Mais de 15 mil pessoas esperam por moradia na capital

    1-6VqWbl9estfK0WI-Utq7RAPolíticas públicas e verbas são insuficientes, levando famílias a optar pela informalidade

    Por Gabriel Shiozawa e Mateus Vargas.

    O terreno escondido às margens da estrada que corta o Maciço do Morro da Cruz é tão íngreme que as casas parecem estar umas sobre as outras, a ponto de crianças brincarem equilibrando-se em pedras e raízes no chão de terra batida. No espaço está a Ocupação Palmares, criada no início de 2013 quando Valdir dos Santos, o Neninho, decidiu entrar na mata para construir o barraco, sustentado por galhos e coberto por lona. A ocupação cresceu. Hoje é formada por casas de madeira firme no solo, onde moram, principalmente, trabalhadores da construção civil e limpeza, a maioria membros da mesma família e migrantes de Maceió (AL).

    Assim como a Palmares, as ocupações Amarildo e Contestado atraíram atenção da mídia e motivaram debates sobre habitação na Grande Florianópolis. Apesar de evidente nestes casos, o déficit de moradia vai além das cerca de 750 famílias das três ocupações: apenas na capital, são 15.800 inscritos no cadastro à espera de residência própria.

    Para o diretor da Secretaria de Habitação e Saneamento de Florianópolis, Américo Pescador, ocupações como a Palmares existem por falha na fiscalização. “Essas famílias vieram de fora, não podem passar sobre o cadastro habitacional. O caso deve ser tratado com o proprietário, na justiça. Nossa política é para quem já estava em algum local, agindo pacificamente”. O diretor traça como caminho correto para famílias o ingresso na fila de espera por moradia.

    A Prefeitura adota dois meios para aplicar o dinheiro da habitação: um para demanda específica e outro para a difusa. A primeira é resquício de políticas anteriores ao Minha Casa Minha Vida e não atende específicamente aqueles que estão no cadastro habitacional. O foco são moradores de áreas irregulares, como Chico Mendes, Mocotó e Vila União, que serão urbanizadas. Eles recebem subsídio total da nova moradia. Em janeiro deste ano, o prefeito Cesar Souza Júnior participou da entrega de casas no Morro do 25, construídas em programas de demanda específica. Na ocasião, aproveitou para criticar moradores da Ocupação Amarildo: “Tem gente há 30 anos esperando casa e não consegue. Esse pessoal chegou recentemente em Florianópolis, invadiu o Norte da Ilha e quer que a gente resolva”, disparou.

    Cinco anos depois do início do Minha Casa Minha Vida (demanda difusa), saiu do papel a primeira moradia para famílias da faixa mais necessitada, que recebem entre zero a três salários mínimos. Cerca de 80% da fila por moradia, 12 mil inscritos, está nesta faixa salarial. A demora, segundo Américo Pescador, ocorreu devido a questões institucionais, como a necessidade de alterar zoneamentos pelo Plano Diretor. A construção do condomínio Jardim Atlântico iniciou em maio deste ano. Prevê 78 unidades e em dois anos de obras. Há outros quatro projetos em execução ou fase de aprovação, que devem beneficiar 726 famílias. Segundo Américo Pescador, a meta da Secretaria é zerar o déficit habitacional em 15 anos, prevendo orçamento anual de 80 milhões para construção de residências e urbanização.

    Por questões como a revogação do aumento do IPTU e falta de meios para captação de recurso, a Secretaria opera com verbas abaixo do previsto, e a meta anual não será alcançada. “O recurso está em Brasília e temos de entrar nos programas federais, que lidam com burocracias. Fica difícil”, explica Américo Pescador. “Vencer o déficit total sem verbas é uma utopia.”

    Antes do Jardim Atlântico, apenas moradias para quem recebe entre quatro e dez salários mínimos foram construídas pelo programa Minha Casa Minha Vida em Florianópolis. Estas moradias são obtidas com capital privado e dependem de parcerias entre mercado imobiliário e prefeitura, que capta recursos e dá condições fiscais. Segundo Américo Pescador, as construtoras não têm interesse em moradias para famílias da faixa mais baixa de renda e, nestes casos, o poder público é quem deve resolver o déficit.

