Luta Antimanicomial comemora data com críticas às políticas e privatização da saúde

Por Raquel Júnia*.

Nesse mês de maio, militantes, profissionais de saúde e usuários dos serviços de saúde de vários locais do Brasil realizam atividades para comemorar as conquistas e apontar os desafios da Luta Antimanicomial. O dia 18 de maio é o dia oficial das comemorações, instituído desde a década de 1980. “Saúde não se vende, loucura não se prende”, foi a consigna da manifestação no Rio de Janeiro. O repúdio a privatização da saúde também foi reforçado no ato público de Belo Horizonte quando a Escola de Samba Liberdade ainda que Tam Tam apresentou o enredo “SUS Tentar a Diferença: Saúde não se Vende, Gente não se Prende”.

Em São Paulo, no dia 18, o ato público levantou a mesma palavra de ordem acrescentada da frase: “Quem tá doente é o sistema social!”. E no dia 21, foi lançada a Frente Parlamentar da Luta Antimanicomial, na Assembleia Legislativa de São Paulo. Em vários estados, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), uma das principais estruturas de suporte da reforma psiquiátrica com o fim dos manicômios, protagonizaram atividades políticas e culturais. Em Recife, os trabalhadores e usuários do Caps Espaço Livremente protestaram em frente à prefeitura por melhoria das condições estruturais do serviço e mais tarde, junto com os outros Caps, também reclamaram a ampliação de toda a rede de assistência. Em Cuiabá, houve passeata e esquetes teatrais sobre a Reforma Psiquiátrica na praça da República, com a participação de usuários dos Caps, familiares, profissionais de saúde e estudantes do curso de psicologia.

Muito o que fazer

Para o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e médico psiquiatra Marco Aurélio Soares, a luta antimanicomial tem sido vitoriosa em alguns aspectos, embora ainda haja muito que fazer. “Houve uma inversão no orçamento do Ministério da Saúde para a Saúde Mental, hoje a maior parte dos recursos está sendo utilizada nos serviços extra-hospitalares, cada vez vem decrescendo o número de leitos, que vem sendo desnecessários. Tem sido vitoriosa também em outra questão que é o senso comum, antes se falava que lugar de maluco é no hospício. Hoje em dia já não se fala isso. Então, a população já reconhece que a questão mais importante do paciente é manter o convívio com a família, com os amigos, com o seu meio, que romper estes laços reforça o isolamento e a estigmatização dos doentes”, avalia.

Entretanto, o principal desafio, de acordo com Marco Aurélio, é o retrocesso que a Reforma Psiquiátrica vem sofrendo com as políticas contraditórias dos governos na atenção aos usuários de drogas. “A internação compulsória é um retrocesso. O próprio governo se mostra contraditório, por um lado o Ministério da Saúde propõe a redução de danos, por outro lado toma medidas que determinam a internação compulsória para usuários de crack. O manicômio começa a mudar de cara, não acabou. Começa a existir o manicômio de uma forma disfarçada que são as chamadas comunidades terapêuticas para dependentes químicos. Na verdade não são nada mais nada menos do que um hospício para usuários de drogas”, critica.

Marco Aurélio afirma que a internação compulsória não resolve o problema das drogas. “A abstinência total não resolve como princípio para tratar e sim como um fim. O índice de recaída dos pacientes é enorme. A estratégia deve ser a da Redução de Danos, o paciente continuar vivendo em seu meio, fazendo atividades, com promoção da saúde. A Redução de Danos é uma estratégia de promoção da saúde”, defende. Segundo ele, os aspectos moralistas e legais são grandes desafios na implementação de políticas de Redução de Danos, já que há uma resistência de grupos conservadores a essas propostas. “São grupos ligados a esse modelo de abstinência total, que é o modelo de Minnesota e estão muito associados a igrejas. Eles promovem uma demonização da droga, como se ela fosse ruim em si, como um demônio. Mas a droga não é ruim nem é boa, ela é uma substância. A questão é o uso que a pessoa faz”, detalha.

