Por Raquel Wandelli, especial para os Jornalistas Livres.
Integrantes do grupo de 30 motoqueiros que avançou sobre área de banhistas na tradicional praia do Pântano do Sul, em Florianópolis (SC), espancou um jovem morador com uma barra de ferro na madrugada de domingo e abandonou-o desfalecido na praia. Ao amanhecer, um grupo deles ameaçou de morte dois pescadores locais por impedirem que avançassem na área de banhistas proibida para veículos.
Fotos: Raquel Wandelli.
Pescadores que estavam na praia com seus filhos se colocaram na frente das motos e triciclo para impedir que seguissem adiante. Depois de uma discussão e troca de insultos, os motoqueiros concordaram em retornar para a estrada. Mesmo assim, ao menos seis deles furaram o bloqueio humano e ultrapassaram com velocidade a área proibida, onde havia cerca de três mil banhistas. Havia inclusive um grupo de crianças, mulheres e idosos que haviam acabado de concluir uma aula de zumba na areia.
À noite, eles se reuniram num bar local e por volta de 5 horas da manhã, em torno de seis membros do Abutres avançaram sobre Elvis da Silva Soares, um jovem de 28, anos que aproveitava a lua cheia para passear de mãos dadas com a esposa, Karina Kramer, de 26. Um deles, que é morador da praia e dono do bar Rock, agrediu o jovem com uma barra de ferro na cabeça, alegando que havia se posicionado contra o grupo no episódio da invasão da praia. Elvis desmaiou e continuou a ser espancado. Para protegê-lo, a esposa deitou-se sobre seu corpo e foi igualmente agredida com socos e pontapés. “Apanhei sem saber por quê”, disse ela, que teve de arrastar o marido sozinha para fora da praia até conseguir ajuda na comunidade.
Elvis, que levanta todos os dias às 6 horas para trabalhar num escritório de engenharia sanitária em Canasvieiras e é considerado um rapaz muito tranquilo e de boa conduta pela comunidade, foi atendido no Hospital Celso Ramos, no Centro, levou oito pontos na cabeça e voltou para casa com fortes hematomas nas costas, no rosto, nos olhos e no pescoço. Só talvez na tarde de hoje (16/01), depois que a dor de cabeça ceder, Karina poderá levá-lo ao Centro de carona para registrar o B.O. e fazer o exame de corpo de delito. “Ontem não foi possível; ele passou o dia inteiro desacordado”. A mãe, Bernadete da Silva Soares, não se conforma, pois nasceu e se criou na comunidade e nunca imaginou que seu filho sofreria uma violência desse nível num local onde todos formam uma família. “Foi uma tentativa de homicídio”, sustentam ela e a nora, que vão entrar com ação judicial contra o Moto Clube e os agressores por danos morais e físicos. Com a cabeça enfaixada e muito deprimido, Elvis conta que Francis, com quem conviveu desde menino, começou a ficar estranho e agressivo depois que começou a frequentar os Abutres.
Conforme relato dos pescadores e comerciantes, Eduardo Rafael Lopes e Jaime Antônio Cláudio, conhecido por Cau, a comunidade estava aproveitando a praia com os filhos no entardecer de sábado, quando subitamente o grupo avançou com as motos, liderado por Francis Maya, 35 anos, dono de bar e morador local. Segundo o membro do Abutres, Marinho Mendes, foi ele quem garantiu ao grupo que a passagem pela praia era permitida para veículos (embora uma placa enorme e uma corrente de cones diga ao contrário). Cau, que é pai de três filhos e vive há mais de 30 anos no Pântano do Sul, esteve à frente do bloqueio que impediu a entrada de parte dos motoqueiros em área protegida para pedestres.
No domingo pela manhã, Cau e Rafael receberam a visita de Francis Maya e de outros seis integrantes, que lhes fizeram uma ameaça de morte cifrada: “Disseram que voltariam com um grupo de tatuadores”, conta Cau. A ameaça faz referência ao tatuador Antônio Stoppa que, junto com outros três membros do Abutres, foi acusado de espancar até a morte o empresário Paulo Joacir Müller, 34 anos, dono da Pizzaria Yellows, num encontro de motoqueiros em 2000, na extinta boate Lupus’Beer, na praia de Jurerê, também em Florianópolis. A autópsia revelou hemorragia e hematomas nos pulmões e no cérebro, causados por socos e pontapés com botas de bico fino e placas de prata. Eles sofreram prisão preventiva por dois meses e foram absolvidos em 2009 porque as provas foram consideradas insuficientes.
Com o filho de nove meses no colo, Cau enfrentou os motoqueiros com firmeza: “Por aqui não podem passar! Deixem as motos no estacionamento e caminhem a pé pela praia como todo mundo faz”. Dirigindo-se a Francis, afirmou: “Tu és morador daqui, meu, conhece a lei, sabe que é proibido entrar na praia; deveria respeitar e dar o exemplo”. Segundo Cau, o membro do Abutre tentou convencê-lo com o argumento de que “é atração desfilar de moto pela praia”. Mesmo temeroso pela segurança de seus filhos, o pescador gravou um depoimento dizendo que as famílias estavam se divertindo na praia num dia de lazer e os trabalhadores ganhando seu sustento quando sofreram essa violência inaceitável. Rafael afirmou que a comunidade já está se reunindo para entrar com uma ação. Rui Gonçalves, 64 anos, pescador aposentado, testemunhou o ocorrido e desmentiu com veemência a afirmação dos abutres em comentários no Facebook de que deram a volta e foram imediatamente para o estacionamento assim que ouviram o aviso dos pescadores. “Eles tentaram entrar na marra, aceleraram a moto em cima da gente, tanto que é pelo menos seis passaram pelo bloqueio”. Afirmando que o grupo, hospedado no bar Rock, atordoou a comunidade durante todo o fim de semana, ele defende que o juiz responsável pela lei de interdição do trânsito na praia faça cumpri-la determinando a instalação de grades de ferro e exigindo maior rigor da Polícia Militar, que faz vista grossa para a entrada de carros.
A lei do Ministério Público Federal proibindo a circulação de veículos na praia foi reivindicada e pela própria comunidade porque havia muitas ocorrências de acidentes com pedestres e insegurança para os banhistas. “Melhorou muito aqui depois desta interdição e todo mundo deve respeitar”, afirma Luiz Carlos Moura, militar aposentado. Pela lei, que foi aprovada em setembro de 2015 e entrou em vigor em novembro do mesmo ano, só os pescadores e moradores locais, cujas casas têm acesso único pela praia, podem transitar com veículos motorizados na faixa da areia e somente para sair ou chegar em suas residências. Mesmo nessas exceções, é preciso solicitar autorização especial da prefeitura na Diretoria de Operações do Sistema Viário de Florianópolis (DIOPE). “Aconteceram muitos acidentes com lancha, carros, crianças que eram atropeladas, pessoas dirigindo alcoolizadas”, justifica Cau. Uma placa alta de sinalização indicando “Trânsito exclusivo de pedestres” está bem visível no alto da área invadida pelos motoqueiros. Marinho Mendes reconhece que o grupo errou ao ter entrado na faixa de areia, mas não pensa em pedir desculpas. Sua versão de que 15 pescadores atacaram seis componetes do Abutres no Bar Rock não encontra respaldo na comunidade. O casal garante que estava sozinho quando foi covardemente espancado na praia por seis homens da sigla. Mendes também assegura que seu grupo não é político, mas diversos posts foram espalhados nas páginas dos Abutres pelo Brasil afora acusando o Jornalistas Livres de ser esquerdopata e comunista e de “chamar de golpe o que ocorreu no Brasil”.
Ainda no sábado, um Boletim de Ocorrência foi registrado na 2ª Delegacia de Polícia de Florianópolis, no Bairro Saco dos Limões pelo próprio principal agressor, Francis, que se disse vítima de injúria e agressão física. Embora Marinho Mendes e Anderson Batista, subdiretor dos Abutres em Florianópolis, afirmem que motociclistas acataram imediatamente o sinal vermelho dos moradores, deram meia volta, estacionaram na rua e voltaram a pé pela praia, o vídeo mostra os motoqueiros invadindo ao menos sete metros da faixa de areia e vários deles atravessando o bloqueio dos pescadores em direção ao interior da praia. “Se gerar violência, vai haver violência”, pondera Rafael, segundo o qual a comunidade apenas quer fazer valer o seu direito à segurança garantido por lei.
Fundado no dia 10 de setembro de 1989, o Abutre’s Moto Clube é um dos maiores Motoclubes do mundo, conforme Anderson. A divulgação da notícia da invasão pelo Jornalistas Livres no sábado (14/01) provocou centenas de comentários, grande parte criticando a atitude desrespeitosa e arrogante do grupo com a comunidade. Outros também defenderam a “liberdade” dos motoqueiros e desqualificaram a denúncia do Jornalistas Livres, alegando que “os abutres voam por cima e não se submetem a ninguém”. Todavia, inúmeros representantes de outros clubes, inclusive do próprio Abutres, lamentaram e condenaram duramente o ocorrido, dizendo que o fato não representa o espírito dos amadores desse esporte, que têm por princípio zelar pelas comunidades e contribuir com ações filantrópicas. Há, contudo, um vasto histórico de violência e confrontos com morte envolvendo em eventos do grupo, mas a página do Abutres na internet (www.abutres.com.br) avisa que a organização “não é responsável, direta ou indiretamente, pela conduta pessoal de seus integrantes que contrariem as leis vigentes, os quais responderão, civil e criminalmente por si”.
Como se não bastasse o clima tenso e as agressões físicas sofridas pelos moradores, o tradional Restaurante Peacinho do Céu amanheceu nesta segunda-feira completamente destruído por um incêndio também na madrugada de sábado pra domingo. Só sobraram cinzas e o madeiramento da sacada carbonizado como resquícios do restaurante de comida típica conduzido pela famosa cozinheira dona Zenaide Silva, que atendia a clientela vestida de almirante. A princípio, os moradores logo associaram o fato aos motoqueiros, mas os bombeiros verificaram que o fogo foi provocado por um curto circuito no freezer. Como disse Rui, o pescador aposentado, a bruxa tá solta no paraíso do Pântano do Sul, desde a chegada dos abutres…
Recebemos muitas mensagens de repúdio a notícia da invasão, e convidamos os membros do Abutre’s Moto Clube a se defender em um texto. Até o fechamento desta matéria não recebemos nenhum retorno deles.
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Fonte: Jornalistas Livres.