    Para concorrer à moradia, o interessado deve se cadastrar pela internet e torcer para se encaixar nos critérios da seleção. Os beneficiados que recebem até três salários mínimos pagam aluguel entre 25 e 75 reais, equivalente a 5% do salário, durante dez anos.

    Em média, o valor de cada casa é 64 mil reais. A verba vem de Brasília e a Prefeitura a utiliza para compra do terreno e construção das moradias. As condições de pagamento do imóvel para outras faixas salariais variam conforme o convênio. Algumas famílias aguardam há quase três décadas.

    O lar de quem ainda não tem CEP

    Moradora da Ocupação Palmares, Maria*, 30 anos, se debruça na fachada da casa de dois cômodos, uma das melhores do terreno, com direito a banheiro com paredes de concreto e alguns móveis novos?—?comprados com dinheiro que sobrou por não pagar aluguel. Ela acabara de chegar da Universidade Federal de Santa Catarina, onde trabalha na limpeza, contratada pela empresa Ondrepsb. Maria não quis se identificar para a reportagem do Zero, já que teme represália na Universidade. “Já ouço de tudo de filhinhas de mamãe porque limpo banheiro, ainda vão ficar me julgando por morar em ocupação.” O pouco mais de um salário mínimo que recebe, somado ao rendimento do marido, pedreiro, antes não dava conta dos gastos do lar e aluguel. A família gastava entre R$ 300 e R$ 500 por mês para morar em kitinetes na região da Serrinha e mais R$ 200 para pagar alguém que cuidasse dos filhos, que não conseguiam vaga em creches da região. “Nos meses de aperto, a gente só comia por causa do dinheiro do Bolsa Família.”

    Casos como o de Maria existem aos milhares. Sem condições de comprar uma moradia própria ou seguir pagando aluguel, recorrem à chamada “cidade informal”?—?ocupações, casas em zonas de risco, comunidades e favelas. Pode parecer total ausência de política de habitação do estado, mas para Elson Pereira, professor de Planejamento Urbano do curso de Geografia da UFSC, é justamente o contrário. “As favelas são a própria política habitacional. O estado não deu conta destas famílias e assumiu a favela como saída. Em Floripa, há uma a cidade formalizada, onde existe zoneamento e se pode construir. Como parte da população não é assimilada pelo mercado imobiliário, ocupa espaços não edificantes. Há uma ordem nisso.”

    Quando chegou em Florianópolis, mais de dez anos atrás, “Keka,” como quer ser chamada, foi morar no Morro da Penitenciária, com parentes de Maceió. De lá, foram retirados, pois estariam em área de risco. “Hoje tem gente na casa de novo, não entendo.” Keka morou de aluguel em vários bairros da Ilha até que o irmão Neninho a convidou para invadir o terreno da Palmares. Nos dias seguintes, ela voltava do trabalho, colocava roupas compridas e ia mata adentro com facão. “Eu tava tão necessitada que dormi os primeiros dias na casa sem porta. Precisava sair do aluguel.” Depois, carregou as madeiras morro acima para finalizar o barraco. O próximo passo será o banheiro. “Minha mãe tá doente, tenho de dar banho com ela sentada na cadeira.” Keka sequer cogita trocar Palmares por moradia formal. “O que eles dão pra gente eu não considero como minha casa, ou minha vida. Mal tem lugar para crianças brincarem, é tudo apertado, parece uma favela”, reclama.

    A Ocupação Palmares fica numa altura do morro em que, à direita de quem sobe, vê-se bairros do entorno do Itacorubi, UFSC e Beira-Mar. À esquerda, há uma Florianópolis distinta: favelas do Maciço do Morro da Cruz. À margem da cidade formal, Palmares, Contestado e Amarildo recebem o apoio de entidades, formada principalmente por estudantes, que prestam apoio jurídico e assistência social. Existem assembleias e leis internas, como a proibição do tráfico de drogas.

    Medo ronda ocupação

    Todos os moradores de ocupações receiam expulsão violenta. Na Palmares, diversos barracos já foram derrubados pela polícia. A última ação ocorreu na segunda de Carnaval, quando policiais militares com spray de pimenta e balas de borracha derrubaram uma moradia. Moradores reagiram indo à Prefeitura e conseguiram um termo que impede a entrada da polícia.

