São Paulo – O Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, junto com a organização internacional de Direitos Humanos Witness, realizou um trabalho de mapeamento de vídeos que denuncia violações de direitos legais e humanos na remoção de moradores de comunidades afetadas pelos megaeventos em função de obras para o Mundial de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. O processo de curadoria do material analisou 114 vídeos que apresentam infrações em 21 comunidades cariocas entre os anos de 2008 e 2012. O objetivo principal da iniciativa é confrontar o discurso da prefeitura da capital fluminense, de que não há remoções forçadas ocorrendo na cidade.
“Passamos a ouvir vários relatos de comunidades que estavam sendo ameaçadas de remoção, ouvimos depoimentos, e de outro lado ouvimos o poder público afirmando que nada disso acontecia”, afirma a pesquisadora da área de direitos humanos e uma das coordenadoras do projeto, Priscila Neri.
No final de setembro, o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB) rebateu as afirmações da Anistia Internacional, que iniciou uma campanha para pedir a revisão da política de remoções de moradores das comunidades. Segundo a ONG, nos últimos cinco anos, mais de 100 mil pessoas foram retiradas de suas casas pelas autoridades cariocas. “Nós temos conversado muito com a Anistia Internacional pessoalmente, mostrando e expondo todos os casos. Não há nenhuma espécie de remoção forçada por parte da prefeitura”, disse à época o prefeito, ao participar do lançamento do primeiro empreendimento residencial na zona portuária do Rio.
Os vídeos têm diferentes origens, de movimentos sociais e organizações da sociedade civil a veículos de imprensa, ativistas e os próprios moradores das comunidades atingidas, e retratam diferentes estágios nas violações de direitos: aquelas que ocorriam antes das remoções, durante e depois. O material estava disperso pela internet e redes sociais quando o Comitê Popular da Copa e a Witness iniciaram o processo de curadoria para, justamente, montar uma história que evidenciasse o caráter sistemático e estrutural das violações. O trabalho final foi um relatório, que lista as principais violações e propõe o fim das remoções forçadas no país.
“Por estes vídeos estarem desconectados eles não contavam uma história maior, contavam historinhas individuais. A gente sentiu falta de fortalecer essa história mostrando que vídeos não estão sendo feitos só por uma ONG, ou partido, como o Eduardo Paes sempre diz, mas por várias fontes diferentes que corroboram as histórias. E mostram que é estrutural, revela o caráter sistemático e os padrões em comum das violações. Não foi uma comunidade demolida sem aviso, mas sim várias”, comenta Priscila.
Principais violações
O trabalho de mapeamento e curadoria dos vídeos durou 18 meses. Após sistematizar, num banco de dados as denúncias dos vídeos, as informações foram checadas com três diferentes fontes. “Podiam ser documentos jurídicos num processo em andamento, advogados que tenham acompanhado o caso, redes de apoio às comunidades, ONGs, blogs de moradores. Desde que fossem três fontes não conectadas entre si, consideramos que, se falassem a mesma coisa, era uma validação das informações.”
Após a assessoria de advogados voluntários ligados à questão do direito à terra, que vincularam as denúncias a trechos específicos de leis que estavam sendo violadas, tanto nas esferas municipal, estadual e nacional, como nos tratados e acordos internacionais de direitos humanos que o Brasil é signatário. Os casos de ameaça de remoção são a maioria denunciada nos vídeos, representam 44% delas. Nestes casos, as violações mais recorrentes são negação do direito à informação, propostas inadequadas ou precárias de reassentamento, negação do direito ao devido processo legal e indenização insuficiente.
Nos casos em que as violações ocorreram durante os processos de remoção, que representam 27% do total, os temas que mais aparecem são falta de aviso prévio adequado, ameaças e intimidações verbais durante a remoção, demolição parcial da comunidade como forma de pressionar aqueles que resistem a sair de suas casas, e a demolição antes que fosse definido um plano de reassentamento. No caso da comunidade de Restinga, por exemplo, localizada no bairro do Recreio dos Bandeirantes, muitos dos moradores receberam aviso prévio de um dia para saírem de suas residências, e muitos comércios demolidos não receberam qualquer tipo de indenização, como afirma o morador Michel, em um vídeo realizado durante uma missão da Relatoria do Direito Humano à Cidade da Plataforma Dhesca Brasil, em maio de 2011.
“Quando veio tirar a gente daqui, falou que a gente era lixo, que ia remover o lixo da Avenida das Américas. Eu tô indignado com isso. O povo aqui foi tratado igual a lixo. Aqui tinha 150 moradias e comércios. Não deu nenhum tipo de indenização pra gente, os comerciantes não receberam nada, nem um real. Eu tô indignado, esse país não tem lei. Isso que é Copa do Mundo, isso que é espírito olímpico? Até concordo com o progresso, ninguém tá aqui pra atrapalhar o progresso, mas não pode passar uma avenida por cima do pobre, isso não entra na minha cabeça não”, diz o morador.
As violações de direitos ocorridas após as comunidades serem removidas de suas casas representam 14% dos casos denunciados nos vídeos. Elas dizem respeito a perda de fonte de renda, dificuldade de acesso a serviços pela localização mais distante da nova moradia, perda de comércio não indenizada por parte da prefeitura e crianças fora da escola por faltas de vaga no novo local de residência.
Participação
Priscila ressalta que movimentos sociais e comunidades que reclamam seus direitos nos vídeos não são contra a realização, em si, dos megaeventos, mas rejeitam a exclusão que sofrem resultados positivos de desenvolvimento para a cidade. “Eles são contra esses eventos, só exigem ser incluídos dos benefícios que estes eventos trazem. Tudo de bom que podem trazer. O evento não pode ser financiado com dinheiro público para beneficiar um pequeno grupo de pessoas, tem que beneficiar o público. E não é isso que a gente vê.”
O evento de lançamento do relatório da Witness e do Comitê Popular da Copa produzido a partir da curadoria dos vídeos seria uma audiência pública na Câmara dos Vereadores do Rio, no dia 27 de agosto, mas não aconteceu, de última hora, por manobra de aliados a Paes, como afirma o Comitê Popular. Já está sendo procurada nova data para o lançamento. A partir daí, o relatório será protocolado junto à administração municipal e ao Ministério Público Estadual.
A lista completa de violações, principais depoimentos, e comunidades afetadas pelas remoções pode ser conferida no relatório. Os principais depoimentos contidos nos 114 vídeos podem ser vistos na página do processo de curadoria.
Foto: Tomaz Silva
Fonte: Rede Brasil Atual