O poema curto “Lúcia” foi escrito em São Paulo, em 1866, e publicado pela primeira vez em 1881, em uma edição comemorativa dos dez anos de morte do poeta, Castro Alves¹. Atualmente, aparece em algumas edições de Espumas Flutuantes mas é geralmente incluído em Os Escravos. Seu enredo é traiçoeiramente simples: o narrador conta a história de sua colega de brincadeiras da infância, Lúcia. A princípio, ele só descreve delícias e alegrias da vida em uma fazenda (grifos sempre meus):
“Eu e Lúcia corríamos — crianças
Na veiga, no pomar, na cachoeira
Como um casal de colibris travessos.”
Logo, entretanto, percebemos que Lúcia é uma escrava:
“Ai! Pobre Lúcia… como tu sabias,
Festiva, encher de afagos a família
Que te queria tanto e que te amava
Como se fosses filha e não cativa…”
O narrador conta então como a família branca amava Lúcia, o quanto ela tocava suas vidas e os fazia felizes. Mesmo assim, entretanto, ela logo é vendida e mandada para longe. O poema não explica porque a família venderia uma escrava pretensamente tão amada, mas sugere pobreza:
“Mas um dia a miséria, a fome, o frio,
Foram pedir um pouso nos teus lares…
A mesa era pequena… Pobre Lúcia!
Foi preciso te ergueres do banquete
Deixares teu lugar aos mais convivas…”
Antes de ser mandada embora, Lúcia se despede da fazenda como se tudo fosse sua culpa e diz, “conversando com a natureza”:
“Perdoai-me que eu parto para sempre!
Venderam para longe a pobre Lúcia!… (…)
Não te esqueças de mim que te amo tanto”
Enquanto vai sendo levada embora, Lúcia ainda agita um lenço branco. Muitos anos se passam. O narrador, agora adulto, está andando em uma estrada do interior quando percebe a mulher solitária caminhando a sua frente, cantando uma cantiga triste, carregando água sobre a cabeça, pés descalços no chão de terra — pessoas escravizadas eram proibidas de usar sapatos. Subitamente, ele reconhece a canção:
“De repente, Lembrei-me… “Lúcia! Lúcia!”
… A mulher se voltou… fitou-me pasma,
Soltou um grito… e, rindo e soluçando,
Quis para mim lançar-se, abrindo os braços.
… Mas súbito estacou… Nuvem de sangue
Corou-lhe o rosto pálido e sombrio…
Cobriu co’a mão crispada a face rubra
Como escondendo uma vergonha eterna…
Depois, soltando um grito, ela sumiu-se
Entre as sombras da mata… a pobre Lúcia!”
E assim termina.
A leitura mais comum desse poema vê nele a romântica história de um incipiente caso de amor precocemente abortado pela dura realidade da escravidão. Em uma época onde ainda era raro desconfiar do narrador, ele era visto como um pobre jovem inocente que, por ter as mãos atadas por uma realidade socioeconômica maior que ele, perde talvez o grande amor da sua vida. Mais recentemente, pessoas leitoras já escaldadas por Dom Casmurro tendem não só a desconfiar do narrador como a tentar ver a situação pelo ponto de vista da personagem subalterna, transferindo sua empatia do narrador para Lúcia.
Seguindo essa linha, o crítico Flávio Kothe, no livro ‘O Cânone Imperial’², faz uma análise especialmente dura do poema, tomando como ponto de partida a leitura acima. Pra começar, ele pergunta: se Lúcia era tão importante e tão amada, por que foi vendida? Naturalmente, não deveria ser tão importante assim. Além disso, também é fácil culpar outrem por uma separação que fatalmente aconteceria quando ele saísse da fazenda para estudar e Lúcia ficasse para trás, trabalhando pra pagar seus luxos na cidade grande:
“O fato de Lúcia, companheira de folguedos, ser vendida de repente só importa na medida em que, com a ausência dela, o sinhozinho se sente ferido.” (pg. 339)²
Kothe também questiona a razão da vergonha de Lúcia. Sua vergonha seria não por sua condição de escrava, pois ela já era escrava antes. Será vergonha de encontrar um dos membros da família que ela pensou que a amava, mas a vendeu como gado? Será vergonha que encontrar o homem que provavelmente, caso não tivesse sido vendida, a teria deflorado, como faziam quase todos os sinhozinhos?
O poema também menciona a profunda tristeza de Lúcia: de acordo com a leitura tradicional, por ter sido separada de seu inesquecível amado da infância. Kothe se pergunta: uma escrava trabalhando sem parar, brinquedo sexual do patrão, sofrendo todas as indignidades imagináveis, será que não tinha outros motivos mais concretos para sua melancolia?
Finalmente, Lúcia foge e o narrador não a segue. Na interpretação mais tradicional, ele o faz por pudor, para respeitar seu desejo de ficar sozinha. Na releitura de Kothe, esse ato acaba sendo reinterpretado como uma denúncia da hipocrisia do narrador, do poeta e do próprio leitor atual:
“Sugere-se que ela não queria ser encontrada e, portanto, não queria que ele fizesse algo por ela (exceto um poema). Assim, ele não precisa enfiar a mão no bolso para comprar a liberdade da amiga e dar-lhe vida mais digna. Também não precisa fazer politicamente nada, comprar qualquer briga, já que toda a culpa era dos outros e do passado. Desse modo é fácil ser abolicionista. (…) É a postura do político conservador que declara em público a sua solidariedade com os desgraçados e, na prática, nada faz. O leitor aceitar tal enredo é sinal de que ele também não foi mais longe. Ainda existe algo da mentalidade escravagista no inconsciente da população em regiões onde preponderou o escravismo.” (pgs. 352, 370-371)²
Mas, independentemente de como o poema foi escrito em 1868, ou de como foi lido desde então, ele também pode ser entendido não como uma celebração da hipocrisia, pusilanimidade e egocentrismo do narrador (e, por extrapolação, das elites brasileiras, inclusive do próprio leitor do século XXI) mas, precisamente, como sua denúncia. Hoje em dia, Lúcia seria uma empregada doméstica qualquer, tratada como se fosse “da família” mas despedida por ter engravidado. A análise incisiva de Kothe demonstra não a falta de valor da poesia de Castro Alves mas, pelo contrário, sua profundidade e relevância política sempre atuais.
