Por Sayid Marcos Tenório (*).
“E não creais que aqueles que sucumbiram pela causa de Allah [Deus] estejam mortos; ao contrário, vivem, agraciados, ao lado do seu Senhor.” (Alcorão 3:169)
O 25 de janeiro marca o aniversário dos 189 anos da maior revolução conduzida por mulheres e homens negros escravizados, em busca de liberdade e contra a escravidão e os maus-tratos, que sacudiu a cidade de Salvador na madrugada do último dia do mês sagrado do Ramadan de 1835. Este episódio glorioso da nossa história ficou conhecido como Revolta dos Malês, porque os revolucionários eram de origem Haussá, Fulani, Yorubá, Aio Quija e Nagô, chamados de Malês, devido ao fato de que, na líbgua yoruba, Imalê é a designação para muçulmano.
Embora não representassem a hegemonia religiosa das pessoas africanas escravizadas, os Malês tinham um peso significativo por serem uma população que sabia ler e escrever, além de serem dotados de uma cultura bem mais larga do que muitos senhores de escravos.
A revolta foi preparada e planejada para a eliminação do regime local português e das injustiças praticadas contra os negros, a emancipação dos escravizados e a liberdade para exercer rituais religiosos. Isso porque as pessoas escravizadas viviam à margem da lei, já que a Constituição brasileira de 1824 estabelecia, no art. 5º, que o catolicismo era a religião do Estado, a única com direito a celebrar cerimônias públicas, construir e manter templos, enquanto as religiões africanas eram perseguidas e tratadas como caso de polícia.
Reuniões para planejar e mobilizar os rebeldes passaram a ser realizadas nas casas dos escravos libertos, nas senzalas, nas mesquitas e nos terreiros, onde, no caso dos Malês, se misturavam as orações islâmicas, as aulas de religião e de escrita e a recitação dos versos do Alcorão, e de onde o imam Mala Mubakar fez o chamado ao Jihad (resistência), escrito na forma de um documento em árabe em que pedia aos muçulmanos e às demais pessoas escravizadas que se preparassem para a revolta.
O plano rebelde não foi rigorosamente aplicado, talvez em decorrência dos rumos que tomaram os acontecimentos e da antecipação do início da revolta, em face da delação da negra nagô emancipada Guilhermina Roza de Souza, companheira um dos líderes do movimento, o nagô Domingos Fortunato, e do ataque surpresa das forças policiais ao local em que os Malês estavam reunidos para compartilharem o ifhtar, a refeição comunitária ingerida após o pôr do sol com a qual se quebra o jejum diário durante o mês do Ramadan.
As tropas governamentais cercaram a casa de Manuel Calafate, na Ladeira da Praça, na madrugada de 24 para 25 de janeiro. No local se encontravam cerca de 60 homens armados com espadas, lanças, pistolas e espingardas, que reagiram ao cerco policial e começaram a atirar. Pegos de surpresa, os rebeldes se dividiram e se espalharam pela cidade. Muitos deles vestiam roupas típicas islâmicas, uma espécie de abadá branco, que as autoridades policiais definiram como “vestimenta de guerra”, além do takia, o gorro islâmico, semelhante ao usado no candomblé e na umbanda.
Após o confronto inicial, os revolucionários saíram por ruas, becos e vielas de Salvador, convocando os escravizados e os libertos a se unirem à revolução. Atacaram o palácio do Presidente da província, invadiram quartéis, enfrentaram tropas e fragatas de guerra ancoradas no porto da cidade. Boa parte do grupo marchou para a Ajuda, em direção à Câmara Municipal, com a intenção de arrombar a cadeia e libertar os líderes que haviam sido presos, principalmente Pacífico Licutã.
Deu-se uma verdadeira carnificina, pois era evidente a superioridade das forças oficiais. Enquanto os Malês estavam armados com lanças, espadas, porretes e algumas poucas pistolas e espingardas, os policiais portavam pistolas, baionetas e farta munição. Os revoltosos foram encurralados antes do nascer do sol daquele domingo de 25 de janeiro, no Quartel da Cavalaria, localizado em Água de Meninos, onde ocorreu a batalha final, com o martírio de 73 combatentes malês. Seus corpos foram jogados em uma cova comum no cemitério de Salvador. No confronto, morreram 14 soldados das forças oficiais e um indefinido número de feridos foi registrado.
Após os confrontos, deu-se início a uma verdadeira caçada aos revoltosos. O chefe da Polícia baiana, Francisco Gonçalves Martins, baixou uma portaria que autorizava uma devassa completa em todas as casas pertencentes a negros africanos. Os escravos só podiam circular pelas ruas de Salvador com ordem escrita dos seus senhores, detalhando para onde iam e o que fariam. Além disso, os senhores foram obrigados, sob pena de elevadas multas, a forçar a conversão de seus escravos ao catolicismo.
Naquela época, os muçulmanos já eram uma forte referência para a comunidade negra de Salvador. Os escravizados libertos recorriam às diversas religiões em busca de conforto espiritual e esperança e para pôr dignidade em suas vidas. No caso dos Malês, os textos e a pregação corânica davam esperança e inspiração para a resistência de mulheres e homens discriminados, exilados, perseguidos e escravizados, através da sua mensagem libertadora, e porque era uma religião atraente para os subalternos sociais, devido à sua mensagem fortemente crítica às injustiças sofridas pelos seus seguidores.
A Revolta dos Malês não foi uma eclosão violenta e espetacular surgida espontaneamente ou de um incidente qualquer e sem plano preestabelecido. Mas uma revolta planejada nos seus detalhes, precedida de todo um período organizativo, sem o qual não se poderá compreender as proporções que ela alcançou em uma das principais províncias do Império colonial português no Brasil.
Para se dimensionar a importância do episódio, a Revolta dos Malês mobilizou entre 600 e 1.000 homens, o que equivale, comparando-se proporcionalmente com a população da cidade de Salvador nos dias de hoje, a aproximadamente 50 mil pessoas.
A Revolta dos Malês foi um importante movimento antiescravidão, que deu uma grande lição de garra e luta pela liberdade que engrandece a história das lutas sociais no Brasil, com seus feitos praticamente omitidos pela historiografia oficial.
Glória eterna à memória dos homens e das mulheres, de todas as raças e credos religiosos, que se uniram e lutaram no Ramadã de 1835 contra as injustiças, ousando “tomar o céu de assalto” para pôr fim à escravidão no Brasil e conquistar a liberdade.
(*) Sayid Marcos Tenório é historiador, especialista em Relações Internacionais e vice-presidente do Instituto Brasil-Palestina (Ibraspal). Autor do livro Imalês: fragmentos da presença de muçulmanos nas revoltas contra escravidão no Brasil (Appris, 2022).