Para o professor, não se pode tratar a questão de forma simplista. “Não devemos tratar da droga, mas da pessoa. Precisamos pensar o que leva a pessoa a fazer uso da droga, mas não demonizá-la, como se fosse preciso exorcizá-la para que a sua vida mude. E não é assim. Os usuários de crack em situação de rua, por exemplo, se eles parassem de usar crack eles deixariam de estar na rua e voltariam para casa? Claro que não. Antes cheiravam cola e agora usam crack. A dificuldade é pensarmos como a nossa sociedade se organiza, como criamos e tratamos esse rebutalho, entre aspas, da nossa sociedade”, reforça.

Demanda maior do que oferta?

Os Centros de Atenção Psicossocial voltados para usuários de álcool e drogas – Caps ad -se baseiam no modelo da redução de danos mostrando que é possível tratar os usuários sem que estejam sob uma política de abstinência total e repressão. Mas o número de Caps ad ainda é pequeno no país – 272 unidades. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, com mais de seis milhões de habitantes, existem apenas três unidades em funcionamento.

Embora os Caps – dos tipos I, II, III, Capsi [para crianças e adolescente] e Caps ad -ainda não supram toda a demanda por atendimento, há uma expansão da política no país. De acordo com o Ministério da Saúde (MS), existem hoje 1.771 Caps em funcionamento. “Essa quantidade de CAPS é quase quatro vezes maior que em 2002, quando o país contava com 424 Centros”, diz o MS em matéria publicada em seu site no dia 18 de maio. Segundo o Ministério, os Caps registraram em 2011 21,77 milhões de atendimentos ambulatoriais, número 50 vezes maior que a quantidade deste tipo de assistência prestada em 2002 (423 mil procedimentos). O MS destaca ainda os atendimentos nos Caps infantis que saltaram de 12,2 mil, em 2002, para 1,2 milhão no ano passado.

Na mesma matéria, o MS afiram que os princípios que o orientam são os da Reforma Psiquiátrica, entretanto, aponta as comunidades terapêuticas, muito criticadas justamente pelos militantes da luta antimanicomial, entre as estruturas que receberão recursos do plano de enfrentamento ao crack e outras drogas. “Este plano prevê investimentos de R$ 4 bilhões até 2014. Deste montante, R$ 2 bilhões são destinados para a expansão da rede de atendimento em saúde. Até 2014, estão previstos a abertura de 308 Consultórios nas Ruas, 574 Unidades de Acolhimento (adulto e infantil), 175 novos CAPS Álcool e Drogas 24 horas, além dos investimentos nas Comunidades Terapêuticas, que devem receber mais de R$ 300 milhões nos próximos três anos”, diz a matéria publicada no Portal da Saúde do Ministério da Saúde.

Para Daniela Albrecht, do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ), esses recursos públicos deveriam estar sendo aplicados exclusivamente em serviços compatíveis com a Reforma Psiquiátrica. Outro problema, segundo a psicóloga, é a expansão da rede de saúde mental por meio de soluções como as Organizações Sociais (OS), como ocorre no Rio de Janeiro. “As ampliações tem sido via OS e isso é imcompatível com a Reforma Psquiátrica e a Reforma Sanitária. Os serviços antimanicomiais encerram uma luta pela valorização da saúde pública e são imcompatíveis com essa lógica mercantilista das OS”, critica. (Saiba mais sobre as OS).

Censura à redução de danos?

