Malvinas: ex-paraquedista britânico vira membro de associação de veteranos argentinos
“Eu quero que você me faça um favor”, disse Michael Southall, veterano da Guerra das Malvinas, “quero que você fale para o Juan Carlos Ianuzzo, da associação dos veteranos argentinos, que eu quero me afiliar a eles. Quero que me mandem, se puderem, um distintivo da associação para eu usar”, pediu emocionado à reportagem do Opera Mundi.
“Eu pago o correio”, continuou o ex-paraquedista do exército britânico, em tom desafiador. “Vou usar com muito orgulho, como um gesto de reconciliação”, disse ele num domingo à tarde, uma semana antes de a guerra completar 30 anos.
Roberto Almeida
“Usarei o distintivo dos veteranos argentinos com orgulho”, disse Southhall. “Eu pago o correio”.
Southall era apenas um adolescente quando voou para as Malvinas. Tinha 17 anos. Hoje, com cabeça raspada e sorriso fácil, o ex-combatente mora em uma ruazinha tranquila em Chester, sua cidade natal, perto de Liverpool, no noroeste da Inglaterra. “Nasci ali, na rua de trás”, diverte-se. “Não tem lugar como nossa própria casa.”
Nas paredes, poucas lembranças de um conflito: um quadro, um porta-retratos, um bibelô. Mas as marcas dos 72 dias de guerra emergem nos menores gestos do veterano. Durante a transmissão de um jogo entre Rangers e Celtics, clássico do futebol escocês, Southall não desgrudava os olhos da TV e, sem perceber, passava as mãos sobre os pés descalços e sem as unhas, perdidas na lama congelada das Malvinas.
“Tive ‘pé de trincheira’, quase gangrenou. Mas isso é o de menos”, disse, minimizando a ferida gerada no primeiro mês da guerra, quando teve que caminhar, com 50 quilos de equipamentos das costas, do Porto San Carlos, na costa oeste da ilha, até a sede do governo e foco da resistência argentina, no leste.
Para chegar a Porto Stanley, chamada de Puerto Argentino por nossos vizinhos, o 3º Regimento de Paraquedistas do exército do Reino Unido teve que percorrer a pé, desde a área de desembarque do navio anfíbio HMS Intrepid, cerca de 80 quilômetros em um terreno acidentado. Ali ficaram as unhas, neste mesmo trajeto em que, ao lado de sua tropa, passou fome. Estranhamente, Southall nunca achou que fosse morrer naquele abril de 1982.
“Eu estava totalmente preparado, apesar de ser tão jovem. Acho que, na verdade, um paraquedista jamais sofreria de falta de confiança. Até mesmo quando ficamos velhos e barrigudos, continuamos confiantes”, contou. “Mas nunca subestimamos os argentinos, o que seria um grande erro. Sinceramente, não lembro de ninguém criticá-los. Tem gente que ainda fala disso nos nossos encontros dos veteranos, do respeito que tínhamos pelos argentinos”, relatou.
Remendos do tempo
Southall disse que, há 10 anos, talvez não aceitasse conversar com a reportagem. Muito menos teria pedido para afiliar-se à associação de veteranos argentinos. “Vamos amadurecendo com o tempo”, observou. Durante a mais intensa batalha da guerra, travada em Monte Longdon, nos arredores de Porto Stanley, o ex-paraquedista perdeu quatro amigos próximos. Um deles, ferido gravemente, morreu em pânico, em suas mãos. “Ainda fico nervoso ao falar disso”, admitiu, com lágrimas nos olhos, na única vez em que se emocionou durante a entrevista.
Arquivo Pessoal
Southall visitou Monte Longdon em 2002, onde viu amigos morrerem, para prestar homenagem a ex-combatentes
Mesmo assim, como quem remendou o passado, afirma não ver os ex-combatentes argentinos como inimigos, razão pela qual tentou integrar-se à Aveguema (Associação de Veteranos da Guerra das Malvinas). “Não desejo nada de ruim para os soldados que lutaram contra mim, de forma nenhuma. Lembro deles atirando, tentando me matar. Mas foi uma situação fora do comum, e infelizmente fizemos o que tínhamos de fazer. Tínhamos de tomar Mount Longdon. E agora, olhando aquilo, parece apenas um monte de pedras, o que faz você pensar: por que mais de 100 pessoas morreram por aquilo? Naquele momento era importante”, explicou.
