Por Carlos Weinman, para Desacato. info.
Os lugares, os espaços podem trazer muito da história, sobre os vários momentos da vida de um povo. Agora, imaginem se os lugares e os objetos fossem capazes de apresentar a narrativa dos acontecimentos, tivessem a capacidade de trazer à memória a dor, os amores, os sofrimentos, os desejos, as frustrações e as ilusões das pessoas, será que as imagens sobre as várias histórias de um determinado povo seriam as mesmas? Era sobre essas questões que Inaiê estava pensando enquanto ouvia um CD de músicas, que tinha como título do álbum: “Um outro Olhar do Sul”, da autoria de Pedro Pinheiro, era de um artista da cidade que acabaram de chegar, estavam em São Miguel do Oeste.
Inaiê com a música, sentia seus pensamentos borbulharem, ideias sobre a memória vinham em sua mente, pareciam lampejos, que precisavam ser externados, chegou um ponto que não aguentou mais e disse:
– Os olhares sobre as vivências de um povo, de um grupo são apresentados de muitas formas, por vezes as identidades das pessoas são esquecidas, é muito importante resgatar!
Roberto – Concordo contigo em parte, pelo fato em que muitos são despertados para uma tendência de buscar resgatar, porém, fazem uso de uma visão reducionista desse processo, por partir de uma visão simplória, do recuperar algo perdido, o que pode configurar em uma busca por um ou de vários relatos, mas quando falamos do resgate histórico e social, em geral, o que se diz ou se faz corresponde a um processo de ressignificar, de buscar o entendimento sobre as várias identidades que formam o imaginário de uma coletividade, sobre quem são as pessoas e como são apresentados os vários sujeitos que, por sinal, dão beleza a uma sociedade, embora sempre haja o processo de construção da estranheza, o que sugere que o relato passado pode esconder elementos que compõem a identidade dos humanos do mundo dos estranhos.
Deméter – Por esse motivo, acredito que se apresenta a necessidade do exercício do pensamento em reclamar para si o processo de reflexão crítica das histórias, das perspectivas, por mais que sejam escondidas e obscuras. Do contrário, o resgate será apenas um artifício de lembrar fatos ou relatos segundo a perspectiva de alguém, sem ter a possibilidade da ressignificação pelos sujeitos que buscam por suas identidades, tratando-se de um movimento constante e não simplesmente um contar sem indagações.
Ulisses – Vamos parar aqui um pouco!
Todos ficaram se olhando, já que não estavam em um restaurante ou hotel, era uma casa, simples. Quando Ulisses retornou, juntamente com um rapaz muito parecido com ele, parecia irmão gêmeo. Ulisses com um sorriso no semblante falou:
– Quero que vocês conheçam Kauê Whamurai, nosso irmão!
Todos ficaram estupefatos, não sabiam como reagir, não esperavam, Ulisses não havia contado nada anteriormente, pegou todos de surpresa. O fato era que Ulisses havia pesquisado na internet, nas redes sociais e encontrou o irmão alguns dias antes, se comunicaram e resolveram fazer uma surpresa para todos. Kauê já morava na cidade há muitos anos, tinha casado, era pai de dois filhos, Berto e Yara, sua esposa era Iyami. Alguns minutos se passaram até que todos se abraçaram, era o encontro dos irmãos, risos e choros se misturavam, o encontro entre os irmãos finalmente aconteceu. Kauê os convidou para entrar na casa, que estava arrumada, organizada para acolher os irmãos.
Quando Inaiê entrou na casa viu um fogão a lenha no canto da cozinha, logo perguntou para seu irmão Ulisses:
– O fogão a lenha que nossos pais tinham era parecido?
Ulisses – Sim, os detalhes de flores são os mesmos, a única diferença é que esse é branco, o dos nossos pais era azul.
Kauê – Vamos lá! Podemos sentar-nos em torno do fogão, tomar um chimarrão, visto que mesmo estando em setembro, está bastante frio, parece que a primavera não quer aparecer esse ano!
Deméter – Isso é incrível, Perséfone vai adorar, vou ajudar ela com a cadeira de rodas.
Os viajantes e família de Kauê estavam entusiasmados, começaram a conversar até que chegaram no assunto sobre as memórias e as histórias, foi quando Inaiê pediu para Kauê, para contar um pouco sobre a história de São Miguel do Oeste e sua chegada.
Kauê – Quando saí do orfanato, fui para uma cidade do interior do Rio grande Sul, foi quando conheci Iyami, ela me incentivou a estudar, fiz a faculdade de história, depois um concurso e vim para cidade de São Miguel do Oeste, onde tivemos os nossos dois filhos.
