve breve ligação com o Partido Comunista, mas se desfiliou pouco depois – apesar disso, continuou sendo vista como “ameaça comunista”, ainda mais no período da ditadura argentina. “Foi-me atribuído este papel de grande contestadora, mas não é nada disso. Eu sou apenas uma artista pensante. Política sempre foi uma coisa idealista para mim. Eu sou uma mulher de esquerda, mas não pertenço a partido algum, e acho que artistas deveriam manter-se independentes de todo e qualquer partido político. Eu acredito em direitos humanos.”
Mercedes desistiu de um casamento com “um homem rico” para ficar com Manuel Oscar Matus, compositor e violonista, com quem se casou em 1957. No ano seguinte, nasceu Fabián, que seria o único filho da cantora. O casal, como tantos, foi fortemente influenciado pelo movimento conhecido como Nueva Canción, que saiu do Chile e se espalhou pela região, juntando raízes folclóricas e denúncia social.
Esse engajamento torna Mercedes um alvo da ditadura instalada em 1976. Antes de um concerto, ela recebe uma carta assinada pela temida Aliança Anticomunista Argentina, conhecida como Triple A: um ultimato para deixar o país ou “aceitar as consequências”. Ela se apresenta no teatro, em Buenos Aires, e é convencida pelo companheiro, Francisco Pocho Mazzitelli (havia se separado do primeiro marido), também seu empresário, a retornar para casa a pé. São seguidos durante todo o trajeto. “Era uma noite de sábado. Eu nunca vou esquecer. Durante essa caminhada eu aprendi o que é o medo.”
Perdas pessoais
Assim, já no período democrático, documentos mostrarão que seu nome fazia parte de uma lista de pessoas consideradas “perigosas” para o regime autoritário, encerrado formalmente em 1983. “Eu sempre cantei canções sinceras sobre amor, paz e injustiça. Infelizmente algumas pessoas se sentem ameaçadas pela verdade”, dirá Mercedes em outra ocasião.
Com 158 páginas, o livro (editora Tektime) traz também dramas pessoais vividos por ela. Quando engravida pela segunda vez, por exemplo, decide não ter o filho devido às condições difíceis que enfrentava na época. De acordo com a escritora, Mercedes não se arrependeu, mas sempre se sentiu culpada. “Ela embarca então em uma jornada para a vida toda, tornando-se porta-voz dos direitos das mulheres. Em 1995 é homenageada por seu trabalho ao receber o Prêmio UNIFEM das Nações Unidas”, escreve a autora, referindo-se ao Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher.
No início de 1978, dois acontecimentos marcam a vida de Mercedes. Um grande amigo, Jorge Cafrune, que a ajudou no início da carreira, admite publicamente cantar uma música proibida pela ditadura e morre atropelado dias depois. Duas semanas mais tarde, Pocho morre com um tumor cerebral.
Prisão, exílio, solidão
Mercedes chega, inclusive, a ser presa durante um show para estudantes em La Plata. Ela sai da Argentina, passa alguns anos na Europa. Instala-se na Espanha em 1979. “O exílio é um castigo, o pior tipo de castigo. Meu filho me ajudou a vir da França para Madri e me ajudou a comprar a casa. O dia que ele voltou para a Argentina eu fiquei por minha conta, completamente sozinha. O pior tipo de solidão que você possa imaginar.”
Em seu retorno ao país, uma apresentação em Buenos Aires torna-se uma espécie de marco do retorno à democracia. Diante de uma multidão, ela canta uma versão em espanhol de Viola Enluarada (dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, conhecida na voz de Milton), Cuando tenga la tierra (que causara sua prisão anos antes), Todo Cambia (do chileno Julio Numhauser Navarro). Ali foram gravados um disco e um filme, lançados ainda em 1983, com o apropriado nome Como un pájaro libre.
Com os anos, torna-se a “lenda” citada no título. Ou “a voz dos que não têm voz”. La Negra (referência aos cabelos e às origens andinas), como é conhecida, segue lembrada diante das injustiças que ainda atingem cotidianamente a região. Seu último disco, Cantora, foi gravado em 2008, com várias participações especias, inclusive de brasileiros (Caetano Veloso e Daniela Mercury). No ano seguinte, ganha o Grammy Latino (Melhor Álbum Folclórico).
Com vários problemas de saúde, Mercedes partiu às 5h15 de 4 de outubro de 2009, aos 74 anos. O filho Fabián atendeu seu último pedido: suas cinzas foram espalhadas em Tucumán, Mendoza e Buenos Aires. Ele permaneceu à frente da Fundação Mercedes Sosa até morrer, em março de 2019. A neta Araceli assumiu a direção da entidade.