Southall disse, no entanto, que o e-mail enviado aos veteranos que lutaram pelo lado oposto nunca havia sido respondido. O desejo de integrar-se à associação e estabelecer um contato menos superficial do que o que já mantém com veteranos argentinos adicionados no Facebook ficou em stand by. Até a conversa com a reportagem.
O lado argentino
Criada em 2000 por ex-combatentes argentinos da Guerra das Malvinas, a Aveguema reúne hoje 2.900 sócios, dois quais 2.500 são veteranos e outros são aderentes, familiares de soldados e colaboradores. Juan Carlos Ianuzzo, capitão de barco e secretário administrativo da associação contou que não são raros os casos de veteranos argentinos que mantiveram contato com seus ex-inimigos.
“O conflito não é com uma pessoa, mas sim com um país”, explica Ianuzzo. “Apesar da raiva dos soldados de ambos os lados no momento da guerra, não tem motivo para ficar bravo com um soldado inglês. Fomos defender o que cada um considerava seu”. O comandante de um batalhão argentino, já falecido, por exemplo, durante anos “se viu assiduamente com o comandante do batalhão de paraquedistas contra o qual combateu e destruiu”, relata.
Segundo o capitão, um ex-combatente britânico veio à Argentina por intermédio de um jornalista irlandês que fez contato com a Aveguema para devolver uma corneta roubada de um argentino durante as batalhas. Trata-se de Tony Banks, ex-paraquedista do 2o. Regimento, que acaba de lançar um livro, Storming the Falklands, relatando o episódio. “Ele queria vir aqui só para devolvê-la. Nós averiguamos o número de série da corneta para identificar de quem era, e juntamos os dois”, garante.
O último dos exemplos dados pelo argentino sobre a frequência de casos que demonstram a falta de ressentimento entre os combatentes é o de um veterano britânico que mandou e-mail no ano passado pedindo para afiliar-se à associação – Ianuzzo estava falando de Southall: “Fizemos reuniões diretivas para decidir se ele seria aceito como sócio ou não. No fim, decidimos que sim, mas mandamos uma carta por e-mail pedindo os dados dele e ele nunca mais respondeu”.
Luciana Taddeo
Ianuzzo: “O conflito não é com uma pessoa, mas sim com um país. Não tem motivo para ficar bravo com um soldado inglês”
Ao tomar conhecimento da versão de Southall de que a solicitação de afiliação não havia chegado a seu e-mail, Ianuzzo se comprometeu a estabelecer novamente o contato com o veterano inglês. “Como ele não respondeu, não sabíamos quais eram as intenções dele”, disse, avaliando: “Não sei qual distintivo argentino ele quer usar em seu uniforme, mas podemos mandar o da associação. Ele já tinha sido aceito como sócio”.
Um gesto de reconciliação
Ontem (01/04), um gelado domingo de sol no Reino Unido, Southall estava bastante contente. Após a intermediação do Opera Mundi, ele e Ianuzzo trocaram e-mails. Hoje, 30 anos depois, o veterano da batalha mais sangrenta, que deixou mais de 100 mortos em Monte Longdon é membro efetivo da Associação de Veteranos da Guerra das Malvinas. “Estou feliz. Foi meu gesto de reconciliação. Agora aguardo o distintivo para usar. O Carlos (Ianuzzo) disse que vai me mandar”, avisou Southall, por telefone.
Para o militar britânico, o processo de reconciliação – consigo mesmo e com o ex-inimigo – claramente demandou muita energia. Uma de suas colocações mais marcantes, que demonstra nas palavras uma posição firme, de quem hoje vê a guerra por outros olhos, foi logo no primeiro contato feito pela reportagem, ainda por e-mail, em meados de março.
Nele, Southall afirmou: “É função dos políticos decidirem onde soldados lutam, e é função dos soldados lutar e morrer. Depois do fim de uma guerra, é função dos soldados perdoar e esquecer e cuidar de todos os veteranos. Sei que recebemos boas-vindas muito melhores que os veteranos argentinos e isso o povo argentino precisa corrigir.”
Fonte: Ópera Mundi.