Por Alejandro Reyes.*
Sim, existe um lugar que se chama Realidade. A realidade é um caracol. E os caracóis, como todos sabem, são espirais. Como a vida, como a morte, como a realidade. No caracol de La Realidad, na madrugada de 25 de maio de 2014, o Subcomandante Insurgente Marcos, porta- voz e chefe militar do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) durante vinte anos, revelou sua própria irrealidade e anunciou que, a partir daquele momento, deixava de existir.
A La Realidad haviam chagado, no dia anterior, centenas de mulheres e homens de muitas partes do México e do mundo, além de milhares de bases de apoio zapatistas. Carregávamos, todos e todas, a dor e a raiva pelo assassinato brutal de José Luis Solis Lopez, o mestre “Galeano”. Também pelos ferimentos a outros quinze zapatistas e pela destruição da escola, da clínica e de vários veículos, durante um ataque paramilitar em 2 de maio, orquestrado pelo governo de Chiapas.
A caravana em que viajávamos mais de 600 pessoas em 55 veículos se estendia por mais de um quilometro no caminho que conduz ao coração da Selva Lacandona. No largo trajeto, a palavra mais presente na mente de todos era “justiça”. Em Os irmão Karamazov, de Dostoievski, Iván conta a história de um menino de oito anos que joga uma pedra que, por acidente, acerta a pata do cão favorito de um coronel. Como castigo, o menino é deixado nu e o fazem correr enquanto o coronel lança seus cães de caça sobre o menino, que é despedaçado na frente da mãe. Justiça?, se pergunta Iván. Que justiça pode haver? Que castigo, por mais terrível que seja, pode compensar o sofrimento do menino e a dor da mãe? Mas, se não há castigo possível, o que é a justiça? Existe?
O comandante geral do EZLN afirmou dias antes que se faria justiça, mas deixou claro que justiça e vingança não são o mesmo. Nessa madrugada, pouco antes de deixar de existir, Marcos disse: “A justiça pequena se parece tanto à vingança. A justiça pequena é aquela que reparte a impunidade, porque ao castigar a um, absolve os outros. O que queremos nós, pelo que lutamos, não se esgota em encontrar os assassinos do companheiro Galeano e ver que recebem seu castigo (que assim será, que ninguém se engane sobre isso). A busca paciente e teimosa é a busca pela verdade e não a resignação.”. Mas, se a “justiça grande” não é o castigo, como bem entendeu Iván Karamazov, o que é, onde está essa verdade?
Se trata de uma questão filosófica mas, em La Realidad , a filosofia se faz ao caminhar e se escreve com o sangue dos mortos. Em La Realidad e na realidade. Porque, diante da suposta mortandade da “guerra contra o narcotráfico” (120, 130, 150 mil mortos dependendo de quem conta, quanto serão necessários?); diante da privatização de todo bem comum e o roubo das terras, recurso e vida; diante a impunidade e o uso do “estado de direito” para benefício exclusivo do capital, diante da repressão e da criminalização dos protestos; diante da destruição sistemática do meio ambiente e de formas dignas de vida, diante do simulacro de ilusões vazias montado pelos meios massivos de comunicação, é necessário e urgente perguntar-se o que é e o que pode ser a justiça.
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Desde o início em sua luta, o EZLN se fez essa pergunta, Quando se levantaram em armas em 1994, levavam dez anos preparando-se para a guerra como única opção entre 500 anos de roubo, opressão e miséria. A guerra permitiu recuperar grandes extensões de terras que estavam em mãos de coronéis que mantinha os indígenas em condições de semi- escravidão. Sem a guerra, nada do que se construiu depois teria sido possível.
