Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.
Devo iniciar pedindo desculpas aos leitores pelo hiato de tempo na escritura para o Portal Desacato. Acabei 2020 com boa sensação de feedbacks, retornos, opiniões e comentários sobre os textos que aqui publico. Passei o mês de janeiro escrevendo e não gostando do que saía. Recuperei esse artigo de opinião, que segue chamando minha atenção e espero que chame a atenção de vocês.
É sobre Lula. E sobre as pretas. Ou sobre A Preta, brasileira – ou seja, o mesmo.
“Não ser feminista hoje em dia é totalmente estúpido”, Theodor Kallifatides, 82 anos, escritor grego em entrevista ao jornal El País.
Há tempos percebo algo escondido, como um tabu. Não gosto do que se sente e não se diz. Por isso, ouso dizer. O risco existe ao estarmos vivos.
Vamos direto ao assunto? É sobre a candidatura do PT à Presidência da República, em 2022.
Pra começar, não é contraditório, a meu ver, falar de 2022 como um horizonte próximo e não incompatível com não esperar 2022 pra começar a empurrar com mais força a queda de Bolsonazi. Uma coisa complementa a outra, sem grandes problemas que não sejam outros, bem diferentes. Dos que deles, outros problemas, já falaremos, aqui mesmo, oportunamente.
Logo, meus mais de vinte anos de admiração pela personalidade pública do Lula, sendo eu tanto pedrinha nos alicerces de construção, quanto divertida pedrinha no sapato em todas as caminhadas do PT, não precisam dar-me nenhuma autoridade (que eu não tenho) para falar bem (mais) ou mal (menos) do PT. Quem sou eu? Eu só sou vocês.
Sou o chato que faz anos – quando Bolsonazi ainda era somente um fascistinha de merda no parlamento – não fica somente contemplando os anos passarem, mas insiste num interessante paradoxo: o que faz, para mim, o Lula ser o melhor candidato à Presidente (desde sempre), o melhor antídoto ao fascismo brasileiro, com mais possibilidades de derrotar (como ninguém; e novamente!) à velha oligarquia política brasileira, o faz, dele, Lula, a NOSSA maior virtude e o nosso maior desafio. Nada com o Lula é o que é sem dualidade, como o Brasil. Atenção: dualidade não é contradição, é complemento.
A riqueza do capital político que o Lula tem (melhor dizer “que soube construir”; e que agora aumentou de grandeza, depois do imbecil do Sérgio Moro) é, por incrível que pareça a alguns, por outro lado, o maior problema não resolvido na esquerda brasileira: a construção de uma alternativa de esquerda à inigualável (hoje em dia, ainda) vantagem que o Lula teria como candidato à Presidência da República.
Até aqui, nenhuma novidade. Pelo menos, para mim.
Mas, a meu ver (e sempre somente a meu ver), há uma novidade sim.
E essa novidade é uma preta, brasileira, mulher.
Quem? Lamento, mas não sei. E para mim, agora, isso pouco importa.
Eu sei é que por enquanto eu já teria suficientes problemas por ousar (ousar lutar, ousar vencer, Che) questionar a mitologia lulista. E podem vir-me com pedradas. Eu nunca fui lulista e sempre disse. E sempre achei que Lula sempre foi, ainda bem, mais que o PT – que já é muito. E isso é bom. Não é nada ruim, pelo menos para mim.
Um programa de TV europeu jogou-me na cara, certa vez: te chamamos para esta entrevista porque lemos algo que você afirmava dizer-se não lulista e era isso o que buscávamos; mas, de fato, não esperávamos isso de você. Fizestes uma defesa tão grande do Lula, como preso político e da sua importância na política brasileira que nos surpreendeu, ao pensar que serias mais crítico com ele. Mas que idiotas eles foram, os jornalistas entrevistadores: como não perceber o Lawfare mais mal feito do mundo, e ao mesmo tempo as inegáveis conquistas dos governos do PT. Assim é até muito mais fácil. Captaram bem minha decidida postura estratégica: não chamarão petistas a um importante (grande e burguês) meio de comunicação com ampla audiência para defender o PT, principalmente agora que o PT mais necessita. Experiência tem que servir pra algo na vida. Aprendi com o independentismo político catalão: eu, novato votante da extrema esquerda catalã, não preciso de autoridade política nenhuma para defender um político de direita, catalão, que está preso ou exilado por, ele, defender o meu direito de liberdade de expressão (além de querer, ele, manter seus privilégios de classe, que eu não sou bobo). A firmeza de não renunciar ao que acredito me habilita e me encoraja para dizer o que eu penso. E como veem no que eu escrevo, gosto de dizer, de escrever.
