Mentiras e verdades: o encontro inesperado dos irmãos. Por Carlos Weinman.

Imagem: Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

O filósofo Thomas Hobbes afirmava que o ser humano é um ser egoísta, o que não quer dizer que houvesse nas pessoas uma maldade natural, dado que o bem e o mal são conceitos que pressupõe a vida em sociedade, onde existem normas, construídas por convenções. A partir das quais os desejos, as ações e até as inclinações passam ser julgadas sobre o prisma da moral ou dos costumes. Em muitas circunstâncias, os critérios que utilizamos para o julgamento podem estar equivocados, visto que correspondem ao senso moral, vindo através da tradição que não passou necessariamente pelo prisma do exercício do pensamento, podendo reproduzir preconceitos, paradigmas que serviram para um modo de pensar de uma organização social. Dessa forma, os termos bom, mau, bem, mal, belo e feio apenas indicam uma inclinação do nosso espírito decorrente de uma forma convencional de julgar.

Na perspectiva hobbesiana, se considerarmos o ser humano isoladamente, é possível perceber a inclinação em busca da autopreservação, autossatisfação, a busca por posses de bens, por valores sociais e domínio de pessoas, o que costuma ser o motivo de muitos conflitos, colocando a vida das pessoas em perigo. Por consequência, o Estado ou a sociedade Civil aparecem como um mal necessário, não desejável. Segundo o filósofo inglês, o estado tem um objetivo bastante restrito, isto é, garantir a vida e a segurança dos indivíduos, caso não cumpra com essa função não existe o motivo da sua existência, já que o ser humano é movido para obediência pela paixão, pelo medo dos seus semelhantes e por uma razão calculista, que associa meios e fins, caso o fim não seja garantido não existe motivo para a submissão.

Segundo Hobbes, o ser humano socialmente busca maquiar, disfarçar suas inclinações egoístas, por isso surge o termo latino “persona” que indica pessoa ou disfarce. Nesse sentido, os “personas” possuem uma máscara, nunca revelam as suas reais intenções ou interesses, impedindo o conhecimento da veracidade do ser. No cotidiano, muitos abraçam uma determinada causa desde que seja para seu benefício, falam de uma classe, no bem do país, dos menos favorecidos, escondendo as reais motivações. Essas inclinações podem ser percebidas através da linguagem corporal, da expressão facial, verbal. Não obstante, é difícil ter a perspicácia para perceber as sutilezas que podem desvelar o que está escondido no interior da alma ou atrás das máscaras.

A indignação pode promover um processo de desvelamento do que está a espreita, foi justamente isso que ocorreu quando a proprietária do supermercado chamou Deméter. Os três viajantes da ferrugem dos esperançosos mudaram sua face no mesmo instante. Ulisses não suportou e aos gritos foi dizendo:

Você! Você! Como pode ser? Nos enganou, roubou nossos pertences e disse que nossa irmã trabalhava em um supermercado da região e está aqui usando o nome dela!

O ânimo de todos estava alterado, a dona do estabelecimento tentou acalmar todos, os clientes do supermercado ficaram assustados, por esse motivo a proprietária pediu para que os quatro fossem com ela em uma sala reservada, por se tratar de assunto particular, em seguida falou:

Acredito que deva haver um engano aqui, já conheço Deméter a um bom tempo, sempre foi exemplar, inclusive nas suas férias e depois do horário trabalha em uma oficina aqui na nossa cidade.

Roberto indignado com a postura da proprietária disse:

Como pode achar que cometemos um erro? Somos as vítimas dessa moça, que se passou com irmã dos meus amigos, combinou de ir conosco para o Sul e depois sumiu com tudo, temos que chamar a polícia!

Nesse momento Deméter começou a chorar desesperadamente, soluçando implorou:

Por favor, não façam isso! Sei que não há justificativa para o que eu fiz, mas..

A proprietária não aguentou e interrompeu Deméter:

– Você realmente fez? Trabalha conosco mais de dez anos, sempre foi exemplar e agora isso!

Inaiê que não havia falado nada, pediu que a proprietária não interrompesse, em seguida com muita raiva disse:

– Quero saber quais as justificativas dessa ladra, egoísta, brincou com os nossos sentimentos, o que é pior do que o fato de ter nos roubado!

Deméter soluçando, prosseguiu:

Não menti quando disse que era irmã de vocês, trabalho aqui fazem 15 anos, desde que saí do orfanato e com uma carona vim parar nessa cidade. No entanto, tenho uma filhinha, ela é tudo para mim, está com sete anos de idade, está com uma doença rara, o sistema de saúde não cobre. Sabia que vocês tinham reservas para a viagem, precisava do dinheiro, pois tinha que começar o tratamento, estou no meu limite!

