Por Mário Bittencourt.
Mais de 300 pessoas foram diagnosticadas com glaucoma sem ter a doença, no interior da Bahia, e iniciaram o tratamento com os colírios para o problema oftalmológico que é a terceira maior causa de cegueira no Brasil, sem ter necessidade. Segundo investigação da Operação Lanzarote, da Polícia Federal (PF), deflagrada nesta terça-feira (27) no estado e no vizinho Sergipe, os falsos diagnósticos foram dados pelo Instituto Oftalmológico da Bahia (IOBA), clínica de Guanambi, no Sudoeste baiano, investigada por cometer fraudes contra o Projeto Glaucoma, do Ministério da Saúde (MS).
Instituído pelo Governo Federal, o projeto cadastra e contrata instituições de saúde no país para o tratamento oftalmológico de pacientes de baixa renda que têm glaucoma, com o atendimento clínico e o fornecimento contínuo de medicação (colírios). O projeto é financiado pelo Fundo de Ações Estratégicas e Compensação, do ministério.
À frente do projeto em Guanambi, o Instituto Oftalmológico da Bahia (IOBA) teria recebido, de 2013 até maio de 2017, repasses de R$ 9,4 milhões do MS, relativos aos atendimentos a pacientes em 31 municípios baianos, a maioria situados na microrregião de Guanambi, cidade que recebeu o projeto por meio de um convênio do ministério com a Secretaria de Saúde local.
Na operação, o sócio-administrador do IOBA, que não teve o nome revelado, foi preso em Aracaju. A PF também cumpriu mandados de busca e apreensão nas cidades de Guanambi e Brumado (BA) e em Itabaiana (SE). Os alvos nessas cidades foram as clínicas afiliadas ao IOBA.
Mutirões
A PF ainda apura o quanto a clínica lucrou com as fraudes ao projeto. Segundo o delegado federal Jorge Vinícius Gobira Nunes, chefe da Delegacia de Vitória da Conquista (sudoeste da Bahia) e que comandou a Operação Lanzarote, as fraudes estão relacionadas aos locais inadequados de atendimento, como salões paroquiais, câmaras de vereadores, clubes, centros comunitários, ginásios e teatros, onde caberiam mais paciantes do que o recomendado pelo programa.
Outro fato investigado é a prescrição pelos médicos envolvidos de colírios específicos para doentes com glaucoma para quem não precisava desses medicamentos.
“Os atendimentos, pelo projeto, deveriam ser feitos em clínicas e hospitais, mas eram feitos por meio de mutirões. Assim, eles conseguiam atender mais pessoas e ter um repasse maior por parte do Ministério da Saúde”, diz o delegado.
Os atendimentos chegavam a cerca de 500 pacientes por dia, quantifica Jorge Vinícius, acrescentando que o IOBA havia sido habilitado pelo programa para receber os pacientes apenas em uma clínica própria.
Nos atendimentos, continua o delegado, “muitas pessoas que não tinham glaucoma eram diagnosticadas com a doença para recebimento do colírio e, assim, a clínica obter mais lucros. Também era fornecido sempre o colírio mais caro para obter lucro.
No tratamento do glaucoma, há diversos colírios que são usados, e no caso do projeto em Guanambi estavam sendo receitados os das linhas 1, 2 e 3. Os colírios eram comprados em diversos laboratórios, segundo a PF, por um valor bem inferior do que está na tabela do SUS.
“O custo do colírio da linha 1 é R$ 18 e o da linha 3, R$ 127. E esse valor era reembolsado pelo SUS para os investigados. Então, se você passa a ministrar mais o colírio da linha 3, logicamente o seu lucro aumenta. Havia recomendação do sócio-administrador para receitar o colírio que gerava um repasse maior”, revela o delegado.
De acordo com a regulamentação do Projeto Glaucoma, o SUS realiza o pagamento (repasse) à clínica gestora do valor dos colírios, sendo que os da linha 3 (prostaglandinas) custam cerca de seis vezes mais que os da linha 1 e 70% a mais que os da linha 2, assinala a PF.
O nome da operação Lanzarote fez referência à ilha onde viveu o escritor português José Saramago, autor do premiado romance Ensaio sobre a Cegueira.
***
Cremeb está investigando dois médicos
A Polícia Federal afirma ter identificado pelo menos seis médicos que estavam receitando medicamentos de forma errada para os pacientes atendidos pelo Projeto Glaucoma, mas que ainda não comunicou os nomes dos profissionais ao Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb).
A corregedoria do Cremeb, por sua vez, informou que dois médicos já estão sendo investigados sobre o assunto, após denúncias de terceiros. “Foi instaurada sindicância e estamos apurando os casos”, disse o corregedor José Abelardo de Menezes.
Nos últimos cinco anos, o Cremeb abriu 21 processos contra 35 médicos por conta da prescrição errada de medicamentos. Os processos resultaram em 13 condenações e em uma cassação de registro.
Os testes para ver as reações dos colírios de linha 3, as prostaglandinas, no organismo de quem faz tratamento com esses medicamentos são feitos apenas em quem já tem diagnóstico de glaucoma, informa o médico Antônio Mota, especialista na doença e secretário-geral da Sociedade de Oftalmologia da Bahia (SOB).
Segundo ele, por não haver testes de uso do medicamento em quem não tem a doença, e portanto não precisaria do colírio, não existe um protocolo definido sobre os riscos do uso inadequado.
Em pessoas com a doença, acrescenta o médico, os colírios da linha 3 podem causar algumas reações nos olhos, como vermelhidão, escurecimento da íris, da pigmentação da pálpebra e diminuição da gordura ao redor do olho.
“O glaucoma é uma doença que o tratamento deve ser com colírios específicos para cada pessoa. Não existe uma receita única, é muito personalizado”, detalha o especialista e secretário-geral.
O Ministério da Saúde, por meio da assessoria de comunicação, informou que não tem informações sobre quanto já foi gasto em colírios com o Projeto Glaucoma desde o início da iniciativa. A nota da assessoria do MS diz ainda que “apenas faz o repasse da verba para os entes (clínicas) conveniados”.