Eu não quero falar de convicções, pois não estou convencido de nada. O debate, eu prefiro.
Por isso eu digo que a urgência agora, de mais de quinhentos anos de Brasil é reencontrar-se com a “outra maioria” desse mesmo país. E vocês sabem muito bem do que e de quem eu estou falando. Por isso que eu acho que é perfeitamente compatível a luta antifascista nas ruas, derrubar urgente Bolsonazi, se complementar com um respeitoso debate dentro do que se convencionou chamar de esquerda brasileira. Com muita atenção para que a palavra Respeito aqui contida não seja um mero exercício de retórica.
A novidade que reivindico nem é tão nova. É muito antiga. Nem é somente brasileira. Está no mundo. Mas o importante é que em nenhum lugar do mundo, como no Brasil (nisso concordo plenamente com Caetano Veloso), a novidade veio dar à praia com tanta dor, amor e gozo.
E se te dá medo, eis aqui o bom começo. Já dizia a mais linda frase de campanha do PT. Construir a alternativa ao Lula, com o Lula (ou sem o Lula): sem medo de ser feliz. O medo dá origem ao mal, já cantava Chico Science & Nação Zumbi. Lula é – mais do que está.
Como o andar da carruagem no PT caminha para uma possível confirmação da candidatura de um dos melhores votos da minha vida, o Fernando Hadad (outro que merece todo respeito), facilita a minha vida: ok, companheirada petista. O que mais há, além do PT?
Um país com 220 milhões de habitantes nunca estará tranquilo enquanto todas as esperanças estiverem absolutamente concentradas num homem só. Todo participante de um processo coletivo deve questionar-se SEMPRE: se só de mim depende é que algo não fizemos bem.
Um bobo da corte perguntou ao Rei no campo de batalha: o que é mais importante, vencer, viver ou morrer?
Porque tudo na vida é questão de perspectiva. Agora, a transformação ou é profunda, ou não é. Ou é realmente, intensamente, sinceramente feminista ou não me conquista. O antirracismo é o extremo oposto do fascismo. Quantos anos passaram para só agora percebermos que por mais que houvéssemos falado, foi muito pouco o que falamos – entre nós mesmos – da escravidão na base do que hoje é Brasil. Não daquela escravidão, de duzentos anos atrás. Da de hoje. A que mesmo sem eu querer me privilegia.
O “sem querer querendo” nunca foi brincadeira de criança. Faz parte do DNA político do Brasil. O privilégio branco, patriarcal, eurocêntrico, sempre esteve e continuará presente até que: a) o admitimos; b) o identificamos; c) o eliminamos. Pois está no inconsciente e nem Freud explica. Insisto: Marx, no Brasil, reescreveria O Capital. Passaria a chamar-se A Escravidão.
E tudo acaba em como nós, transformando-nos por dentro (vai doer, sim, eu sei) poderemos enfim provar algo inédito que nunca provamos. Ou que dissemos que provamos, mas nos enganamos. Ou pensamos que estávamos nos enganando a nós mesmos. A pior mentira, aquela que a gente conta cada dia pra gente mesmo.
Não saber o que eu quero (o nome da preta brasileira candidata à Presidência) não significa que eu não diga o que eu já sei que eu não quero: não quero passar mais tantos anos buscando substitutA para o Lula. Quero que essa perspectiva feminista e antirracista se construa agora. Pois é pra ontem. E boa parte disso tudo, sem ironia, foi o Lula quem ensinou.
Foi então o que eu fiz: parei, pensei, e não gostei. Respeitei, escrevi e opinei. Se você chegou até aqui e não gostou, então eu já gostei. Me “escutou ativamente”.
Isso pode já ser muito. Todo o resto, deixa pra lá…
Barcelona, 10 de fevereiro de 2021. Viva o PT.
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