O poema, entretanto, não se esgota nessas possibilidades. Uma leitura cuidadosa revela que o narrador nunca de fato se identifica: nadaindica que ele seja branco, livre ou que pertença à família que possuía Lúcia. Ele brincava livremente com ela na infância, mas ela era escrava e também brincava livremente. Seria o narrador também escravo? Existe uma cuidadosa e ambígua operação de aproximação e distanciamento entre o narrador e a família branca: o narrador, ao falar que a miséria tomou pouso em “teus lares”, se coloca cuidadosamente fora desses lares — assim como acima fala “a família” e não “nossa família”. A que família e a que lares ele pertence então? Se uma interpretação mais política e contemporânea focalizou em Lúcia em detrimento do narrador, talvez fosse interessante voltar nosso olhar a ele: sabemos quem é Lúcia, mas quem é o homem que narra o poema? Se nada indica que é branco, rico ou dono de escravos, nada também indica que é negro, pardo ou escravo: entretanto, a cuidadosa escolha de vocabulário do poema permite todas essas possibilidades.
Poderíamos perfeitamente reler “Lúcia” como uma abortada história de amor (e talvez nem mesmo isso) entre duas pessoas escravizadas. Quando o narrador encontra Lúcia na estrada, não há menção a nada que indique uma posição socioeconômica superior da parte dele: ele não está nem mesmo a cavalo, mas caminhando assim como ela — talvez também descalço ou carregando peso. Se começarmos a ler nas entrelinhas, desconfiaremos até da pretensa história de amor: quando Lúcia está para ir embora, ela faz um longo discurso de despedida que termina em “não te esqueças de mim que te amo tanto.” Nesse ponto, muitos leitores podem presumir que ela está falando com o narrador, mas, já no começo do discurso, o poema deixa explicitamente claro que ela estava “conversando com a natureza”, se despedindo da mata, dos passarinhos, dos coqueiros e das violetas. Do mesmo modo, logo em seguida, quando ela acena um lenço branco ao longe, nada indica que esteja se despedindo do narrador, mas provavelmente da mesma natureza com a qual estava dialogando há pouco. Não deixa de ser curioso: por que o poema não mostra nenhuma interação, diálogo ou despedida entre os dois? Por que, pelo contrário, faz questão de deixar bem marcado que ela não estava se despedindo dele? Talvez a intenção do poeta fosse justamente deixar claro o caráter completamente platônico do relacionamento. Ao quebrar nossas expectativas de despedidas românticas e declarações apaixonadas, o poema parece estar enfaticamente afirmando: “essa não é uma história de amor, nosso assunto aqui é outro.”
Por fim, resta apenas a questão da vergonha final de Lúcia. Se fossem apenas duas pessoas escravizadas se encontrando em uma estrada, por que ela fugiria? Em primeiro lugar, porque encontrá-lo de novo a fez reviver toda a vergonha de ter sido vendida, aquele momento traumático no qual uma menina inocente, até então criada como se “fosse filha e não cativa”, descobriu o quanto de fato valia e qual era o seu verdadeiro lugar na ordem social. Talvez houvesse até uma ponta de ressentimento contra o narrador: afinal, ela foi vendida e ele não. Talvez ele fosse realmente amado e valorizado. Em segundo lugar, porque talvez de fato fossem de fato amigos, ou apaixonados um pelo outro, e Lúcia introjetou toda a culpa da separação. Assim como muitas mulheres estupradas que se sentem adúlteras ao encarar seus companheiros, Lúcia é duplamente vitimizada: além de ter sido vendida e separada de seu amigo e potencial companheiro, ela também introjeta a responsabilidade por essa separação, como se tivesse sido tudo sua culpa, como se ela pudesse ter evitado a separação se tivesse sido uma escrava mais diligente e trabalhadora. Assim, sentindo-se culpada pelo crime que sofreu, não consegue mais encarar o narrador e foge.
O objetivo dessa análise não é, naturalmente, esgotar as possibilidades do poema mas exemplificar suas potencialidades. Um romântico e sentimental poeta é separado de sua amada pela perversa realidade da escravidão. Menina escrava é vendida para longe de sua casa e família, e seu egocêntrico amigo e sinhozinho só consegue pensar em si mesmo e em como isso o afeta. Casal de escravos que cresceu juntos é separado e mulher introjeta a culpa da separação. Um mesmo poema e três enredos bastante diferentes: é por essa riqueza que Castro Alves continua fascinando as pessoas leitoras.
Referências
¹Publicado pela primeira vez em Bosquejo Literário a Propósito do Decenário do Castro Alves, Bahia, 1881.
² Kothe, Flávio R. O Cânone Imperial. Brasília: Editora UnB, 2000. Páginas 315-383.
O texto acima faz parte da introdução à uma nova edição da obra abolicionista completa de Castro Alves, organizada por Alex Castro e no prelo pela Editora Hedra.
Fonte: Blogueiras Feministas.