    Já a Contestado surgiu a partir da promessa de campanha do ex-prefeito de São José Djalma Berger, que, em 2012, autorizou 120 famílias a ocuparem terreno do bairro José Nitro em troca de votos. Após a derrota nas urnas, as famílias receberam prazo de uma hora para retirar os pertences das casas e foram despejadas pela PM. Pela falsa promessa, Berger foi condenado pela Justiça Eleitoral e está inelegível por oito anos. Os desalojados foram para um ginásio e, por fim, ao terreno que ocupam atualmente no bairro Serraria. A atual gestão garante a permanência dos moradores no terreno enquanto busca espaço para construir moradias.

    A Amarildo é a de maior repercussão. De dezembro a abril, 750 famílias ocuparam o terreno à margem da SC-401. Os moradores foram transferidos para Maciambu, em Palhoça. Tentaram ocupar outra área, no bairro do Rio Vermelho, mas foram expulsos em menos de 24h. Podem seguir para Canoínhas. “A mesma sociedade que atrai a constução civil [função da maioria dos ocupantes] como área da economia que seria benéfica à cidade, nega a forma da profissão se reproduzir: a força de trabalho. É das contradições mais terríveis. O ganho da construção civil é privado, já o ônus é do Estado”, diz Elson Pereira sobre a reação às ocupações. “O ideal para muitos seria que os trabalhadores existissem durante as 8h de trabalho, depois evaporassem. Só serve enquanto fornecedor de mão-de-obra. Como cidadão, humano e morador de Florianópolis, não.”

    Sem pagar aluguel, casal investe em negócio próprio

    Um dos locais mais movimentados da Ocupação Contestado é o bar do casal Índio e Saulita Cardoso. Às 18h de um domingo, o local está cheio, entre pessoas jogando sinuca, tomando cerveja ou simplesmente conversando e ouvindo música com o som do carro. Só não pode exagerar no volume: “Tem muita gente que chama a polícia por causa do barulho. Outro dia, vieram aqui porque aconteceram 16 ligações, e eram 20h ainda” reclama Índio. Quem não manera no volume, por outro lado, são as dezenas de crianças que passam correndo, gritando e brincando.

    Presença garantida na mercearia, os pequenos compõem uma parcela significativa dos consumidores: só em cinco minutos de conversa com o Zero, Saulita vendeu dois pirulitos, duas rapaduras, três chocolates Batom e algumas balas. Tudo registrado no caderninho do fiado, inteligível apenas para a dona do negócio. Conta que já conhece “todas as crianças, sempre anoto e depois os pais vêm pagar. Às vezes meus filhos ficam atendendo e aí me chamam ‘mãe, é filho de quem esse?’ Já sei todos.”

    Vender fiado é um dos motivos do sucesso do bar e também uma das razões que levaram à sua criação. Índio, que também trabalha na construção civil, conta que além de complementar a renda, o casal tinha outro desejo quando criou o bar: queriam ajudar a comunidade. O negócio fica no centro da Ocupação e facilita as compras dos moradores, além de servir como ponto de encontro e local pra cafés da manhã, almoços e jantares. Com preços semelhantes aos de mercados formais, o método de pagamento é atrativo: o fiado é acertado de acordo com o recebimento do salário. Pode ser semanal, quinzenal, mensal. Índio considera que está contribuindo com a comunidade e vê o reflexo disso: “todo mundo percebe, aí ajuda e paga certo, sem atraso.”

    O caso de Saulita e Índio, embora chame a atenção, não é exceção. Para famílias que comprometiam, na média, entre um quarto e dois terços do orçamento mensal com locação de moradia, deixar de pagar aluguel representa um incremento considerável na renda.

    Diversos moradores contam que tinham de fazer uma escolha: pagar o aluguel ou comer. Incapazes de lidar todo mês com o dilema, sair da moradia formal torna-se uma alternativa. As necessidades financeiras superam as inconveniências, como falta de saneamento básico, espaços pequenos e insegurança jurídica sobre a propriedade da própria casa.

    *Nomes fictícios para preservar a identidade dos entrevistados

    Fonte: Jornal Zero UFSC.

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