Matar os jovens, deixar morrer os velhos

Foto: José Cruz

Por João Paulo Cunha.

Em poucos dias o governo de Jair Bolsonaro proferiu duas sentenças anunciadas de genocídio contra o povo brasileiro. A primeira, com o pacote anticrime de Sérgio Moro, cujo projeto se fundamenta no aumento da violência penal, na desconsideração das causas da criminalidade e na licença para matar dada a polícia, sustentada em critérios subjetivos. A segunda é resultado da extinção da Previdência Social, proposta por Paulo Guedes, retirando nada menos de 40% da renda dos idosos em condição de insegurança social, além de dificultar a aposentadoria rural e diminuir drasticamente as pensões para órfãos e viúvas.

No primeiro caso, a juventude pobre das periferias é colocada literalmente na linha de tiro. No segundo, os mais velhos são abandonados ao relento da falta de políticas de seguridade. O governo oferece à sociedade dois projetos de extermínio deliberado de pessoas, o que é a definição explícita de genocídio. O que une as duas pontas da barbárie é nitidamente um corte de classe, mas que se alimenta de outras determinações fortes da nossa formação social, marcada pelo preconceito e exclusão.

Há outras semelhanças nos projetos de Moro e Guedes. Em primeiro lugar, o descaso com o conhecimento. No caso da segurança pública, em nenhum momento da proposta estão presentes as pesquisas, debates e estatísticas produzidas nos últimos anos. Toda a riqueza e complexidade dos saberes sobre o tema gerados em todo o mundo – inclusive no Brasil –  ficam submetidos ao populismo cevado pela popularidade do ex-magistrado. Ao se recusar ao diálogo e ao confronto com outras teses e visões jurídicas, ele se apequena e assume a dimensão real de sua indigência técnica e política. Revela-se o juiz parcial que sempre foi e o ministro vaidoso que se tornou.

O pacote anticrime é perpassado de problemas identificados por especialistas nos campos constitucional, penal, penitenciário, policial e social. Não considera a situação carcerária brasileira – certamente o maior crime em andamento no campo dos direitos humanos -, as causas da violência, as estratégias policiais de enfrentamento, a inteligência do setor, as diferentes formas de atuação da polícia e as alternativas penais. O projeto traz ainda inconsistências constitucionais, como a prisão depois do julgamento em segunda instância, e abertura para práticas correntes de órgãos internacionais que fragilizam o direito brasileiro.

O pacote vinha embalado com medidas para enfrentar a corrupção e o caixa dois eleitoral, que foram em seguida habilmente fatiadas e deixadas para uma nova etapa. A verdadeira mira do projeto está na população pobre e periférica, que será objeto de caçadas policiais chanceladas pela impunidade. Moro já deixou clara sua leniência com o poder e mesmo sua mudança de juízo em temas como posse de armas e desvios eleitorais, perdoando de forma compungida seu colega Lorenzoni após mea-culpa patético. O que ficou intacta até agora foi a licença para matar encomendada pelo presidente.

Já a chamada nova previdência, na verdade a destruição da Previdência como instituição de seguridade social, chegou como uma tempestade de verão. Parecia inevitável, mas foi mais destruidora do que o previsto. A imprensa e os formadores de opinião pelas redes fizeram o serviço prévio. Tornaram o assunto tão inevitável que parecia que tudo era apenas uma questão de definir idade mínima para a aposentadoria e como preservar os militares da degola de seus privilégios. A discussão substantiva, que é o sentido real da seguridade social, não foi colocada em pauta. Quando o pacote chegou, a preocupação foi tentar explicá-lo e não combatê-lo, como merecia.

A tarefa da Previdência é garantir a seguridade dos brasileiros. Prover condições para que todos vivam com saúde, dignidade e assistência devida em todas as fases da vida. A forma de financiar esse direito é outra tarefa. Em nome das finanças públicas e do equilíbrio fiscal não se pode deixar a população insegura. Como são áreas distintas, têm orçamentos também separados. O esforço para a manutenção da seguridade deve, por isso, partir da garantia do bem-estar social e não de sua ameaça ou chantagem geracional. O primeiro dever de casa é resolver tudo no caixa que não diz respeito ao orçamento da seguridade, sobretudo as dívidas com sistema por parte das empresas e as desonerações. O que nunca foi feito.

O que não se pode barganhar são direitos inalienáveis em troca de equilíbrio fiscal. O projeto de Guedes, com a racionalidade própria dos economistas de sua escola, escolheu o segmento mais frágil para atacar de cara. Quem sai perdendo são os mais pobres, os idosos e os pensionistas. Além de aumentar os prazos para a aposentadoria – o que poderia até ser negociado com os trabalhadores e não imposto -, o tempo de contribuição aumentou exatamente no período em que a informalidade deixa de ser exceção para ser regra do mercado. Benefícios inferiores a um salário mínimo se tornarão mais presentes, aumentando a perspectiva de miserabilidade social, sobretudo entre os mais velhos.

Há mais identidades entre os dois projetos. A mais patente é a abertura de novos negócios no campo privado. Incremento do comércio de armas – reuniões de Moro com fabricantes já foram noticiadas – e de segurança patrimonial, que tem tudo para se tornar uma espécie de milícia institucionalizada. No campo da Previdência, com a quase inviabilidade de aposentadoria digna para todos (logo os minions vão sentir na carne), a saída será engordar o sistema financeiro como VGBL, PGBL e assemelhados.

O resultado, nos dois casos, é a diminuição de recursos no mercado com a consequente tendência a contração. Tudo vai ficar mais caro e o salário vai valer ainda menos, já que precisa financiar o futuro desguarnecido. A informalidade vai aumentar, a capacidade de contribuir por 40 anos vai ser uma ficção, a aposentadoria integral uma impossibilidade lógica. A reforma trabalhista completa o ciclo vicioso da fragilidade do trabalho com suas flexibilidades modernas (férias?) e ameaças. Todos perdem. Ou quase todos. As armas vão estar lá. Os bancos também.

A batalha para a aprovação dos projetos já começou. O sistema político se recompõe para voltar a dar as cartas depois do susto da última eleição. As tabelas de valor de votos já circulam entre analistas, a peso de ouro e cargos públicos. A tendência é barganhar para agradar eleitores sem desagradar o governo. Os novos parlamentares estão aprendendo rápido as regras do fisiologismo.

Esse jogo não interessa ao povo. Mais que nunca, a resistência precisa ser determinada e radical. Não há, nesse momento, proposta alternativa ou debate possível. Trata-se de defender a juventude e os idosos. Lutar pela vida. Nas ruas.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here


This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.