O livro Racionais MC´s – Entre O Gatilho e A Tempestade (Ed. Perspectiva) é leitura obrigatória não apenas aos fãs de hip hop - estilo musical que aniversaria nesta sexta-feira 11-, mas também aos brasileiros interessados em entender para além do legado musical do maior grupo do gênero que reposicionou a juventude periférica. Com suas letras, suas colocações políticas e sociais, a banda explicitou as vozes ativas dos jovens negros e negras que seguem ecoando por gerações. Como bem apontaram as organizadoras da obra literária, Daniela Vieira e Jaqueline Lima Santos no capítulo de abertura, os Racionais, por meio da “fúria negra”, como é considerado o rap, vieram para abalar “nosso sistema nervoso e sanguíneo”.
De forma magistral e dialética, com uma escrita eloquente, os pesquisadores convidados se debruçaram a analisar com lupa sociológica a produção e a história da banda composta por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, cujas abordagens envergam em temáticas complexas como o racismo, a violência policial, as problemáticas de gênero e a masculinidade. Sublinham, inclusive, como as letras das músicas, estudadas em universidades, servem até hoje de trampolim para novos horizontes. Daniela Vieira, doutora em Sociologia pela Unicamp, e Jaqueline Lima Viera, membro de Geledés e doutora em Antropologia pela Unicamp, escolheram um time competente para as devidas interpretações. Além das organizadoras, Geledés teve a chance de entrevistar os autores Deivison Faustino, Waldemir Rosa e Paulo César Ramos. Seguem as entrevistas:
Geledés – Como surgiu a ideia do livro e de que forma selecionaram os colaboradores?
Jaqueline Lima Santos- Em 2020, fizemos um curso sobre as três décadas dos Racionais no Sesc. Foi um curso de 12 encontros, onde tiveram diferentes pesquisadores que valorizam a obra dos Racionais para pensar diferentes temas como economia, a estética da música, produção literária, violência, masculinidades. A partir dessa narrativa do curso, que foi um sucesso, uma riqueza, surgiu a ideia de se fazer um livro não apenas com os professores, mas também com outras pessoas que tinham temas importantes, como o Bruno que fala sobre religião ou o Deiveson, que tem uma história com os Racionais e acabou fazendo a abertura do livro.
Geledés -De que maneira o hip hop, ao longo dos anos, vem contribuindo para a construção de estratégias de mudanças coletivas e periféricas de nosso País?
Jaqueline – O hip hop organizou a narrativa da juventude de periferia sobre suas condições de vida; organizou uma interpretação de sua realidade. A partir dessa tomada de consciência, ajudou a construir novas perspectivas de vida, auxiliando a olhar criticamente a sociedade e a reivindicar mudanças. O hip hop teve esse potencial de mobilização e senso de coletividade, porque a narrativa não é individual e sim de experiências compartilhadas. A partir dessa mobilização de experiências compartilhadas, com perspectiva crítica da sociedade, foi possível que essas pessoas se posicionassem como sujeitos sociais e como grupos, pensando em uma transformação. Em torno dessas experiências coletivas, surgiram os movimentos periféricos que passaram a realizar ações e intervenções em suas próprias comunidades e a ocupar diferentes espaços da sociedade, disputando narrativas e interpretações do que seria a periferia, a juventude negra, além de denunciar as formas de violência e subordinação a que estavam submetidos.
Geledés -Como os Racionais abalaram as estruturas de um país racista como o Brasil?
Jaqueline – Os Racionais colocaram em questão, em uma linguagem muito próxima das periferias, a ideia de que no Brasil existe contradições e que não existe democracia racial. Ao trazer um rap como experiência, como narrativa do cotidiano, esse cotidiano expressa as relações sociais, a vida em comunidade, que é permeada por contradições relacionadas às temáticas de classe, raça, gênero. Eles narram a circulação pela cidade, a abordagem policial, a forma como as forças de segurança chegam nas casas e abordam os jovens negros; narram também a ausência de planejamento urbano, de saneamento, de escolas, hospitais, equipamentos públicos. Eles narram um sistema em que quer as pessoas naquele mesmo lugar, trabalham para sobreviver e não alcançam direitos fundamentais. Então os Racionais narram esse cotidiano de forma muito crítica, apontando um culpado, que eles colocam como um sistema que domina o poder e que nas Ciências Sociais chamamos de estrutura. Ou seja, os Racionais constroem uma contranarrativa da interpretação da sociedade a partir do sujeito periférico. Mas não é só sobre a periferia, porque eles narram, interpretam o poder e ajudam a explicar as elites e as condições a que estão submetidos.