Inaiê – Minha nossa! Temos um historiador na família! Então conta para nós sobre essa cidade, vi que o pessoal traz muito a figura do desbravador, o que é isso?
Kauê – Todas as cidades são marcadas pelas várias vivências, dificuldades de várias pessoas, sofrimentos, lutas, batalhas pela sobrevivência, por isso é importante lembrar que os viajantes de outrora chegaram na região imbuídos de um sonho, de prosperidade e de crescimento, ao mesmo tempo já havia pessoas nesses lugares.
Ulisses – Infelizmente, temos versões de histórias que correspondem a um imaginário destacado por algumas pessoas em detrimentos de outras e o critério sobre as versões nem sempre é tão claro!
Kauê – Isso mesmo meu irmão, por isso é importante destacar que quando falamos do desbravador, trata-se de uma imagem, que está presente no imaginário popular, mas não é única. Esse lugar por volta dos anos 1920, todos conheciam como de Vila Oeste, a colonização começou por volta de 1940.
Inaiê – Como funcionava, quem determinava as terras? Como eram vendidas?
Kauê – As terras eram vendidas por empresas, denominadas de colonizadoras, que no caso dessa região era a Colonizadora Barth, Benetti & Cia. Ltda, a sede da empresa ficava em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul.
Roberto – O lugar deveria ter grande prestígio na época!
Kauê – A colonizadora trouxe vários colonos descendentes de italianos, alemães e outras etnias, todos tiveram seus espíritos imbuídos, pela propaganda da época, de um sonho de prosperidade, que movia muitos espíritos, deixando de lado a imagem do ser brasileiro, pois esses eram vistos como pessoas da terra, “incapazes”, mas a história é irônica, anos 70 chegaram, a prosperidade foi embora juntamente com a floresta que caiu ao chão, na presença das grandes cerrarias. Aliás, muitas árvores derrubadas ficavam no chão, apodrecendo, não era dada utilidade, pois parecia ser um recurso infindável para época. Ao mesmo tempo, a agricultura dos pequenos agricultores começou a declinar. Assim, muitos que se viam na condição de desbravadores passaram ser apenas gente com fome, sem possibilidades, no fim alguns se uniram as pessoas da terra, fazendo parte dos estranhos, fugindo do campo ou buscando em outros lugares a sobrevivência.
Roberto – Podemos dizer que essa uma imagem possível do desbravador, conquistador, obreiros do progresso, o que findou com a contradição da realidade da região, com as crises da agricultura e das madeireiras.
Kauê – Essa é uma imagem dos relatos de alguns grupos, mas não a história de todas ou da maioria das pessoas, dos descendentes desse lugar, pois podemos buscar várias outras narrativas que não ganharam espaço, não foram ouvidas e não compuseram a versão oficial da história.
Inaiê – Então se o lugar pudesse falar por si mesmo teríamos muitos outros retratos, é interessante saber que houveram sonhos, juntamente com frustrações, vendas de uma imagem que ruiu, juntamente com a decadência da indústria madeireira, da agricultura, que foi capaz de atingir, também, as camadas urbanas com maior poder aquisitivo, a elite da época, encontramos a presença de várias pessoas mais pobres, muitas organizadas em movimentos sociais, o que foi muito forte nos anos 80. Por esse motivo, falar da memória dos chamados desbravadores desconsiderando os excluídos do direito ao relato à memória, é o mesmo que contar uma história mitológica, de heróis e deuses, constituindo a trama de uma ficção que invade o imaginário, para não deixar os espíritos vindouros pensarem nas contradições, não oportunizado outras reflexões e narrativas.
Quando Inaiê terminou de falar, Deméter começou a gritar:
–Vamos acorde, está na hora de almoçar!
Inaiê acordou assustada, deixando cair um livro que havia comprado em uma livraria da cidade, tratava-se de uma obra do professor Adriano Larentes da Silva, intitulado “Fazendo Cidade: memória e urbanização no extremo Oeste de Santa Catarina”, olhou para irmã e perguntou:
– Nós encontramos nosso irmão Kauê?
Deméter olhou para irmã e disse:
– Pelo visto alguém teve um belo sonho!
Inaiê – Mas parecia tão real!
Deméter – Infelizmente não, fomos até a farmácia e deixamos você lendo, quando retornamos estavas dormindo, agora vamos almoçar!
Inaiê- Sabe que às vezes preferimos o sonho à realidade? Hoje eu queria que meu sonho tivesse sido real, infelizmente não achamos ainda Kauê!
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Carlos Weinman possui graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Rede Pública do estado de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.