Recentemente, um acontecimento no Rio de Janeiro mostrou como a proposta da Redução de Danos ainda enfrenta resistências. Uma reportagem do jornal O Dia, de grande circulação na cidade, “denunciou” que no blog da Área Técnica da Saúde Mental, ligado a Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil, havia um link para o livro Toxicomanias – Incidências clínicas e socioantropológicas, publicado pela Universidade Federal da Bahia. A reportagem, com o título “Sugestão é plantar em casa – Saúde do Rio defende o uso da maconha”, interpretou as experiências de Redução de Danos e reflexões sobre os benefícios da descriminalização de usuários de maconha para a promoção da saúde contidas no livro como um incentivo a utilização da droga. A matéria descontextualizou também um dos artigos da publicação que trata da experiência do uso da substância ayahuasca nos rituais do Santo Daime. Após a repercussão dada pelo jornal, o link para o livro foi retirado do blog.

Durante o ato público em comemoração ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial, no Rio de Janeiro, os militantes fizeram uma encenação para denunciar o episódio. Os participantes da manifestação permaneceram vendados com faixas pretas enquanto um manifesto assinado por várias instituições em repúdio à reportagem do jornal O Dia e à atitude do governo municipal foi lido. “Entendemos que este se trata de mais um episódio de guerra às drogas, de criminalização de usuários e da pobreza, e agora também de trabalhadores de saúde do município, que apesar da escassa rede de serviços de atenção psicossocial da cidade do Rio de Janeiro vêm tentando imprimir práticas integrais de cuidado em saúde mental, em consonância com a política nacional e na contramão da lógica do choque de ordem que tem sido adotada neste Governo”, diz o manifesto, assinado por várias entidades, entre elas os Conselhos Regionais de Psicologia e Serviço Social (CRP-RJ e Cress-RJ), Associação de Juízes para a Democracia, além de outras associações e grupos de pesquisa de universidades públicas. Os manifestantes seguravam também grandes réplicas do livro com os dizeres: “Este é o livro que a prefeitura não quer que você leia”.

Abaixo-assinado

Durante a manifestação, foi divulgado ainda um abaixo assinado “contra a censura do Paes” [Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro]. Segundo o jornal O Dia, o prefeito abriu investigação para saber quem publicou o link do livro. Os autores da publicação Antônio Nery Filho, Edward Macrae, Luiz Alberto Tavares e Marlize Rêgo, do Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas da Universidade Federal da Bahia (CETAD/UFBA) também divulgaram uma nota sobre o ocorrido. No texto, eles dizem que ficaram surpresos com a reportagem e ainda mais com a reação do prefeito Eduardo Paes em impor censura à veiculação da publicação. “A matéria trata a publicação de forma distorcida e equivocada, fazendo um recorte descontextualizado e até criminoso de um dos artigos cujo título é “A nova Lei de Drogas e o usuário: a emergência de uma política pautada na prevenção, na redução de danos, na assistência e na reinserção social”, e que traz a discussão de múltiplos aspectos que pautam as leis que regem o usuário e o consumo de drogas em diversos países, e da necessidade de mudanças na atual legislação brasileira que favoreçam o acesso do usuário aos serviços de atenção e saúde”, escrevem os autores.

Segundo os pesquisadores, o artigo, descontextualizado pelo jornal, não faz apologia ou indicação de consumo de qualquer droga. “O artigo referido se debruça sobre uma política de descriminalização do usuário de drogas, em favor da vida e pela reafirmação de uma Política de Redução de Danos, sustentada como política de estado pela SENAD [Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas] e pelo Ministério da Saúde brasileiro e conquistada arduamente por todos aqueles que ao longo desses anos lidam com essa questão”, dizem. Por fim, eles reafirmam o repúdio à atitude do jornal e “à censura inaceitável do prefeito Eduardo Paes à livre manifestação da reflexão e do debate democrático”.

