Livro traz histórias da “pequena África” em São Paulo

O sociólogo, Tadeu Kaçula, apresenta obra sobre o ‘quilombo’ da Zona Norte e as referências negras da capital paulista

O escritor de “Casa Verde, uma pequena África paulistana”, Tadeu Kaçula, nasceu no bairro e agora traz para a publicação as referências culturais da região. – Marina Duarte

Por Marina Duarte de Souza.

(…) De jeito nenhum, não é preconceito. Negro ou Branco têm direito. Nossa escola não faz distinção de cor. Pra falar sobre esse tema. Foi que surgiu o problema. E o dilema se avizinhou.

Esse é o trecho do samba-enredo “Negros maravilhosos, Mutuo Mundo Kitoko” de 1982 da Associação Cultural e Social Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco, puxado pelo Mestre Dadinho, que há mais de 60 anos participa e constrói a escola de samba, que hoje está localizada na Barra Funda, mas nasceu na Zona Norte de São Paulo, Casa Verde.

Mesmo bairro que Dadinho, hoje com 77 anos, mudou com a família na década de 1950 quando a elitização de São Paulo começou a expulsar a população negra do centro da cidade para as regiões periféricas. Sua família morava na Avenida Rebouças, assim que chegaram dos cafezais da cidade de Campinas, interior do estado.

A história do sambista foi a de muitas outras famílias que se instalaram na Zona Norte, não só na Casa Verde, mas também Cachoeirinha, Limão, Parque Peruche, Brasilândia, Freguesia do Ó, e fizeram das regiões o “quilombo” da capital paulistana, como Dadinho mesmo define.

O resultado desse encontro foi um território repleto de manifestações culturais afro-brasileiras. História e raiz que o sociólogo e escritor, Tadeu Kaçula, trouxe no livro Casa Verde, uma pequena África paulistana, publicado pela editora LiberArs em fevereiro deste ano.

“Eu nasci e me criei aqui no bairro da Casa Verde, Zona Norte de São Paulo, observando todas as famílias, todas as manifestações culturais, observando toda movimentação da população negra aqui desse bairro. Fui juntando todas essas questões e, na medida que me insiro no mundo acadêmico, vou compreendendo a importância de organizar todo esse conteúdo já contido a partir dessa relação direta com o território, com as culturas e com essas referências negras que a gente tem na região”, conta o autor.

Mestre Dadinho é uma das referências do livro, não só por ser um dos pilares da Camisa Verde e Branco, mas também por fortalecer todo o samba paulista com a sua história e dedicação.

“Eu venho na Camisa verde e Branco desde 1959, através de amigos eu fui convidado para fazer parte da bateria e, desde então, galgando vários cargos na própria escola. Aqui é um bairro periférico, bairro negro e como a Camisa Verde é uma das primeiras escolas de samba, a gente teve essa simpatia, através da família também em agregar e estar junto com ela, porque sempre foi uma escola de família. Ficamos lá até hoje, foi uma das melhores coisas que aconteceu na minha vida”, relembra o mestre.

Além do sambista, o livro traz à tona outras manifestações da região a partir de uma grande pesquisa em arquivos e fontes oficiais além das histórias locais, como relata Kaçula.

“Eu sempre tive essa curiosidade de saber o que rola de manifestação cultural. Fui saber da Festa de São Benedito da rua Galiléia, onde eu participei durante vários anos, que a festa de São Benedito, no Parque do Peruche, faz todo um processo de um cortejo, tem as congadas e depois tem a roda de samba e a Dona Lucinda, que é a responsável pela Festa de São Benedito, prepara o almoço para todas as pessoas que participam, então isso é uma tradição já no bairro da Casa Verde”, conta.

Tradições estas que vão além do bairro e se tornaram marcos da cidade de São Paulo, como o Afoxé Omo Dada, que há 40 anos desfila no carnaval da capital paulista.

“Ele abre o carnaval de São Paulo desde 1981 e sempre foi no sábado, porque era quando os blocos desfilavam. A nossa proposta era abrir o carnaval de São Paulo trazendo a proteção dos orixás para a avenida, dar uma limpada e trazer nossas raízes, nossa cultura, apresentar tudo o que era nosso”, lembra a líder do grupo e mãe de santo, Wanda de Oliveira Ferreira, ou apenas Ya Wanda de Oxum, matriarca do Ilê Yamin Oxum Moiwa, terreiro de candomblé localizado no bairro da Casa Verde desde os anos de 1950.

Para yalorixá obras como a de Kaçula evidenciam a cultura negra e a população negra que a produz,  “Nossos ancestrais trouxeram essa cultura e essa religiosidade e nós estamos até hoje conservando ela aqui, então as pessoas têm que saber isso.”

Mestre Dadinho vai no mesmo caminho e pontua que o livro também é uma forma de transmissão de conhecimento, “Poder mostrar o que a gente foi desde a infância, o que a gente galgou desde a infância e o legado que a gente deixa através desse livro, não só a história da escola, mas a história do bairro e esse legado a gente tem que deixar para os mais novos, a gente não é ‘baú pra gente guardar’ a gente tem que passar para os mais novos. O que a gente plantou tem que servir como escola, não pode ser esquecido”, ressalta.

A importância de “Casa Verde, uma pequena África paulistana”, ganha outras dimensões com o que o autor chama de “olhar da cosmologia africana e afro-brasileira”, que diferente do pensamento ocidental e eurocêntrico da academia, traz uma compreensão de relação social, cultural e étnica negra a partir da “vivência empírica do território”.

“Então quando você vai fazendo essas leituras, você vai juntando todas essas referências, no meu caso ela acabou sendo materializada no livro Casa Verde, uma pequena África paulistana”, argumenta o escritor.

Para Kaçula estas referências e narrativas negras da região, que, inclusive, trouxeram seu próprio reconhecimento como negro e forjaram seu pensamento e olhar crítico, precisam ser valorizadas pela cidade como forma de legitimar esses territórios como territórios negros.

“A provocação do livro é justamente vir ao encontro de trazer também ao poder público esse debate para que ele possa de fato reconhecer que essas manifestações dão sim e legitimam sim a estrutura e identidade cultural da cidade de São Paulo, assim como outras manifestações também dão essa legitimidade em outros territórios fora do estado de São Paulo”, aponta o escritor, que considera que o processo pode potencializar os referenciais da região e fomentar a representatividade para jovens negros.

Assim como Dadinho traduz e simboliza ao cantar Negros maravilhosos, Mutuo Mundo Kitoko, um samba-enredo que para o mestre reflete o mergulho que propõe a obra “Casa Verde, uma pequena África paulistana”. Fica o convite pra você também.

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