Medo e delírio na endoscopia

(Em memória do Dr. Hunter Thompson)

– Vai por mim, experimenta que é bom.

Eu já tinha ouvido isso dezenas de vezes e sabia que era o Código da Furada Garantida. Mas nunca vindo de um médico, pelo menos não nesse tom.

Lá estava eu deitado numa maca de hospital, pronto para um exame de endoscopia. “Coisa bem simples, sem dor e sem risco”, alguém havia dito. A enfermeira apontou a agulha para o meu braço, mas eu quis saber, “primeiro, antes de tudo”, o nome da anestesia, o prazo de validade, qual o fabricante, os efeitos colaterais, essas coisas básicas.

– Não é anestesia, é uma sedação endovenosa – cortou o doutor, irritado. Sem ela, não poderemos fazer o procedimento.

Senti um bafo de uísque. Céus, o médico estava pobre de bêbado. Mas eu não tinha como voltar atrás e nem queria, pra ser sincero. Eu tenho isso que chamam de desejo por lama. Se for para ir fundo, que seja sem cinto de segurança

– Então manda bala – eu disse.

A enfermeira, pupilas dilatadas, pegou o meu braço e meteu a agulha com tudo. Riu enquanto injetava o líquido na minha veia. Quase ao mesmo tempo, o médico foi colocando um pequeno tubo pela minha garganta.

– Está doendo muito, a anestesia não funcionou – tentei falar.

-Você quer mesmo uma anestesia? perguntou o médico.

Sem que eu respondesse, porque percebi o tom de ameaça, ele ordenou que a enfermeira aplicasse mais uma dose. E ai tudo foi ficando preto. Se for pra afundar, que seja em alto mar, na madrugada, sem bóias, sem testemunhas, sem alguém pra dizer corta. Nenhuma mão para te fazer acordar.

– Dá mais uma pra ter certeza, pra ver se ele cala a boca – rosnou o doutor. Os dois não paravam de rir.

Medicação errada

Minutos depois, tive a sensação de ouvir a enfermeira dizer alguma coisa do tipo “Doutor, doutor, pelo amor de Deus e de Nossa Senhora Santíssima, nós erramos o medicamento, demos a injeção errada. Ele veio fazer uma endoscopia”.

Do que recordo depois disso é estar conversando com um peixe de rosto amarelo, gravata borboleta azul, listras simétricas no corpo e uma cauda em forma de uma flor aberta. Eu estava no fundo de um oceano.

O peixe sorriu, um sorriso simpático, discreto. Foi encantamento à primeira vista, um bem querer gratuito, uma ternura espontânea, não conquistada, como se ele fosse parte de mim.

Alguma coisa acontecia, as injeções estavam fazendo efeito. Aquilo era muito mais forte do que LSD, era puro anos 60. “O sentido etimológico da palavra endoscopia” – sussurrou uma voz feminina – “é olhar para dentro”.

Ao longe, bem no fundo do oceano, ouço alguém brindar à vida submersa. Procuro alguma lógica: Talvez seja réveillon ou uma festa de casamento ou de aniversário, talvez estejam comemorando o fim da guerra.

– Não existe guerra por aqui – disse a voz feminina. Você pensa muito sobre isso, você deve esquecer.

– Esquecer a guerra? – retruquei. – Esquecer a menina sem rosto, a senhora assassinada na saída do hospital, o enterro coletivo, esquecer os corpos na geladeira? Eles estão todos dentro de mim. Como se faz para esquecer essa merda toda? Aliás, você sabe como tudo começa?

A voz não respondeu. – Começa – eu continuei – sempre com os mesmos truques. É receita pronta e tem até nome pomposo: Prato Infalível para Aceitação Moral da Barbárie, em medidas. Anote:

– Espalhe sobre uma forma fatias de ameaças externas, cobertas com grãos naturais de desejo de vingança.  Adicione o mel da hipocrisia reinante e espalhe duas colheres de ignorância, descarte os contrapontos e misture as manchetes patrióticas. Acrescente pesadas porções de racismo. Não economize no medo, o mais potente dos fermentos. Coloque no forno, espere uma hora e sirva-se. Fica uma beleza.

– Entendo, mas procure descansar agora – aconselhou a voz.

Mergulho na escuridão 

Meu corpo parecia dormir, mas a mente era um trem-bala sem rumo: Pra onde me leva essa correnteza? Pra onde vamos todos nós? Se é pra afundar, que seja rápido e pra sempre. Endoscopia, olhar para dentro. Queria ser livre como o peixe amarelo. Peixe simpático e seguro, mas humilde.  Tenho vontade de dizer que eu o amo, mas não digo porque toda declaração é um aviso: Fique longe  de mim. Quem ama, faz sofrer. Quem ama, prende. Quem ama, mata.

– Mude a energia – interrompeu a voz – mude a estação.

Sempre isso, sempre esses conselhos inúteis e odiosos: “cuidados com as amizades, cuidado com os submarinos, só os amarelos não machucam, cuidado com os trilhos, não olhe para lado, não caia em tentação”.

Voltei a pensar no peixe, bem a tempo de vê-lo mergulhar para sempre dentro da escuridão do oceano.  Não disse, mas desejei em silêncio que ele seguisse livre, dentro do mar lilás, longe das armadilhas dos homens e de outros bichos perigosos.

Vai, peixe amarelo, vai com tua dança colorida, vai com esse sorriso de quem sabe, vai para sempre por essas águas que ninguém conhece.

Se for para sentir, que seja sem defesa, se é pra viver, que seja por inteiro.

Quando acordei, o corredor do hospital estava vazio. Eu estava de pijama. Não sabia se era dia ou noite. Nenhum sinal do médico e da enfermeira. Troquei de roupa e fugi, sem olhar para trás.

Endoscopia é um negócio muito sinistro.

 

Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada todas as terças-feiras. Ilustração de Juliana Kroeger, uma releitura da obra de Romero Britto, especial para o texto.

 

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