Mas doze dias depois do acordo de cessar-fogo os zapatista nunca mais voltaram a usar armas. A resposta de boa parte da população mexicana ao levantamento havia sido surpreendente. No auge do projeto neoliberal, muita gente se identificou com as demandas zapatistas, e foi em boa parte graças ao movimento cidadão que se conseguiu frear os massacres cometidos pelo exército mexicano. Mas o que o povo exigia era vida, não guerra, e o EZLN soube escutar. “E em lugar de nos dedicarmos a formar guerrilheiros, soldados, e esquadrões, preparamos promotores de saúde, de educação e se foram levantando as bases para a autonomia que hoje maravilha o mundo”, disse Marcos na madrugada de 25 de maio. Desde então a mensagem tem sido clara: a justiça tem a ver com a vida, não com a morte.
Em fevereiro de 1996 se firmaram os Acuerdos de San Andres, que garantiam o autogoverno dos povos indígena e seu controle dos recursos naturais. Porém, o governo de Ernesto Zedillo não tinha intenção de cumpri-los e as reformas constitucionais nunca foram feitas. Nos anos seguintes , o EZLN se dedicou a pressionar o governo para obrigá-lo a cumprir os acordos. Estes esforços culminaram em 2001 com a Marcha del Color de La Tierra, uma mobilização sem precedentes no México: 6 mil quilômetros percorridos em 37 dias com a participação de milhões de pessoas em mais de 70 atos. A resposta dos três partidos políticos: a aprovação de uma reforma constitucional que ignorou os Acuerdos de San Andres.
A partir desse momento , o EZLN deu às costas ao governo e se dedicou intensamente a construção da autonomia sem pedir permissão a ninguém. Em 2003, anunciaram a criação dos caracóis – centros administrativos e pontos de encontro das grandes cinco zonas do território zapatista – e as Juntas de Buen Govierno, quem sabe a mais audaz experiência em democracia participativa do planeta. Os zapatistas demonstravam, na prática, que sim, há alternativas à democracia eleitoral e ao sistema liberal. Com isso, se acelerou a construção da educação e da saúde autônomas, os projetos produtivos, a participação da mulher, a politização da diferença. É impossível dar a importância que a autonomia zapatista merece em algumas linhas. E, no entanto, essa fase foi a menos visível porque, quando o EZLN cortou a comunicação com os de cima, os meios viraram às costas ao movimento: a moda zapatista havia passado.
A Sexta Declaracion de La Selva Lacandona (Sexta), na metade de 2005, marcou outro divisor de águas. Encaminhada a autonomia nas comunidades (ainda que falte o que falta), o zapatismo se abiu ao mundo com uma proposta política radical: a globalização das resistências. A formação de uma consolidação de uma multiplicidades de autonomias locais, cada um segundo seus modos e tempos, e sua articulação de maneira orgânica e não hierárquica para, assim, conformar um sujeito político global contra-hegemônico. Construir na prática “um mundo onde caibam outros mundos” fora da lógica do capital. E foi na Sexta- “a mais audaz e a mais zapatista de todas as iniciativas que lançamos até agora” – onde finalmente o zapatismo encontrou verdadeiros interlocutores. “Com a Sexta, finalmente temos encontrado quem nos olha de frente e nos saúda e nos abraça, e assim se saúda e se abraça”.
A primeira iniciativa da Sexta foi a cruzada da Otra Campana. Em 2006 o subcomandante Marcos percorreu todo o México, se reunido com organizações e indivíduos “ de baixo e à esquerda”, em uma “anticampanha” que não buscava buscar adeptos ao zapatismo, senão motivar, através do encontro entre as dores, o surgimento de movimentos autônomos. Foi também neste percurso que, pela primeira vez deu às costas aos meios de comunicação comerciais e se voltou seriamente para o “meios livres, alternativos, autônomos ou como se chamem”. Se a construção da vida zapatista surgia a partir de baixo, com a comunicação também seria assim.
