Loira Gina

Por Fernando Evangelista.

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A mãe foi chamada para uma reunião do outro lado da cidade. Não tinha como pegar as crianças na escola e apelou para seu irmão, que morava perto. As crianças adoravam aquele tio, contador de histórias e um compulsivo comprador de chocolates, chicletes,balas e outros venenos deliciosos.

O tio tinha 30 anos, o sobrinho mais velho seis e o outro três. Foram numa lanchonete bem próxima ao edifício dos meninos, “lugar imundo, onde só se vende porcaria”, segundo a insuspeita opinião da mãe. A única possibilidade de entrarem naquele “território proibido” era com esse tio e ele nunca decepcionava. No meio do lanche, comendo hambúrgueres e batatas fritas, extasiados e unidos como três mosqueteiros, o tio comentou:

– A Gina é muito velha.

– Quem é Gina? – quis saber o sobrinho de três anos.

O tio mostrou a caixinha de palitos de dente, com a foto da loira Gina, escondida entre a bisnaga de mostarda e o porta-guardanapo. Os dois meninos observaram cuidadosamente a caixa de palitos. Foi o sobrinho maior quem disse:

– Não parece velha, essa mulher parece muito nova.

O tio explicou que aquilo era uma foto, tirada há muitos anos e que o tempo passa rápido demais e era bom eles aproveitarem bem, porque assim, de repente, quando menos se espera, a gente vira adulto e assim, também de repente, o adulto fica velho e os velhos morrem, sem mais nem menos.

– Esta loira do palito é mais velha do que a bisa Rosa? – questionou o menino de três anos.

– Não – respondeu o tio – ninguém é mais velho do que a bisa Rosa. Bisa Rosa tem cem anos.

– Existe uma coisa ainda mais velha – retrucou o menino de seis.

– O quê? – perguntou o tio.

– O quê? – repetiu o mais novo.

– O cajueiro de Natal – disparou o sobrinho maior – o cajueiro tem 123 anos. Escrevi um texto sobre este cajueiro ontem.

Sem demonstrar surpresa, porque demonstrar surpresa nessas horas é coisa de adulto inexperiente, o tio perguntou se aquilo era um tema da escola.

– Não – ele respondeu – pesquisei na wiki, troquei informações com amigos no Google Plus, comparei com alguns outros textos publicados no Yahoo e escrevi para o meu blog, para passar o tempo, entre um episódio e outro do Sítio do Pica-Pau Amarelo.

E concluiu:

– É o maior cajueiro do mundo, foi plantado por um pescador em 1888. O pescador morreu velhinho, sentado à sombra do cajueiro.

O tio ficou com aquela sensação (ou seria constatação?) que atinge e atormenta os adultos ao conversarem com as crianças: elas são infinitamente mais espertas e inteligentes do que nós, adultos, éramos. Alguma coisa fundamental ocorrera nos neurônios desses pequenos seres. Ou isso é verdade, e ele esperava de coração que fosse, ou ele era, na infância, um completo retardado. Talvez as duas hipóteses fossem corretas, reconheceu tristemente.

Como que se defendendo daqueles dois pequenos espantos humanos, o tio pegou um jornal esquecido numa mesa ao lado. Esbarrou os olhos na manchete: “Envelhecimento terá cura daqui a 25 anos”. Leu duas vezes para ter certeza. Era isso mesmo. De acordo com a reportagem, em breve será possível viver até os mil anos. O tio estremeceu.Os cientistas, que inventam e descobrem de tudo, estão desenvolvendo um remédio para bloquear o envelhecimento. Viver mil anos? Mil anos são 365 mil dias ou 55 mil domingos. Se ele, com 30 anos, já se considera um ancião idiota em frente das crianças, o que aconteceria se vivesse dez séculos?

Para começo de conversa, pensou o tio, a humanidade precisa desmentir Nostradamus e sobreviver ao fatídico 21 de dezembro de 2012. Mas se o mundo não acabar e os cientistas não estiverem blefando, essa coisa de viver mil anos pode se tornar insuportável, concluiu. E passou a vislumbrar os grandes pepinos à vista:

Mil anos encarando filas de banco e engarrafamentos intermináveis, mil anos lavando louça no frio, mil anos fazendo tratamento de canal e morando com a sogra (quase a mesma coisa), mil anos desencravando unhas, mil anos indo a reuniões de condomínio, mil anos sendo obrigado a assistir propaganda eleitoral, mil anos recomeçando a dieta na segunda-feira.

Mil anos ouvindo o cunhado contar as mesmas piadas, mil anos descascando cebolas e abacaxis, mil anos andando de ônibus lotado, mil anos vendo o PFL mudar de sigla e o Sarney mudar de ideologia, mil anos esperando ganhar na loteria e nunca conseguir, mil anos vendo a cara jovem da velha Gina, a loira do palito.

O tio decidiu que, acontecesse o que acontecesse, ele jamais, em hipótese alguma, viveria mil anos. Se cem anos é pouco, mil é exagero. Os meninos, alheios a essas dúvidas existenciais, devoraram os lanches como se o mundo fosse mesmo terminar em breve. Pediram mais batatas fritas e, de sobremesa, dois enormes crepes de doce de leite com queijo.

Depois da missão cumprida com as crianças, sozinho na cama da sua casa, sentindo-se velho e fora de moda, o tio concluiu que viver mais de cem anos deveria ser privilégio de poucos, entre eles a Bisa Rosa, a Loira Gina e o cajueiro de Natal. Pensou nisso e caiu num sono profundo.

 

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