A opressão a mulheres por meio do judaísmo ortodoxo complementa o machismo secular israelense e serve aos propósitos do projeto sionista no país
Por Elena Judensnaider.
Bendito és Tu, A-do-nai, nosso D-us, Rei do Universo, que não me fez mulher.
Este trecho faz parte da benção matinal judaica (Manual de Bençãos, Editora Chabad), que é recitada todas as manhãs por judeus, enquanto judias terminam a reza substituindo a parte destacada por que me fez conforme Sua vontade.
Flickr/meghamama
Menina judia lê o Torá em Jerusalém, próxima ao Muro das Lamentações
Eu cresci em um ambiente judaico praticante que, apesar de não ortodoxo, compartilhava espaços sagrados com famílias mais religiosas. Quando criança, me disseram para recitar a frase acima sempre ao acordar. Vi minha mãe ir ao mikvé, local em que acontece um ritual para purificação da mulher após cada menstruação e o nascimento de um filho. Vi minha avó usar peruca, porque judias religiosas não podem mostrar seu cabelo natural para qualquer homem que não seja da família. Fui convidada para casamentos de garotas de menos de 20 anos. Ouvi de professoras de escolas judaicas que as garotas não precisavam aprender tanto – afinal, logo casariam e teriam filhos e suas vidas se resumiriam a isso. Ouvi que os rabinos acompanhavam o ciclo menstrual das mulheres e as orientavam a ter relações conjugais com seus maridos nos dias férteis. Fui a sinagogas em que as mulheres se sentavam de um lado e os homens de outro. Em algumas, os homens ficaram no andar inferior, de frente à Torá (livro sagrado judaico), enquanto às mulheres ficavam reservadas poucas cadeiras, no andar superior, de onde mal se conseguia assistir às rezas.
Quando ia à sinagoga, eu tirava a roupa cotidiana e me vestia de acordo com a ocasião: precisava cobrir meu corpo entre os joelhos e os cotovelos, e pra isso tinha separados camisas três-quartos, saias que iam até depois do joelho e sapatos fechados. Eram as “roupas de sinagoga” e eu não questionava a mudança das vestimentas, considerando que se tratava de algo relacionado à etiqueta daquele lugar tão diferente da minha casa. Mas me deixava muito chateada que uma amiga ortodoxa da minha idade não pudesse assistir televisão comigo, e eu achava estranho que conhecidas mais velhas estivessem em vias de se casar com quem não conheciam.
Uma vez, ainda criança, reclamei para minha tia que tudo aquilo não era justo. Ela me respondeu firme, sem perceber a grande lição que estava me dando sobre relativismo cultural: “para elas, isso é felicidade”. Não pensei mais no assunto nos anos seguintes, procurando acreditar que minha tia estava certa.
Mas ela, que é mulher e judia, vai lutar pela Palestina?
Um familiar contou que ouviu essa frase, relacionada a mim, vinda de um funcionário de uma instituição judaica (não sei qual), quando teve conhecimento de que eu estava começando a militar a favor da Palestina. Imagino que ele não soubesse que, assim como eu estava me introduzindo e engajando na causa palestina, também me aproximava do feminismo.
A verdade é que foi ótimo ter ouvido essa frase, pois ela me deu muito mais clareza para entender a necessidade de lutas transversais, ou seja: não adianta lutar contra o sionismo sem lutar contra o machismo; não adianta lutar contra o machismo sem lutar contra o racismo e por aí vai. As lutas se complementam. Percebi que por ser mulher eu tinha ainda menos direito de me posicionar contra o sionismo e suas políticas fascistas. Isso se deve, além de ao machismo estrutural do qual os judeus não escapam, ao machismo particular reproduzido pelo judaísmo – principalmente o ortodoxo.
Mas não é exatamente sobre isso que quero falar.
Os grupos políticos ligados ao judaísmo costumam se colocar no campo ideológico oposto ao do islamismo, destacando principalmente os perigos que o extremismo islâmico pode representar para mulheres. Talvez, por isso, seja surpreendente que o judaísmo não seja isento de práticas religiosas e culturais que segregam as mulheres. A questão é: o julgamento de um grupo sobre religiões alheias é determinado pelo poder de que o grupo dispõe. Não, não se trata de campo ideológico. Trata-se de poder: ainda que a maior parte das religiões monoteístas seja patriarcal, quem tem poder, tem legitimidade pra exercer o machismo; quem tem mais poder ainda, pode exercer o machismo sem ser condenado internacionalmente.