Geledés -Como aconteceu uma maior inserção de mulheres no hip hop, em especial de mulheres negras, e de que forma essas mulheres influenciam as gerações seguintes?
Daniela Vieira- As mulheres estão inseridas no hip hop desde o começo do movimento e são fundamentais na sustentação e modificação do mesmo. Ocorre que numa sociedade machista e sexista, elas foram tendo menos protagonismo do que os homens, muitas vezes sendo colocadas em segundo plano ou como “apoio”. Mas isso vem se transformando notavelmente dada à organização coletiva das mulheres. No Brasil, temos por exemplo a Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop. Não podemos esquecer também do pioneirismo de Sharylaine, Rose MC, Rubia RPW, Lady Rap, a saudosa Dina D, que estão e estiveram organizadas para combater o machismo e o sexismo, buscando cada vez mais conquistar os espaços no cenário do hip hop. Essas mulheres são, sem dúvida, inspiradoras para a geração atual. Ocorre que atualmente as mulheres estão disputando o campo hegemônico do mercado musical, como Karol Conka, Drik Barbosa, Tássia Reis, etc. Elas têm maiores possibilidades de circulação e de produção também. Dialogam com as mídias hegemônicas e conseguem maior alcance e impacto de público. Isso acontece em um contexto em que o próprio rap vem se modificando, com reações antimachistas. Todo esse contexto contribui para a maior inserção dessas mulheres atualmente.
Geledés -De que forma a masculinidade se apresenta nas canções dos Racionais e quais suas contradições?
Daniela- Com relação às letras das músicas dos Racionais, a gente precisa ver canção por canção. Vou te dar um exemplo de uma canção que, atualmente, o grupo se recusa a cantar: Mulheres Vulgares, presente no disco Holocausto Urbano (1990). No artigo que escrevi com a Jaqueline (Lima Santos) para o livro, demonstramos que a introdução de Mulheres Vulgares apresenta os “dois lados da moeda”, ou seja, na primeira estrofe da canção há uma mulher que busca libertação, emancipação, representativa de uma mulher feminista e, na outra estrofe, eles opõem essa mulher pela figura estereotipada da prostituta. Como demonstramos em nosso artigo, essa ambiguidade seria reveladora do paradoxo vivido pelos rappers naquele momento em que machismo e sexismo não eram tão questionáveis. Demonstra também o caráter dual que a sociedade coloca a mulher: santa ou puta. Ela também pode ser representativa do contexto no qual o grupo estava inserido no que se refere às questões de igualdade de gênero. Em termos gerais, se a questão racial, a luta pela sobrevivência e orgulho negro eram enfatizadas positivamente em suas canções e serviam de inspiração a toda uma juventude periférica, o mesmo não podemos falar sobre a questão das mulheres. Uma lacuna que atualmente eles estão revendo ou, ao menos, se sentem constrangidos de reproduzirem em forma de canção.
Geledés -Os Racionais chamaram a atenção pela excelência estética de suas músicas. Como isso influenciou as gerações posteriores?
