Medo do ebola aumenta o preconceito contra haitianos

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Por René Ruschel. Monsieur X*, 26 anos, faz parte da legião estrangeira de 25 mil haitianos que migraram para o Brasil. Só na região metropolitana de Curitiba são, aproximadamente, 5 mil. Nos últimos meses, o que era sonho começou a se tornar pesadelo. Uma onda de racismo e xenofobia tem dificultado a vida dos estrangeiros.

Todos, sem exceção, deixaram o Haiti para fugir da miséria, da fome, da violência, dos riscos de epidemia e da destruição que se abateu sobre o país em 12 de janeiro de 2010. Um terremoto de magnitude 7 destruiu a capital Porto Príncipe e matou entre 100 mil e 300 mil moradores. O número de feridos ultrapassou a marca dos 350 mil e cerca de 3 milhões de habitantes perderam praticamente tudo o que possuíam.

Monsieur X trabalhava na agriculta em Verrettes, há pouco mais de 100 quilômetros da capital, e lembra exatamente daquela tarde. “A terra tremeu e o mundo veio abaixo. Em segundos, o que se viu foi só tragédia.” A pobreza obrigara o pai a deixar a família para trabalhar nos Estados Unidos. Doente e sem qualquer assistência, voltou para morrer no Haiti. Depois foi a vez do filho. Ele deixou a mãe e duas irmãs para tentar a sorte na República Dominicana, onde trabalhou na construção civil. Após três anos, decidiu morar no Brasil. “Aqui sempre foi meu segundo país. No futebol, torcia pelo Brasil. Depois vi o Exército cuidando da gente. Vim trabalhar e ser feliz.”

Para custear a viagem vendeu todos os seus pertences. Até uma pequena propriedade rural. Com pouco mais de 6 mil reais no bolso, cumpriu sua jornada. Do Haiti ao Equador, depois Peru e finalmente o Brasil, via Rio Branco, Acre. Uma empresa encarregou-se de trazê-lo, em companhia de outros conterrâneos, para o Sul. Monsieur X vive há nove meses em Curitiba.

 

A xenofobia e o preconceito velado sempre existiram na capital paranaense, uma cidade de colonização europeia, mas, após o surto de ebola na África, os haitianos foram simplesmente estigmatizados. Não obstante a confusão geográfica, que toma o Haiti, pela cor da pele dos seus habitantes, como país africano, o que se viu em alguns casos foi uma quase histeria. Em Cascavel, município a 500 quilômetros de Curitiba, surgiu o primeiro caso de suspeita de ebola no Brasil. Um migrante da Guiné-Bissau teria sido infectado. Não bastasse a intolerância racial, um haitiano foi esfaqueado enquanto exercia a função de atendente em um posto de gasolina da cidade. Simplesmente por ser negro.

Em Curitiba, Monsieur X era agredido verbalmente pelos colegas da empresa distribuidora de alimentos onde trabalhava como empacotador. “Eles me chamavam de macaco, atiravam banana na minha frente. Um dia começaram a jogar feijão nos meus olhos.” Por fim, o atacaram fisicamente a socos e pontapés. Um prontuário médico comprova a agressão. Os culpados foram demitidos.

O caso foi parar no Ministério Público do Trabalho (MPT). Além das agressões físicas e do preconceito, os haitianos são vítimas de empresários que sonegam seus direitos legais. A maioria está empregada na construção civil. Segundo o procurador do Trabalho Alberto Oliveira Neto, no início de 2014 o Sindicato dos Trabalhadores procurou o MPT para alertar sobre a situação dos imigrantes. “Num primeiro momento, as questões envolviam apenas a legislação trabalhista.” À medida que os problemas migratórios vieram à tona, a questão racial emergiu e hoje corre em segredo de Justiça uma ação de 13 haitianos contra empresas curitibanas por preconceito, não cumprimento da legislação e exploração do trabalho de migrantes.

 

Para a presidente da Casa Latino-Americana (Casla), Gladys Renee de Souza Sanches, o maior problema enfrentado pelos estrangeiros, além da vulnerabilidade emocional e social do qual são vítimas, é a falta de políticas públicas que favoreçam a inserção social do migrante. “Eles chegam em condições deploráveis. Além do visto humanitário que garante a permanência legal no Brasil, não possuem mais nada. Vêm sem dinheiro, sem experiência profissional qualificada. Fogem da fome, da miséria e tudo o que querem é trabalhar e viver.”

A vice-prefeita de Curitiba e secretária municipal do Trabalho, Mirian Gonçalves, coordena uma série de políticas para a inserção dos haitianos em condições decentes. Nos primeiros dez meses deste ano, 439 estrangeiros obtiveram emprego na região metropolitana, um acréscimo de 63% em relação a 2013.

Em 2011, antes de disputar a eleição, Gonçalves visitou o Haiti para ver de perto a situação caótica do país caribenho. “Fui conhecer e documentar como eles viviam após o catastrófico terremoto. À época, viajei pelo Instituto Direito e Democracia, organização sem fins lucrativos que fundei com o objetivo de desenvolver pesquisas na área social.” O que viu foi uma nação marcada pela exploração da terra, pela violação dos direitos humanos atreladas à exportação de toda madeira existente na ilha e ao sangue de homens e mulheres vítimas de tal exploração. As condições estão muito abaixo do mínimo necessário, sem quaisquer perspectivas de mudanças em um futuro próximo.

Laura Eskelinen é finlandesa e cursa o quarto ano de Direito na Suécia. Em Curitiba, assessora os advogados no setor jurídico da Casla, pois pretende especializar-se no tema para no futuro trabalhar na Comunidade Europeia. Loira, de olhos azuis, Eskelinen atende diariamente seus iguais, normalmente negros, mulatos ou índios oriundos de países pobres ou miseráveis. De todas as suas dúvidas, aquela que mais a inquieta é como um país como o Brasil, constituído por imigrantes e com forte miscigenação, “consegue ser tão racista”.

*Reportagem publicada originalmente na edição 825 de CartaCapital, com o título “Ignorância viral”

Foto: Reprodução/Carta Capital

Fonte: Carta Capital

 

 
 
 
 
 

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