Por Alexandre Ganan de Brites Figueiredo.
No início da semana passada, o governo argentino anunciou oficialmente um acordo para a instalação em seu território de uma base de operações da DEA, sigla em inglês para Drug Enforcement Administration, a agência antidrogas do Estado norte-americano. Mais especificamente, essa base se localizará na Tríplice Fronteira, região de importância central para a geopolítica do Cone Sul.
Caso esse acordo se concretize (ainda depende de aprovação no Legislativo nacional), haverá uma força estrangeira, armada e aparelhada para monitorar o coração do Mercosul.
Sob o clássico pretexto de combater o narcotráfico e o terrorismo, além de oferecer ajuda humanitária em desastres naturais e treinamento para agentes policiais argentinos, a base será implantada em Posadas, capital da província de Misisones, fronteiriça com o Paraguai e à beira do Rio Paraná. O anúncio foi feito pela ministra da Segurança, Patricia Bullrich, em viagem pelos EUA. Oficialmente, tratou-se de um pedido do próprio governo argentino…“oficialmente” sempre é assim, mas em se tratando do grupo que hoje povoa a Casa Rosada, pode até ser verdade que o “pedido” tenha partido mesmo dali.
O anúncio deste mês vinha sendo preparado desde a vitória de Maurício Macri nas eleições presidenciais argentinas de 2015. Já em maio de 2016, o então presidente Barack Obama realizou uma visita oficial a Buenos Aires. Lá, obteve de Macri a promessa de cessão de território para a instalação não de uma, mas de duas bases militares norte-americanas em território argentino. A primeira ficaria na Terra do Fogo, projetando-se sobre a Antártida. A segunda seria justamente em algum ponto da Tríplice Fronteira.
O pretexto (porque mesmo em tempos hipócritas o império e seus procônsules sentem a necessidade de oferecer algum) era o mesmo oferecido por Patricia Bullrich: apoio no combate ao terrorismo e narcotráfico, além de realização de pesquisas de cunho científico. Curiosamente, não há notícias sobre diminuição do tráfico de drogas em nenhum dos países que aceitou a implantação de bases da DEA. Pelo contrário, aliás.
Trata-se de velhas desculpas para justificar a presença militar em solo estrangeiro. A verdadeira intenção, nem tão escondida assim, é prosseguir cada vez mais intensamente no processo de retomada da hegemonia de Washington sobre a América Latina. Desde a derrubada de Manuel Zelaya em Honduras, em 2009, até esse acordo pelas bases na Argentina, o movimento é o mesmo: solapar a cooperação e a integração regionais construídas por governos progressistas preocupados com a soberania de suas nações. Uma base militar, ainda que “policial”, trará consigo os serviços de espionagem e um aparato ainda mais sofisticado para influenciar o processo interno de tomada de decisões e deixar em risco a soberania dos vizinhos fronteiriços.
Além do claro intento recolonizador, há também uma preocupação da Secretaria de Estado em barrar a ascensão da China e a influência russa na região. Pequim e Moscou, no tabuleiro da disputa aberta pela conformação do poder mundial no século XXI, desafiam – ainda que de maneira suave – a histórica influência dos EUA na América Latina.
Por um lado, como se queixou Sergei Lavrov, ministro russo de Relações Exteriores, os EUA pressionam países da região a não comprar armamento russo. A Venezuela, isolada, buscou apoio em Moscou e sofre com constantes ameaças de sanções e até mesmo de uma invasão militar.
Por outro lado, o avanço chinês também preocupa Washington, especialmente porque os métodos de Pequim são diversos: baseiam-se em propostas de investinentos e parcerias. No noroeste da Argentina, por exemplo, que Macri abriu para a instalação da base da DEA, há dinheiro chinês investido na construção de uma importante ferrovia.
Durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, a China chegou a dar a entender que os países latino-americanos seriam bem-vindos na construção da chamada nova rota da seda, um complexo de infraestrutura de transportes e escoamento de mercadorias que pretende ligar a região industrial da China à África e Europa, passando pelo centro do continente asiático. Atualmente, de nossa região apenas o Panamá está incorporado a essa iniciativa, decisiva para a projeção do poder de Pequim.
Em reação, os EUA bancam políticos e governos aliados e usam a velha política do “divide et impera”, que já estava presente entre os mandamentos expansionistas da Roma antiga. O anúncio da instalação da base de Posadas ocorreu logo após as visitas feitas por Rex Tillerson, Secretário de Estado dos EUA, a alguns países da América Latina. O resultado mais evidente dessa viagem, do ponto de vista do jogo de poder regional, foi a escolha da Argentina como parceiro preferencial de Washington (ao menos, por enquanto).
Dividir para reinar: a reação do governo Temer, no Brasil, se deu à altura do servilismo de sua política externa. Reclamou, com “perplexidade” da “miopia” do governo norte-americano ao excluir o Brasil do giro de Tillerson pela região. Ora, Temer e Macri são farinha do mesmo saco. Ao escolher Macri, os EUA não perdem a vontade de obediência de Temer. Na verdade, ganham uma disposição maior do governo brasileiro para atender aos ditames de Washington e se mostrar melhor “parceiro” que Buenos Aires. Assim, foi instrumentalizada uma velha rivalidade regional esculpida pelas elites de Brasil e Argentina. Como sempre, não é nenhum dos dois países do sul quem ganha com isso.
Além de, por si só, ser alarmante a presença de forças especiais estrangeiras no território mais geopoliticamente sensível do Mercosul, tanto a decisão anti-soberanista do governo argentino como o esperneio indigno do governo brasileiro evidenciam mais uma vez a falta de rumos que as forças conservadoras implantaram nos dois países. “Estão desmanchando com os pés tudo o que fizemos com as mãos”, dizia um Simón Bolívar imaginado por Gabriel Garcia Márquez em “O General em Seu Labirinto”. Hoje, mordendo a isca lançada por Tillerson, Temer e Macri colocam em risco o futuro e a soberania da região para disputar o troféu de melhor capacho do império.
Não se pode condenar um governo por delinear e defender seus interesses. Washington, Pequim e Moscou sabem o que querem quando vem até nós, seja com armas e ameaças, seja com ofertas de negócios. Conhecem seus interesses e buscam defendê-los, como cabe a potências que estão no centro da disputa por uma nova conformação do sistema internacional.
Condenável é agir em desconsideração com os interesses soberanos de seus Estados. O primeiro passo para reagir a qualquer ingerência – especialmente as que acompanham as correntes dos EUA, que conhecemos bem – é conhecer e defender nossos próprios interesses enquanto países independentes. Macri, Temer e tudo o que eles representam já provaram seu descaso e incapacidade para caminhar nessa direção.