Deivison – Os Racionais representam um marco importante, tanto na história da música brasileira quanto na história das lutas antirracistas no Brasil. Em relação ao primeiro aspecto, o seu surgimento inverte uma tendência antiga na indústria cultural, ao permitirem que expressões estéticas produzidas pela juventude negra pudessem ecoar. Os anos 90 foram marcados, em primeiro lugar, por uma transição neoliberal que amarrou o fim da ditadura à manutenção das desigualdades sociais e da violência policial. O racismo e a miséria atravessavam as periferias dos centros urbanos e os fantasmas não enterrados da ditadura apresentavam-se, nas favelas, através de chacinas praticadas por grupos de extermínio. É neste ambiente, de ampla presença negra e nordestina – para pegar o caso de São Paulo -, que surge o hip hop e o rap, em particular. Mas este gênero não era reconhecido, nem pela esquerda e nem pela direita, como música. Havia um boicote ao rap, exceto nas rádios comunitárias e nos eventos organizados pelos próprios Mcs, em suas quebradas. Esse aspecto é importante para entendermos o que foi a emergência dos Racionais nesse cenário. Havia outros importantes grupos de rap e o hip hop fervilhava também através de outras expressões artísticas como o break e o grafite. De fato, os Racionais conseguiram furar a bolha estética imposta pelo racismo e transmitir a voz da periferia para todo o Brasil, alcançando públicos de todas as classes sociais e regiões. Foi um feito incrível. Mas acho que esse é um dos aspectos a serem ressaltados. O outro aspecto é que, no plano estético, o grupo dos cinco pretos mais perigosos do Brasil conseguiu mimetizar de maneira muito singular – e ao mesmo tempo, universal – a realidade, as dores e os desejos de uma parcela da população, que até então era invisível. Mas isso não se deu, sem imprimir, ao próprio gênero rap, um jeito de fazer música, que acabou sendo referência total para tudo o que veio a seguir, inclusive para outros gêneros. O que quero dizer é que tanto no ponto de vista estético, como ético e político, a emergência dos Racionais foi um marco para história do Brasil, a ponto de nada mais ser como antes.
Geledés -Você afirma no livro que houve um amadurecimento ao longo dos anos do grupo “com presença de maior conexão política e social”. Como isso se deu na obra dos Racionais? Por favor cite exemplos.
Deivison – Sim… Aristóteles via a mimesis e a catarse como dois atributos fundamentais à arte. Pois bem, no caso dos Racionais, estes aspectos estão relacionados de tal forma que podemos identificar na trajetória e a na produção do grupo, importantes momentos da história do Brasil nas últimas décadas. Talvez por isso, essa produção produza tamanho efeito catártico. Os Racionais da década de 1990 apresentava uma crônica de uma periferia um pouco distinta da periferia atual. Ainda que, como cantaram, “os nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos”, não apenas se alteraram as contradições do capitalismo em um país desigual como o Brasil, como também as lutas por justiça, como é o caso da luta negra. De certa forma, as composições do grupo representam um impressionante termômetro dessas mudanças. Um termômetro estético e, ao mesmo tempo, político. Sociologicamente, pode-se afirmar que os dilemas do Homem na Estrada e do Negro Limitado, cantados na década de 90 se alteram profundamente com as políticas de ampliação do consumo nas primeiras duas gestões do Governo Lula. Vemos – em Negro Drama, ou em Hoje eu sou ladrão, artigo 157 – uma periferia muito mais atravessada pelos apelos consumistas, mas também, pela possibilidade real, de aquisição, via crédito, de bens de consumo. Aquisição que recoloca tanto os termos do crime quanto das lutas por reconhecimento ou distribuição. Não é que o Holocausto Urbano acabou, mas sim que a encruzilhada entre o gatilho e a tempestade não é mais cantada desde o barraco de pau, la na Pedreira. Mas de pessoas que saíram do gueto, mas que não querem e não podem se ver livre dele, porque são negras e como tais, vistas sempre como miseráveis, criminosas ou selvagens, mesmo que provem o contrário. Não era questão de luxo, não era questão de cor, mas o momento econômico do país permitia desejar que a fartura alegrasse o sofredor. Ainda que preto e dinheiro seguissem sendo palavras rivais. Racionais mostraram como se faz, mas não sem, apontar para novos rumos e possibilidades estéticas. Algo que já estava acontecendo no Rap a partir da influencia do funk e do trap. Nossos motivos para lutar ainda são os mesmos, mas por que não fazer som para dançar? É o que vemos, por exemplo, na proposta musical do Boogie Naipe. No entanto, uns seguiram juntando dinheiro enquanto outros juntando inimigos, e os Racionais seguiram leais, não apenas aos seus referenciais éticos, políticos e estéticos, tal como Mariguela, Jorge Ben e Malcolm X, mas aos sentimentos, angustias e desejos de uma parte significativa dos moradores das periferias do Brasil. Com o sorriso de disfarce a esperar na solidão, irmãos, com ou sem fé, com ambição em um capitalismo que absorveu parte das pautas de reconhecimento como nicho de mercado em uma destopia (neo)liberal. Cores e Valores.
