Pouco falada na história da cidade, prática era comum entre as famílias de. origem lusa
Ao completar 125 anos da assinatura da Lei Áurea, o marco da abolição da escravatura no país, o tema ainda continua sendo um tabu na história. Em Joinville, não é diferente. A presença de escravos na região é pouco falada nos livros locais e muitas pessoas nem se dão conta que eles existiam. Mas havia negros escravizados, sim, como em todo o país. E não eram poucos. Embora não fosse permitido ao colono, a prática era comum nas famílias de origem lusa que já habitavam estas terras muito antes da Sociedade Colonizadora Dona Francisca começar a trazer para cá os primeiros imigrantes.
No final da década de 40 do século 19, quando iniciaram os preparativos para o estabelecimento da Colônia Dona Francisca nas terrais dotais da princesa de Joinville, já havia inúmeras famílias brasileiras, estabelecidas há várias gerações. A Colônia, um empreendimento privado da Sociedade Colonizadora de Hamburgo, ocupava uma área de oito léguas quadradas, que era apenas uma parte do dote da princesa (25 léguas quadradas, no total).
Outra parte era o Domaine Dona Francisca, que englobava o restante das terras dotais que ainda pertenciam ao príncipe – essas não haviam sido cedidas para a Sociedade Colonizadora. Havia ainda, o Domaine D’Aumale, que pertencia ao duque de Aumale, irmão do príncipe de Joinville, e que ficava em parte do que é hoje Pirabeiraba. E no entorno dessas áreas havia sesmarias, fazendas e sítios pertencentes a famílias brasileiras de origem lusa – algumas bem próximas do centro da nova colônia germânica.
No livro de Carlos Ficker, “História de Joinville – Crônicas da Colônia Dona Francisca”, constam algumas dessas famílias. Na região onde hoje é o Boa Vista, do outro lado do rio Cachoeira, havia a propriedade de Agostinho Budal. Entre o Bucarein e o atual Itaum, havia a propriedade de Antônio Vieira e mais adiante a sesmaria de Salvador Gomes e Afonso Miranda.
Para o Norte, na região onde hoje fica o aeroporto, as terras eram de João Cercal, Luiz Dias do Rosário, Vicente Afonso do Rosário e outros – uma área que encostava no rio Cubatão. Na região ao lado da “Rainha”, em Araquari, havia as terras do Coronel Camacho.
Para o Sul, nomes como Antônio da Veiga, João da Veiga, Manoel Gomes e Francisco da Maia já estavam radicados, entre muitas outras famílias.
Crianças eram separadas pelos pais
No livro de Carlos Ficker consta que o Coronel Vieira, por exemplo, se estabeleceu em 1826. “Com grande fazenda e muitos escravos.” Nos registros dos cemitérios e igrejas eles apareciam, com a identificação de seus donos.
Na Coletoria Estadual havia ainda o registro do recolhimento de impostos sobre a circulação de escravos (como uma mercadoria, um bem) e no livro de venda dos escravos, constava o imposto sobre transferência. Quando eles iam ao Planalto Norte, por exemplo, mudavam de Estado, e era preciso pagar o imposto. As famílias vinham de lá para comprar escravos aqui. Isso era registrado no tabelionato, explica a pesquisadora Brigitte Brandenburg, comentando que nesse comércio muitas vezes as famílias de negros eram separadas.
“Às vezes, as crianças não iam juntas”, comenta. Nessa época, segunda metade do século 19, a maior parte dos cativos já era nascida no país – anteriormente, até por volta de 1860, os registros indicavam a procedência, como “Benguela” (uma das denominação dada aos bantus, que viviam em vários locais da costa africana) e “Mina” (vindos da Costa da Mina, na África), por exemplo.
Em seu livro, “Suedbrasilien”, publicado em 1850, o doutor Hemann Blumenau revelava que nas províncias do Norte o número de escravos era elevado e a proporção em alguns casos chegava a um branco para dez negros. “No Sul, a porcentagem é menor, como na Província de Santa Catarina, onde, numa população de cerca de 90 mil almas, há apenas 14 mil escravos”, disse.
João Vieira Sênior, da região que hoje é o Itinga, por exemplo, tinha 32 escravos. Já Salvador Gomes, quando morreu, tinha 40 cativos, comenta Brigitte.
Ainda hoje, quem passa pela antiga Estrada da Serra, atual SC-40, em Pirabeiraba, pode observar uma casa cuja construção é atribuída a João Gomes de Oliveira, descendente de Salvador Gomes. O imóvel erguido na década de 60 do século 19 hoje pertence ao casal Wigando e Alzira Fleith, e tem suas características preservadas. A casa foi comprada pelo pai de Alzira em junho de 1935. Ela lembra que ao lado da casa, à direita, ainda era possível ver vários ranchos de madeira usados para abrigar os escravos.
Na roça de mandioca e Cana
Os escravos trabalhavam nos engenhos de farinha e na roça, cultivando mandioca e cana. Também podiam ser encontrados em plantações de arroz. “Em São Francisco do Sul tinha muito arroz”, comenta Brigitte Brandenburg. Paraty, onde hoje é Araquari, era uma área grande, com uma parte cultivável e muitos banhados, o que demandava maior mão de obra.
Os imigrantes que eram trazidos da Europa para povoar a Colônia Dona Francisca não podiam ter escravos. No livro “Era uma vez um simples Caminho”, a pesquisadora Elly Herkenhoff afirma que a iniciativa de coibir o uso dessa mão de obra partiu da própria Sociedade Colonizadora de Hamburgo, em 1849, que solicitou a medida ao imperador Dom Pedro 2º.
Isso não quer dizer que, em determinadas situações, eles não tivessem. Um caso típico era quando um colono casava com uma moça de origem lusa, que podia levar seu escravo – e algumas vezes levavam, já que não estavam habituadas ao trabalho doméstico. “Os escravos eram herdados. Eles tinham filhos, que iam crescendo junto com as famílias. Não precisavam comprar, vinham de herança”, explica Brigitte Brandenburg, citando o exemplo de um senhor Seiler, que era casado com uma moça de uma família lusa abastada de Morretes (PR). Construtor de moinhos, ele veio fazer trabalhos na colônia no final dos anos 70 e trouxe a família, com escravos.
A prática, porém, não era comum, já que a escravidão não era vista com bons olhos pelos moradores da Colônia. “Não se podia impedir que o francisquense tivesse escravos. Mas quando João Gomes veio para cá, ele consultou Frederic Brüstlein sobre a vinda de escravos”, recorda a pesquisadora, referindo-se a um proprietário que adquiriu terras em Pirabeiraba, fora da colônia, mas ainda dentro do domínio do príncipe. A carta consta da correspondência de Brüstlein, preservada no Arquivo Histórico de Joinville.
Foto: Arquivo Histórico de Joinville
Fonte: RIC MAIS