Ulisses com grande desconfiança, com tom de indignação misturado com xingamento respondeu para Deméter:

– Você realmente quer que venhamos acreditar em você? Se estivesse com dificuldades poderia ter falado para nós, iríamos fazer de tudo para ajudar, a mentira, agora a tua fala parece ser mais um insulto a nossa inteligência! Você quer que venhamos acreditar no princípio rousseuaniano?

Todos ficaram atônitos com a fala de Ulisses, ao ponto de Roberto perguntar:

O que tem haver Rousseau com esta história? Vamos filosofar, ao invés de levar essa ladra para delegacia?

Ulisses respondeu:

Rousseau acreditava que todo ser humano é bom por natureza. Essa bondade não está restrita ao campo da moral e dos costumes, que muitas vezes estão relacionados com modelo que reproduz uma forma de tirania da sociedade. Contudo, se considerarmos o ser humano desde seu nascimento, não existe uma ideia possessiva, há um sentimento pela conservação, o que não pode ser considerado egoísmo, mas ao mesmo tempo um sentimento natural em perceber o sofrimento alheio. Aliás, ele acreditava que se despertássemos a natureza dos seres humanos pela educação, ensinando não a razão, mas os sentimentos, a paixão, desenvolvendo o sentimento em prol da coletividade, poderíamos ter uma sociedade melhor, pois todos os dias formamos pequenos tiranos, que tendem colocar as suas paixões, seus desejos em primeiro lugar e quem se atreve confrontar buscam eliminar com toda força, usando as faculdades físicas e intelectuais para isso. Quando falei do ideal rousseuaniano, estava me referindo a “pitié”, que do francês pode significar piedade, mas aqui se refere a nossa capacidade de sensibilizar com o sofrimento de outro.

A dona do estabelecimento falou para os três:

-Talvez Deméter mereça o benefício da dúvida, o fato de ser irmã ou não de vocês não posso dizer nada, agora em relação ao filho doente, eu levei os dois alguns dias atrás até o hospital.

Inaiê que estava revoltada disse:

– Ela não precisava ter mentido, como poderemos confiar nela?

Aos prantos Deméter respondeu para os três:

– Vocês podem não acreditar em mim, mas suplico para que não me levem até a polícia, a minha filha tem apenas a mim, vocês ainda não são pais e mãe, agora imagine um filho ou filha no seu colo, que você gerou, de repente você sente que ele está com muita dor, está ardendo em febre e que talvez no outro dia não esteja mais com vocês. Quando você é colocado contra a parede pelos sofrimentos da vida, os teus limites físicos, intelectual e espiritual desvanecem completamente, quem de vocês pensaria direito? Duvido que fossem capazes de usar a teoria da boa moral e bons costumes para agir, diante de uma tragédia pessoal! Ainda, encontrar uma filosofia moral, para dizer como agir. Não sei se você lembra de mim Ulisses, estava atrás de você quando vimos a nossa mãe dando seus últimos suspiros? Você agiu como um louco, bateu contra a parede e acertou, acidentalmente, um colega seu, eu te abracei até você parar, lembra?

A memória retratada por Deméter só poderia ser da irmã, foi o que concluiu Ulisses, por outro lado, havia as mentiras, ao mesmo tempo o amor pelo filho, o que alguém é capaz de fazer para salvar a pessoa que ama? O que o ser humano é capaz de fazer para ter as pessoas que ama bem? Enquanto esses pensamentos surgiam na mente de Ulisses, Roberto falou:

Por isso você deixou o bilhete, mentiu para nós, mas deixou pistas do seu paradeiro, não é mesmo?

Deméter chacoalhou a cabeça dizendo que sim, em seguida Roberto continuou:

A tempestade se revela rapidamente, não faz parte do nosso cotidiano, a vida é feita de momentos tempestivos e não apenas de tempos bons, a diferença é como agimos diante de tudo isso, o quanto somos capazes de solidarizar-se com o sofrimento do outro, ser resilientes, sem perder de vista que quem somos está intimamente ligado com a capacidade de não apenas ver o erro, mas construir juntos, acredito que devemos dar uma oportunidade para Deméter.

Ulisses concordou e destacou que somente Deméter podia ter relatado as memórias da perda da mãe, decidiram ir juntos, não para delegacia, mas para a casa de Deméter. Todavia, muitas dúvidas estavam na cabeça de Inaiê, pois poderia ser aparente, uma máscara, como diria Hobbes, assim, seriam enganados novamente. Entretanto, Rousseau poderia estar certo, na medida que o ser humano se corrompe e se perde na sociedade, o que levaria ao resultado semelhante em serem ludibriados, ficando a questão como se constituem o caráter das pessoas, quais suas motivações? Como entender e decifrar o comportamento humano?

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Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

 

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