A Alemanha é um dos países que melhor soube lidar com a pandemia do coronavírus, desde o início. Tanto que, na semana passada, as autoridades chegaram a um acordo para começar o afrouxamento do isolamento social, de forma paulatina e controlada, com medidas rígidas de segurança e higiene. Mas uma decisão do governo, em meados de abril, deixou médicos de clínica geral bastante insatisfeitos e eles resolveram protestar de um jeito que chamasse a atenção – uma simples nota de repúdio não teria repercussão, como bem sabemos – e traduzisse como se sentem ao ficarem vulneráveis à contaminação.
Explico: no início de março, quando o novo coronavírus se alastrou rapidamente pelo país, uma federação médica nacional decidiu que, para qualquer pessoa portadora de infecção respiratória leve obter licença no trabalho, bastava ligar para o médico da família e pedir um atestado. Até então, era necessária a presença do doente no consultório para uma consulta, ao vivo, mas a intenção era conter a propagação da COVID-19 e deixar consultórios mais seguros para os pacientes crônicos. Só que, há cerca de três semanas, de uma hora pra outra, a medida foi suspensa.
“Numa tarde de sexta-feira, fomos informados de que a partir da segunda-feira de manhã voltava a valer a norma antiga”, contou o clínico geral Hannes Blankenfeld, de Munique, à reportagem do DW. “Isso nos deixou indignados: quem são essas pessoas com sintomas respiratórios leves? Provavelmente pacientes de covid-19!”, e estes colocam em perigo os doentes crônicos que frequentam o consultório.
Inspirados pelo médico francês Alain Colombié, que criticou a falta de equipamentos e roupas de proteção fotografando-se nu em seu consultório (veja post publicado por ele no Facebook, dirigido ao presidente Emmanuel Macron, que reproduzi no final deste texto), médicas e médicos tiraram suas roupas e posaram nus em consultórios – ou na frente deles, como na foto de destaque deste post. Por vezes, para não revelar sua nudez por inteiro, esconderam-se atrás de equipamentos como estetoscópios, esqueletos anatômicos e até rolos de papel higiênico, ou ainda pilhas de relatórios médicos.
“Nós somos seus médicos de clínica geral. Para poder tratá-lo com segurança, precisamos de equipamentos de proteção. Quando ficamos sem o pouco que temos, temos esta aparência”, disseram os médicos organizadores do movimento em comunicado divulgado no site da iniciativa, que chamaram de Blanke Bedenken – Preocupações em Branco, em tradução livre, mas que também foi traduzido como Temores Nus e Crus -, onde as fotos foram publicadas.
Mas a revolta de Blankenfield e de seus colegas tem também a ver com a falta de equipamento de proteção durante a pandemia. Com a volta da presença obrigatória do paciente no consultório, eles relatam que gastam suas roupas de proteção “para examinar alguém com sintomas leves, que talvez nem precise ir ao médico”. É uma forma de denunciar a eterna escassez de EPIs, os equipamentos de proteção individual.
Os retratos são bastante diversos e sua mensagem é bastante clara: sem a proteção necessária, os profissionais de saúde ficam ainda mais vulneráveis. “Se acabar o pouco que nós temos, é assim que ficamos”.
Blankenfeld acredita que a distribuição dos equipamentos está emperrada porque o mundo todo está precisando de máscaras, aventais e desinfetantes. A questão é que essa carência é de conhecimento do governo há semanas, por isso, “não tem cabimento expor os profissionais da saúde, justamente neste momento”.
E o movimento Blanke Bedenken não está sozinho: associações médicas, seguros de saúde e políticos de diversos partidos protestaram também. A repercussão de todos esses protestos surtiu efeito rápido: eles conseguiram prorrogar as consultas telefônicas para além de 18 de maio, data inicial da medida. No entanto, os médicos já protestaram e disseram que exigem que a medida seja prolongada até o fim da crise, para os pacientes com sintomas leves.
“Numa situação de pandemia como essa, tomar uma decisão assim, aos poucos, a cada duas semanas, atesta total falta de planejamento e de visão”, destaca Blankenfeld.
