Por Lívia Albuquerque, para Desacato.info
É absolutamente compreensível que as mulheres que são mães sejam decepcionadas com as condições terrivelmente duras em meio ao qual se exerce esse papel. Os filhos começam suas vidas sendo uma extensão de suas progenitoras: formam-se em seu interior, são envolvidos pelo seu calor, seu sangue e seus órgãos; mais tarde, são alimentados pelo seu leite, aconchegados pelo seu colo e suas batidas do coração, e, seguem um processo de separação entre indivíduos que dura anos. O ambiente deveria ser favorável a esses acontecimentos, porém é justamente ao contrário, reservando os mais diversos tipos de violência, que são responsáveis por sacrificar mulheres e crianças. Basta ser mãe para entender a dimensão do impacto cruel do sistema capitalista a cada dia.
Assim, mulheres totalmente sobrecarregadas em suas duplas ou triplas jornadas desejam cessar esse drama. E, bem como se pretende uma saída para a sobrecarga da execução das tarefas domésticas, propondo-se a remuneração desse tipo de atividade, vem se fortalecendo a mesma ideia para “o trabalho da maternidade”. Por certo, não se pode ignorar a desigualdade entre os gêneros na assunção das obrigações decorrentes tanto de um quanto de outro. No entanto, fossem remuneradas essas mulheres, continuariam sobrecarregadas, confinadas em seus lares e alheias à atuação na transformação objetiva da realidade. Porque um fato da maternidade é que não há mãe que salve seu filho. As mulheres perdem os seus filhos para o capital e são perdidas também, pois terão vivido para tentar protegê-los de algo muito mais poderoso que elas.
De fato, para o presente, deseja-se atenuar as consequências da tempestade que é o atual período capitalista, sobretudo na periferia do sistema. Além de a remuneração pela maternidade provavelmente ser ideia oriunda do feminismo europeu e estadunidense, onde se é possível alguma condição mais próxima da humana – porque suas nações super exploram países como o Brasil -, há outro aspecto desumanizador nessa proposta. Ora, tarefas de manutenção de condições saudáveis de sobrevivência estão no campo da autonomia e não do trabalho, embora sejam trabalhosas. Em uma moradia, devem ser executadas por quem a habita, até mesmo as crianças podem assumir responsabilidades domésticas, desde que compatíveis com seu nível de desenvolvimento. O esperado é que adultos tenham autonomia para manter a higiene de si mesmos e de seu ambiente, para alimentar-se e para conviver organizadamente com as demais pessoas que co-habitam o mesmo espaço. Se não há capacidade e tempo de vida a ser dedicado aos cuidados fisiológicos, estar-se-ia falando de seres não vivos. Da mesma forma, os cuidados com as crianças são trabalhosos, porém os filhos não se caracterizam por serem mercadorias a serem produzidas, melhoradas e acabadas para serem entregues para “o mundo”. As mamíferas permanecem com seus filhotes enquanto estes não são capazes de sobreviver sozinhos. Os humanos são os filhotes que mais demoram a poder sobreviver sozinhos. Cabe pontuar que reivindicar a condição de mamífera, porque está em jogo um processo ideológico de coisificação, aprofundando-se cada vez mais, então é apropriado relembrar que o ser humano é mais bicho que mero objeto.
Esse processo ganha especial relevância quando se insere na realidade latino-americana. A remuneração da maternidade tem um lado – mais que um, quase os dois – que reforça o sistema capitalista. Para pensadores que estão no centro desse sistema, pode até ser viável e interessante. Mas e para os marginalizados do mundo subdesenvolvido? Que gênero humano se desenvolve após se organizar socialmente a relação mãe e filho à treva do capital? Classificar essa responsabilidade como algo simplesmente a ser trocado por valor econômico é atestar uma crise humanística da qual não se pretende sair, é aceitar que não há rumo diverso do abismo para o qual caminhamos desde o dia em que nascemos, porque o nosso sistema econômico nos destrói enquanto humanos. E essa constatação não passa por fechar os olhos para as necessidades que emergem da sobrevivência material digna de mulheres e crianças.
No entanto, deve-se estar atento para pontos ainda menosprezados nesse tipo de análise. Ao conversar com uma pessoa que está no final de sua vida, ela te dirá que queria ter tido mais tempo com os seus filhos. A detecção da dificuldade de se sustentar a vida física, psíquica e emocional de uma criança, quando nem se consegue sustentar a si mesmo, não significa que o problema é a vida humana ali em potencial. O problema é justamente a perda dessa vida, aos poucos afogada pela lama da grande massa à qual a criança vai se misturando, deixando para trás a sua subjetividade e a sua individualidade, que tantas vezes nem chegam a alcançar o seu desenvolvimento.
A realidade do exercício da maternidade brasileira tem grande potencial de conscientização, porém a deturpação feita pelas teorias transplantadas da realidade de outros países, faz o movimento inverso para enxergar a questão. Fora o fato de as discussões ficarem tantas vezes apenas no campo acadêmico, onde se pretende desconstruir o que se tem chamado de romantização da maternidade, o que não passa nem perto dos problemas mais urgentes da questão. E a esquerda brasileira não mergulha no ponto central dessas dificuldades que permeiam a responsabilidade pelas crianças: a mãe quer viver o crescimento do seu filho ou largá-lo precocemente por 12 horas em uma creche sem condições de atender suas necessidades para cumprir horário em um trabalho alienado? A mãe quer terceirizar todos os cuidados – o que é, erroneamente, chamado de socialização dos cuidados – ou evitar o enorme desgaste de ter que se preocupar o tempo todo se seus filhos serão sequestrados, machucados, abusados ou mortos? Um bebê precisa apenas de sua mãe por muito tempo. Crianças pequenas precisam da forte presença de suas mães por anos. É preciso lutar por condições mínimas de exercício da maternidade, com emancipação das mulheres pelo trabalho não alienado, adequado em carga horária e retribuição econômica para que elas possam dar conta de si e de suas crianças e ao mesmo tempo atuarem na transformação da sociedade. Mas perde-se tempo demais em discussões da moral burguesa e seus conceitos de “culpa” e “julgamento”.
Enquanto os debates se mantêm superficiais, a sociedade do capital rouba bebês de suas nutrizes, porque a economia não pode parar; poda o desenvolvimento do indivíduo, porque num padrão ele tem que se encaixar; joga-o no mercado de trabalho (ou na rua), porque a roda não pode parar de girar. Daí, se de um indivíduo, que já não é mais um todo reconhecível, nasce outro, o horizonte é remunerar a maternidade, para que se repita o ciclo de (não) vida? É preciso pensar o conjunto onde se insere a questão econômica e não apenas nesta. Não há mais espaço para não se exigir a ruptura com a opressão. O tema da maternidade perpassa sobre uma infinidade de outros temas – alimentação, educação, cultura, artes, saúde, segurança e todos os braços ideológicos que atuam na vida do ser humano desde o seu nascimento -, não pode ser rebaixado a soluções não revolucionárias, ainda que seja, compreensivelmente, desejada a redução da sobrecarga na enorme responsabilidade que é cuidar dos filhos. Que as mães tenham a possibilidade de cuidar de seus filhos!
Quando nasce uma criança, uma grande potência na mulher fica à espreita. O novo ser humano pode ser influenciado por essa força, que não deve ser capitalizada. A nova sociedade precisa ser construída para se somar nesse processo, com princípios realmente socialistas, que melhorarão o indivíduo e a humanidade. A maternidade pode ser belíssima, e não um fardo, pois se assim é tida, deve-se à organização capitalista e suas implicações. A maternidade não pode ser alienada.
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