Sete anos depois surge a Escuelita da liberdad segundo los zapatistas, talvez a mais inovadora de suas iniciativas. Nas três sessões realizadas até agora, milhares de pessoas de todas partes do mundo têm convivido com as famílias zapatistas nas comunidades rebeldes, aprendendo na prática a construção da autonomia, para regressar a seus lugares de origem com a responsabilidade de ir construindo “outros mundos possíveis”. Os alunos e alunas são convidados diretamente pelo EZLN ou solicitam uma apresentação de sua visão e trabalho político. Quando aceitos, os estudante se apresentam no dia combinado em San Cristobal de Las Casas, de onde saem grandes caravanas dirigidas aos cinco Caracoles. Uma vez no Caracole, é apresentada uma família para cada pessoa. Ela conviverá durante cinco dias com essa família e com um vótan, guardião ou guardiã, que o acompanhará o tempo todo. Daí partem no dia seguinte rumo a uma comunidade que, muitas vezes, estão a horas de distância- em caminhonetes, andando por trilhas, em lanchas – na selva ou na montanha. A generosidade dessa iniciativa e incalculável: a impressionante logística, os cuidados com segurança e saúde de milhares de pessoas em um amplo território, a alimentação, a elaboração dos materiais didáticos, o esforço e o coração de milhares de bases de apoio zapatista, sem pedir nada em troca, pela simples vontade de compartilhar sua experiência de vida e semear esperança.
Nesse contexto, a “morte” de Marcos dá início a uma nova fase do projeto zapatista. A figura de Marcos – disse Marcos – foi inventada pelos zapatistas diante da cegueira racista do mundo que impedia (e impede), não só a direita senão a intelectualidade de esquerda também, de ver os índios. A genialidade de Marcos comunicador foi um instrumento para dar a conhecer um movimento que se rege pela ética. Sua capacidade analítica, a sagacidade e ironia de sua caneta e seu manejo dos meios de comunicação permitiram que muita gente visse a luta zapatista e fizesse dela a sua própria luta. Ao mesmo tempo, Marcos se converteu em um “distraidor”. Para muitos, o zapatismo é Marcos e Marcos é o zapatismo. Enquanto o poder e os grande meios de comunicação concentravam suas forças para elevar e destruir a imagem de Marcos, os povos avançavam na construção da autonomia.
Mas agora o personagem deixa de ser necessário. Se, ha muitos anos, a política de cima deixou de interessar ao movimento, se a incidência nos grandes meios já não é relevante, se a construção de baixo avança nas comunidades e entre as organizações da Sexta e de tantos movimentos autonomistas do mundo… Qual a necessidade de que Marcos siga existindo? A morte de marcos marca várias mudanças. Desaparece o interlocutor de origem mestiça e urbano de um movimento indígena e campesino. Em seu lugar, fica o novo porta-voz e chefe militar o Subcomandante Insurgente Moisés, brilhante índio tseltal de longa carreira, membro do EZLN desde 1983. O mundo já não poderá reduzir o zapatismo ao amor ou ódio por Marcos: quem quiser vê-lo, terá que ver os povos e sua construção de vida. Essa mudança se reflete também na estratégia de comunicação iniciada com a Otra Campana. No evento ocorrido em La Realidad em 24 e 25 de maio não foram admitidos meios privados e o mundo teve que inteirar-se da “morte” de Marcos através dos “meios livres, alternativos, autônomos ou como se chamem”. A partir de agora, a realidade zapatista só poderá ser vista desde baixo.
Essas mudanças surgem no contexto de um projeto articulado e preciso do Estado: tomar conta de todos os recursos, terras , territórios do país para benefício do capital, e da reativação de uma guerra contra o zapatismo e contra todas as resistências organizadas. Em Chiapas, há muitos anos que se tenta explorar as riquezas do estado – os mais rico em recursos naturais – mas a resistência das comunidades indígenas, sobretudo zapatistas, tem impedido esse processo. Agora, o Governo Federal aliado ao estatal, tem dado claros sinais que continuará pressionando. Em fevereiro desse ano o presidente Enrique Pena Nieto, inaugurou o aeroporto Internacional de Palenque, peça-chave no megaprojeto turístico ao redor das cascatas de Agua Azul e da reserva natural de Montes Azules. Ao mesmo tempo , afirmou que agora será construída a estrada San Cristobal – Palenque, impedida até agora pela resistência indígena, e anunciou que o anteprojeto estaria pronto em maio (mesmo mês do ataque a La Realidad). Anunciou também o início da construção da empresa hidrelétrica de Chicoasen II, assim como tem se multiplicado as concessões para as mineiras. Enquanto isso, aumenta a paramilitarização. Em janeiro deste ano, 300 membros da organização CIOAC Democrática (Central Independiente de Obreros Agricolas e Campesinos) atacaram aos zapatistas deixando vário feridos, alguns em estado grave. Em março, um ativista tseltal pro-zapatista do território comunal de Bachajón, que se opõe à construção da estrada, foi brutalmente assassinado. E, em 2 de maio a CIOAC Histórica atacou o caracol de La Realidad.