Flickr/Harsh1.0
Jovens soldadas que fazem parte das Forças de Defesa de Israel
Não estou, aqui, querendo comparar qualitativamente as obscenidades perpetradas pelo Estado Islâmico com aquelas cometidas pelos Haredim (judeus ortodoxos) ou ainda com o que pregam alguns líderes evangélicos no Brasil. Minha intenção é apenas a de demonstrar que os crimes à humanidade praticados por grupos religiosos não devem ser analisados na chave cultural (ou, ainda, moral), e sim na chave do poder. Porque eles existem em todos os grupos, mas o desenvolvimento ou a divulgação dos atos é proporcional ao seu poder, seja ele econômico, social, político ou militar.
É difícil nos distanciarmos dos paradigmas que o relativismo cultural nos impõe para discutir política, e isso inclusive dentro da esquerda: muito se confunde a defesa do oprimido com a defesa da cultura ou religião do oprimido, perdendo de vista as motivações de fato da opressão. É a condição social de origem dos imigrantes que determina a quem a xenofobia será dirigida. Na Europa, por exemplo, os russos que imigraram no início do século XX não sofreram o preconceito que os armênios sofreram em seguida e que os árabes sofrem hoje, justamente por conta de terem pertencido à elite em seu país de origem . Ou seja: poder.
Os Haredim
Em Israel, por exemplo, os ortodoxos judeus têm muito poder.
Ainda que haja grande oposição ao extremismo religioso judaico dentro do país, a situação é especialmente preocupante devido ao interesse sionista nesse setor da sociedade.
Para que o governo tenha legitimidade para reivindicar o território é importante que haja uma população predominante na região. Se formos considerar Israel e os territórios ocupados, a população judaica não chega a metade. Essa é uma questão que existe desde a partilha da Palestina: apesar de o plano conceder 53% do território aos judeus, havia, à época, 600 mil judeus e 1,3 milhão de árabes na região. De lá para cá, a questão demográfica passou a ter muita importância. Para resolvê-la, o governo israelense promove campanhas de Aliá, ou seja, a imigração de judeus para Israel, baseadas na Lei do Retorno, que permite a concessão de cidadania israelense a qualquer judeu do mundo.
Flickr/ Alan Kotok
No Muro das Lamentações há uma divisão entre homens e mulheres em Jerusalém
E é aí que entram os ortodoxos: com uma média de 6 a 7 filhos por família, os ortodoxos respondem a uma demanda urgente do Estado sionista de povoar e, consequentemente, controlar a região. Nesse contexto, e levando em consideração que, para o judaísmo, só é judeu quem tem a mãe judia, a mulher serve meramente como procriadora. Para isso, como incentivo ao estabelecimento e procriação dos ortodoxos, o governo oferece a eles isenção de impostos; dispensa do exército e subsídios financeiros.
Com isso, os ortodoxos têm muito poder. E, por ter poder, fazem mulheres serem detidas por rezar “como os homens”. Proíbem as mulheres de cantar publicamente, de aparecer em outdoors ou de ser premiadas. Colocam em circulação ônibus com divisórias , para que as mulheres se sentem na parte de trás e segregam as mulheres até nas calçadas. Agridem e chamam uma garota de oito anos de prostituta por não usar roupas “corretas”. Segregam as mulheres nas ruas. Apagam lideranças políticas mulheres de fotografias de grande repercussão mundial. Se recusam a se sentar ao lado de mulheres em voos internacionais.
Sim, alguns desses casos são pontuais e não devemos generalizar a conduta de todo um setor da sociedade. Mas é importante notar duas coisas com relação aos ortodoxos judeus: a proteção institucional vinda do governo e a blindagem internacional vinda da mídia. Por que economizar a condenação moral, sempre tão bem-vinda à grande mídia, e ignorar uma problemática que é objeto de preocupação crescente entre os próprios israelenses?
Enquanto isso, programas de propaganda sionista (conhecidos como Hasbará) continuam a divulgar: Israel é o país mais democrático do mundo.
Wikicommons
Mehadrin’: linhas de ônibus com segregação sexual, ilegais desde 2011. Ainda assim, há preconceitos com mulheres nesses ônibus
Fonte: ÓperaMundi