A Estação Primeira de Mangueira fez um desfile arrasador na segunda noite dos desfiles da Marquês de Sapucaí.
Tratou de reescrever a História a partir do ponto-de-vista dos negros e das mais de 300 etnias que existiam no Brasil antes da invasão dos portugueses.
Foi uma combinação de luxo, beleza e um samba enredo encantador, levado pelas arquibancadas.
A Mangueira ousou: colocou o patrono do Exército, Duque de Caxias, no papel que não se atribui a ele nos livros escolares: repressor-em-chefe de revoltas populares.
O personagem que o representou apareceu pisando sobre “corpos ensanguentados”.
A escola também pintou de “sangue” o monumento às bandeiras, de Victor Brecheret, que ocupa um lugar especial na memória oficial dos paulistas.
Tiverem papel de destaque a jornalista Hildegard Angel, à frente do carro alegórico que denunciou a ditadura militar, assim como a viúva de Marielle, Monica Benício, que veio a pé acompanhada por Rosemary.
O conjunto da obra foi de grande impacto.
A bateria fez um arranjo especial para o trecho do samba enredo que falava dos anos de chumbo da ditadura militar:
Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões
Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati
Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês
Imediatamente antes desfilou a vice-campeã do ano passado, a Paraíso do Tuiuti.
A escola de samba do morro vizinho à Mangueira também trouxe um enredo político.
Tratou de um bode mítico do Ceará, de nome Ioiô, eleito vereador em Fortaleza pelo povão, mas impedido de assumir.
Comparou o causo a fatos recentes.
A comissão de frente da Tuiuti deixou claro que se tratava da usurpação, por endinheirados, do mandato popular dado ao bode pelo voto.
Ilustrou isso com o roubo da faixa presidencial.
A Globo fez que não viu. A apresentadora não só passou quase todo o tempo remetendo o enredo ao início do século passado, como questionou seguidamente se o bode de fato havia existido.
Mas em 2019 a comissão de frente da Tuiuti não foi tão impactante visualmente quanto a de 2018. O samba enredo também não tinha a mesma qualidade.
Mesmo a denúncia política exigia leitura de texto e entendimento de situações complexas.
A Tuiuti colocou coxinhas armados em uma ala e, no carro alegórico final, denunciou as contradições das barbies reacionárias que levaram Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto, uma eleição que ele venceu sem enfrentar o bode, o ex-presidente Lula, condenado, preso e impedido de concorrer em 2018 pelos endinheirados do Brasil.