Os administradores de hospitais, entre outros empregadores, temem abusos na liberalização das licenças médicas, mas os médicos batem o pé dizendo que colocá-los em risco por se temer que haja excesso de folgas trabalhistas é um escândalo. E exigem que sua classe seja mais escutada neste cenário de pandemia.
E se fosse no Brasil?
Se lá, na Alemanha, onde as condições e a própria trajetória da pandemia seguem curso mais controlado, há embates deste tipo, imagine a situação em nosso país, onde o governo maquia informações e o presidente chama a COVID-19 de “gripezinha“, incitando seus seguidores a desrespeitarem o isolamento social, que é a principal forma de conter o avanço da contaminação e o consequente colapso do sistema de saúde. Com um detalhe: o horror já tomou conta de vários hospitais em cidades como Manaus, onde a estrutura existente não dá conta das mortes.
Po isso, não é muito difícil adivinhar o que aconteceria se uma iniciativa como esta, promovida pelo médico francês e copiada pelos médicos alemães, fosse realizada no Brasil. Certamente seria usada para desqualificar os profissionais de saúde, já tão desconsiderados e, até, vítimas de violência. Os membros conservadores deste governo e seus seguidores agiriam rápido para espalhar fakenews e, quem sabe, realizar mais uma carreata irresponsável.
Basta lembrar o protesto pacífico, em Brasília, em frente do Palácio da Alvorada, na última sexta-feira, realizado por enfermeiros para pedir melhores condições para que possam trabalhar com mais segurança. Foram ofendidos e agredidos por eleitores de Bolsonaro, que diziam defender o país com frases feitas e palavras de ordem. Um deles, bastante alterado, chegou a chamar os profissionais de saúde de “analfabetos funcionais”. Não usavam máscaras e empunhavam bandeiras do Brasil.
Alemanha flexibiliza quarentena e chanceler faz alerta
O aumento incontrolável de infecções por COVID-19 provocou a demanda crescente por suprimentos médicos, como luvas, máscaras respiratórias, roupas de proteção e ventiladores, levando à escassez mundial. E por mais que a Alemanha esteja bem organizada e os cidadãos respeitem as regras rígidas de higiene, segurança e controle do isolamento social, ela não ficou de fora.
Na semana passada, o país recebeu 10 milhões de máscaras faciais da China e, em breve, mais dois vôos fretados pelas forças armadas alemãs devem entregar outros 15 milhões de máscaras protetoras. Agora, seu uso é obrigatório em muitos espaços públicos no país.
Por outro lado, desde a semana retrasada, algumas restrições à vida pública implementadas para impedir a propagação do coronavírus começaram a ser flexibilizadas. Nessa leva, pequenos estabelecimentos comerciais foram autorizadas a reabrir, como também lojas de bicicleta e concessionárias de automóveis. Museus, zoológicos e igrejas são os próximos, sempre com a orientação de medidas rígidas de distanciamento social e higiene.
Mas a chanceler, Angela Merkel, alertou contra a medida e alertou o parlamento alemão que o país “ainda está no começo” da crise do coronavírus e deve conviver com ele ainda por um longo tempo. “Ninguém gosta de ouvir isso, mas é a verdade. Não estamos vivendo a fase final desta crise”. Ela está certa. Pra que arriscar? Que pena que em nosso país não há pessoas de bom senso, assim, no governo e nas instituições.
A Universidade Johns Hopkins divulgou recentemente que a Alemanha registrou mais de 159 mil casos de coronavírus, com mais de 6 mil mortes. E a chanceler Angela Merkel alertou contra a complacência, dizendo ao parlamento alemão que o país “ainda está no começo” da crise dos coronavírus e terá que conviver com o vírus por um longo tempo. “Ninguém gosta de ouvir isso, mas é a verdade. Não estamos vivendo a fase final desta crise”, disse ela na semana passada.
Agora, veja mais fotos dos médicos alemães e o post do médico francés Colombié que os inspirou, no Facebook: