Medo. Por Claudia Weinman.

Escolhi essa foto, da capa, por amor. Estamos eu, minha mãe e meu irmão do meio, o Fabio.

Por Claudia Weinman, para Desacato. info.

Eu sempre tive medo.

A gente fazia dois caminhos para voltar para casa, no interior, depois da escola. Pela estrada de chão, normal, longe, ou, então, pelo morro, que unia os limites das cercas entre os vizinhos. O segundo era mais perto, mas íngreme, se não fossem os coquinhos laranjas que juntávamos na metade do caminho, nem sei. Em um desses dias, lembro bem, eu trazia nas mãos, com cuidado rigoroso que só, dois bloquinhos de chocolate. Eu os tinha ganhado na escola, no recreio ainda. Pelo caminho, pedi ao meu irmão do meio, o Fabio, para levar um pouco, mas avisei para não comer. Queria eu poder repartir com a mãe e o pai que estavam em casa. Faça-se a conta: dois bloquinhos pequeninos de chocolate, uma mãe, um pai, um irmão e eu. Acontece que na metade desse caminho, mirei atrás e: ele havia comido. Em prantos, chorei até doer o coração. Estava desolada. E agora? Não sobrou para a mãe e o pai.

Descompus o pensamento. Fiquei abraçada na tristeza, escorregando naquela grama, invadida de lágrimas. Desacatei o mundo, falei alto para as bergamotas sobre o meu descontentamento com o irmão. Eu saltava com as pernas esticadas para chegar mais rápido em casa, rodeada de medo que meus pais nunca tivessem a oportunidade de sentir o gosto de um chocolate saboroso, como aqueles bloquinhos que ganhei.

No Auletes, o medo refere-se a “um estado emocional que surge em resposta a consciência perante uma situação de eventual perigo”. Sei que existem várias outras definições em profundidade, mas nesse caso, eu tinha medo de não ter acesso as coisas. A oportunidade que me chegou naquele momento era de que, em minhas mãos, eu carregava os bloquinhos de chocolate que pela primeira vez, seriam tão gostosos, com sabor doce de verdade. Eu queria dividir, mostrar para a mãe e o pai que coisas boas existiam, para além do que tínhamos contato e poderíamos provar. Mas o meu irmão sentiu tanta vontade de comê-los ao mirá-los, que bem, hoje talvez, eu nem questionaria.

Então, por esses dias, que outros medos nos tomam em intensidade e motivações diferentes, me chegou essa lembrança ao olhar para um Brasil com 19 milhões de pessoas passando fome e 119 milhões em insegurança alimentar.  E tive medo de novo, um sentimento que depois de tanto tempo, me toma e provoca dor. A gente sabe o que é ter vontade de comer e principalmente, o que é não ter nada, ou seja, coisa nenhuma, não existência, vazio na prateleira, se é que ela existe.

A vontade de comer machuca, mas a fome mata.

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Claudia Weinman é jornalista, vice-presidenta da Cooperativa Comunicacional Sul. Militante do coletivo da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) e Pastoral da Juventude Rural (PJR).

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