Reportagem retrata quotidiano de miséria e abandono em favela carioca onde poder público aparece na forma de canos de fuzil
Por Vladimir Platonow, na Agência Brasil
A ocupação por 2.700 homens das Forças Armadas e da Polícia Militar não muda a rotina dos 130 mil moradores do Complexo da Maré, na zona norte do Rio. A não ser pela presença ostensiva de militares e das constantes revistas em veículos, a vida segue como sempre, em meio à pobreza extrema, valas de esgoto e moradias improvisadas.
“A gente quer é que nos tirem daqui, moço. A situação está precária. Quando chove, a água sobe e o esgoto invade tudo. A gente quer um lar, para podermos viver com os nossos filhos”, pede Welington Barbosa de Oliveira, que trabalha como pescador e mora às margens de um valão na localidade conhecida como McLaren, na Vila do Pinheiro. Aos 25 anos de idade e pai de cinco filhos, ele quer ajuda do Estado para sair da casa de compensado.
A vizinha Andreia Oliveira da Costa, que mora há 12 anos no local, não se conforma com as condições de moradia. “É horrível. Aqui tem rato, barata, lacraia. Queremos ganhar uma casa. É o meu sonho”, pediu ela, que tem quatro filhos e trabalha como camelô vendendo balas na zona sul.
Próximo dali, o pescador Gabriel José da Silva, de 58 anos, construía um novo espaço de trabalho embaixo da ponte da Linha Vermelha, ao lado do mesmo valão que leva ao Canal do Cunha, na Baía de Guanabara. O barraco que ele usava para arrumar e construir pequenos barcos de pesca terá de ser removido, segundo lhe informou um representante da associação de moradores, como parte das mudanças urbanas trazidas com o processo de pacificação.
“Eles vão limpar aquela parte ali [um terreno entre os viadutos da Linha Vermelha e da Linha Amarela]. Aí eu arranquei isso tudinho, que era um chiqueiro de porco, e montei minha barraquinha para trabalhar. A lei da vida é igual a do mar: o peixe maior come o peixe menor”, diz ele, que veio da Paraíba em 1959 e nunca mais saiu da Maré.
Além de pescar, Gabriel também cata caranguejos guaiamum nos manguezais da baía, mas confessa que nos últimos dias não conseguiu sair para trabalhar, pois está cuidando da transferência do local de trabalho. Ele reconhece que será difícil continuar com a construção de pequenos barcos, que ele fazia com a ajuda dos filhos, se tiver de sair do terreno. Cada barco lhe rende até R$ 1.600 pela mão de obra.
“Quando eu não caio para água, vou fazendo barquinho para um ou para outro. Aí vem as pessoas e fazem isso [a retirada do terreno], mas eu não vou discutir”, resigna-se ele, que tem quatro filhos, mas nenhum quer seguir a profissão do pai. Outro ameaçado de despejo é Plácido Sebastião de Oliveira, que trabalha como mecânico em um espaço embaixo da Linha Amarela. Vindo do Rio Grande do Norte, dez anos atrás, ele conta que aprendeu a mexer com motores ainda nos engenhos de cana onde trabalhou. “Se nos tirarem daqui, vai ficar difícil trabalhar, pois as pessoas já estão acostumadas com o nosso ponto”, diz, em meio a carros de passeio e até caminhões, no pátio da oficina improvisada.
Na mesma área, que fica no entorno do local onde funcionava a base de comando do Batalhão de Choque e que abrigará uma unidade de apoio de Fuzileiros Navais, também chamada de ponto forte, existe uma pequena criação de cabras. O proprietário é o potiguar Jorge Paulo, de 68 anos, há 65 na Maré.
“Isso aqui era beira de mar, mas eu nunca me interessei pela pesca, só pela minha criação. Aqui ninguém nunca mexeu com meus bichos. Espero que nada mude [com o processo de pacificação]. Mas se me tirarem, não tem problema”, disse ele, que no total possuiu um rebanho de 16 cabras. Ele não vende o leite das cabras, direcionado para os filhotes, que são vendidos a partir dos seis meses de vida, quando passam dos 20 quilos. “É mais vantagem vender o bicho vivo. O quilo do cabrito em pé tá R$ 7”, disse Jorge, que já teve mais animais, incluindo vacas, mas reduziu a criação pela falta de pastagem na Maré.
A assessoria de comunicação da Força de Pacificação disse que não há, por parte dos militares, nenhum pedido para remover moradores das imediações do terreno. No local, a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) instalou um ponto de apoio para os trabalhadores para agilizar a limpeza da área.
Fonte: Outras Palavras.