Presente na manifestação, uma trabalhadora de um dos Caps do município do Rio que não quis se identificar diz que a reportagem do jornal O Dia fez um reducionismo perigoso das práticas de redução de danos e de promoção da saúde defendidas pelo livro. Ela reforça que o que se faz nos Caps é a reabilitação psicossocial dos usuários. “É uma grande mentira dizer que no Caps é incentivado o uso de maconha. O que fazemos é propor a substituição do prazer da droga por vários outros prazeres, como a música, as artes, com ótimos resultados. E com um cuidado integral aos usuários. O Ministério da Saúde estima como ideal a existência de um Caps ad para cada 200 mil habitantes, e no Rio temos apenas três. Há uma aposta nos modelos de abstinência total das comunidades terapêuticas e uma redução de recursos para os Caps”, reclama. A profissional critica a postura da prefeitura em retirar o livro do blog. “Há um medo político neste ano de eleição. O prefeito recuou e não pensou duas vezes. Ao invés de aproveitar esse momento para fazer um debate importante sobre a redução de danos e promoção da saúde, decidiu censurar o livro”, questiona. “Não vamos permitir um retrocesso histórico na luta antimanicomial. Esta é uma posição ética e técnica”, acrescenta.

Redução de danos

O subsecretário de Saúde do município do Rio de Janeiro Daniel Soranz defende a utilização do livro. “O uso desse livro é recomendado pelo próprio Ministério da Saúde. É uma publicação de uma editora oficial, que é a Universidade Federal da Bahia, com autores de grande nome na área da luta contra as drogas. Não faz apologia ao uso de drogas e incentiva a redução de danos e é um livro para tratamento”, afirma. No entanto, segundo ele, o link para o livro foi retirado do blog para evitar polêmica. “A Secretaria, para evitar qualquer tipo de polêmica, decidiu retirar o livro do blog. Mas a Secretaria também se coloca com muita propriedade na defesa da política de redução de danos do Ministério da Saúde que também praticamos”, justifica.

Daniel Soranz confirma o pedido de uma investigação por parte do prefeito Eduardo Paez. “O prefeito abriu uma investigação para verificar se existia algum conteúdo que fazia apologia ao uso das drogas no blog e no site oficial da Secretaria. Ele pediu uma apuração rigorosa, que foi feita e não se constatou nenhum conteúdo de apologia ao uso das drogas. O prefeito colocou a sua posição muito clara de sempre se apurar qualquer denuncia que se faça, seja ela qual for”, diz. Ele ressalta que o livro continua disponível na plataforma Scielo Books e que o blog, como está sendo muito utilizado por usuários, passará por uma reformulação de forma a não veicular conteúdos que possam gerar dupla interpretação, apesar de considerar que este não é o caso do livro Toxicomanias – Incidências clínicas e sociantropológicas. “O livro gerou uma dupla interpretação, eu por ser médico e ter um conteúdo mais técnico, não consigo ver essa outra interpretação que foi dada. No entanto, uma pessoa que não é medica e nem da área da saúde pode ter uma interpretação diferente”, comenta Daniel.

Críticas

O subsecretário acrescenta que os conteúdos técnicos ficarão disponíveis apenas para os profissionais de saúde. Ele critica a forma como o tema repercutiu na mídia. “As vezes as pessoa querem distorcer com outras intenções que não aquelas que estão expressas no discurso e isso é muito perigoso principalmente se os meios de comunicação não tiverem muito cuidado nessas publicações.Não conseguimos mapear ainda com quais intenções algumas pessoas tentaram imputar isso sobre o blog da saúde mental”, acrescenta.

De acordo com Daniel Soranz, está prevista a abertura de 10 novos Caps no município até 2016. “Será um Caps ainda em 2012, dois em 2013, três até dezembro de 2014, dois até dezembro de 2015 e mais dois até 2016. Um terço desses Caps será de Caps ad”, diz.

* Com informações do site do Sindicato dos Médicos de Pernambuco, Fórum Popular de Saúde do Estado de São Paulo, Aicó Culturas e Conselho Regional de Psicologia do Mato Grosso

* Da EPSJV/Fiocruz.

Fonte: http://carosamigos.terra.com.br/index2/index.php/noticias/2940-alerta-para-retrocesso-na-reforma-psiquiatrica

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