Essa paramilitarização vem de mãos dadas com os projetos de “desenvolvimento” e de “combate à pobreza”, que canalizam fundos públicos para beneficiar as organizações contrárias ao zapatismo. Não é casual que a “Cruzada contra a Fome” tenha sido lançada precisamente no município da Las Margaritas, território controlado pela CIOAC. Em La Realidad o Subcomandante Moisés indicou precisamente os vínculos descobertos pela investigação zapatista entre os dirigentes da CIOAC e os diferente níveis de governo estatal e federal. Tampouco é coincidência que o ataque de 2 de maio ocorra justo quando o EZLN anuncia seu compartilhamento com os povos originários – uma versão especial da escuelita para povos indígenas organizados de todo país – e um seminário sobre “Ética frente ao roubo”. Ambos eventos tiveram que ser cancelados devido ao ataque. A paramilitarização não é uma novidade mas esta agressão difere das anteriores pelo fato de atacar diretamente um caracol – o primeiro e mais simbólico de todos – e destruir aquilo que simboliza a construção pacífica de outro mundo possível: a escola, a clínica, veículos usados em projetos produtivos. Uma coisa está clara: o governo teme muito menos as armas que a construção da vida fora de sua lógica de lucro e roubo.
O assassinato de Galeano (professor da escuelita zapatista), como bem disse Marcos, foi um ataque a essa construção de vida. Diante dessa violência, a Junta de Buen Govierno pediu a Comandância Geral do EZLN cuidasse desse assunto, e essa declarou que se faria justiça. Mas o castigos aos autores materiais somente é uma “justiça pequena” que deixa impunes os verdadeiros responsáveis assim como o sistema que dá origem a eles. “A justiça grande”, disse Marcos, “tem relação com o companheiro Galeano enterrado. Porque nos perguntamos não o que faremos com sua morte, e sim o que devemos fazer com sua vida”. Por isso os zapatistas decidiram desenterrar Galeano. Quando Marcos deixou de falar, acendeu seu cachimbo, se levantou, caminhou até o fundo do tablado montado e se desvaneceu na escuridão. Os aplausos de milhares de mãos que seguiram foram de despedidas, homenagens e muitas outras coisas. Depois, o Subcomandante Moisés avisou que falaria outro companheiro. E então se escutou nos alto falantes, a voz que havia sido de Marcos ate momentos atrás:
– Boa madrugada companheiras e companheiros. Meu nome é Galeano, Subcomandante Insurgente Galeano. Alguém mais se chama Galeano?
E milhares de vozes:
– Eu sou Galeano! Todos somos Galeano!
– Então e por isso que me disseram que quando eu voltasse a nascer, seria em coletivo. Assim seja, boa viagem. Cuidem-se, cuidemos uns aos outros. Desde as montanhas do Sudeste mexicano, Subcomandante Insurgente Galeano.
E o mestre Galeano havia ressuscitado. Sua ressurreição em um ser coletivo representa a necessidade da vida ressurgir, cada vez mais digna, dos escombros da destruição e da morte. É a justiça grande que vê mais além da morte individual para combater a destruição sistêmica por meio da luta coletiva pela vida. É a esperança diante da desolação de um sistema perdido na loucura de sua própria ganância.
* Coletivo Radio Zapatista (http://radiozapatista.org/)
Tradução de Bruno Simões
Fonte: Das Lutas