Geledés – Em seu artigo, você afirma que o sexismo é um dos principais temas e críticas do rap e que a objetificação da mulher e a atribuição a ela de uma gama de estereótipos vinculados à superioridade moral do masculino é uma realidade. Como entender a masculinidade a partir desse ponto e como ir além dele?
Waldemir Rosa- O sexismo, como o preconceito e a discriminação baseado no gênero e sexo, e a misoginia, o ódio e a aversão às mulheres, são uma realidade no Brasil e possuem impactos no universo do hip hop e a obras dos Racionais MC’s não estão ilesas quanto a esse aspecto. O que pontuo de forma enfática é que o rap possui virtudes que vão além de tal aspecto negativo. Em nossa sociedade a masculinidade e a branquidade são os idiomas de poder primários e ao ponderarmos sobre o tema das masculinidades na obra dos Racionais MC’s temos que compreendê-las em tal contexto. Contrapondo-se à ideia de um Brasil como uma nação harmoniosa e pacífica, o grupo explicita o racismo e a violência racial inerente à formação do Brasil. A masculinidade aqui é um elemento que compõe essa narrativa. Podemos pensar a masculinidade como o idioma de poder ao qual o grupo lança mão para se contrapor à branquidade como um signo de manifesto do poder colonial persistente. Assim, é possível pensar na masculinidade no contexto da obra do grupo para além das expressões sexistas e homofóbicas pelas quais o grupo precisa se desculpar publicamente, como parte integrante da manifestação de sua intelectualidade periférica e insurgente.
Geledés – Você avalia que a questão de gênero progrediu no rap? Se sim, de que maneira?
Waldemir – Na atualidade é bem recorrente nomeio acadêmico e nas redes sociais debater sobre a “masculinidade tóxica” e as alternativas a ela. Eu busco compreender a masculinidade como um idioma de poder e, como tal, é uma franca linguagem da opressão às mulheres e ao “não-masculino”. Por essa razão não me aproximo da concepção de que seja possível “desintoxicar” a masculinidade. Masculinidade não é apenas um conjunto de práticas, e por ser um idioma de poder ela deve se pronunciar e engajar-se na superação das iniquidades estruturais da sociedade. Na minha compreensão, esse é o desafio para o futuro do rap brasileiro de uma forma geral, e dos Racionais MC’s em particular por ser o principal grupo do gênero no Brasil.
A temática do gênero, ou melhor, da igualdade de direitos e condições no interior do rap brasileiro melhorou de forma significativa nos últimos anos. No entanto, ainda se observa uma disparidade muito grande de acesso aos elementos necessários para se produzir e divulgar entre as obras de artistas masculinos e as de artistas femininas. As mulheres possuem menos acesso aos equipamentos e estúdios necessários a gravação de suas músicas, não gozam do mesmo espaço em apresentações artísticas e quando o fazem, recebem menos pelas suas apresentações comparadas a artistas masculinos de grandeza equiparável. Pensar a masculinidade em outros termos é pensa-la como uma matriz poderosa de alteração de tal quadro de iniquidades, como um ponto de convergência da ação masculina com a reivindicação feminina por igualdade, de formulação de novos padrões de conduta e de enfrentamento a violência sexista e misógina.
Geledés – Como os Racionais trataram os horrores do neoliberalismo e com isso, de que forma contribuíram para ampliar essa discussão na sociedade brasileira?
Paulo César Ramos – O grupo uniu a experiência de vida vivida e observada na periferias aos ensinamentos de militantes do movimento negro, que apresentaram a eles questões e conceitos do pensamento social brasileiro sobre racismo, história e luta de classes.
Geledés – De que forma a tensão existente entre moradores das periferias e criminosos (como você assim descreve no livro) se apresenta no rap?
Paulo – Esta tensão aparece nas letras em formas de decisões a serem tomadas pela juventude negra, dilema próprios deste grupo social, inclusive intitulando álbuns “escolha seu caminho”; dilemas diante dos havia se havia de ser “racional”, e ante os quais o grupo procurava dar orientações.
Geledés – Como essa tensão reflete a condição dos trabalhadores das comunidades periféricas?
Paulo- Trata-se de uma fronteira existente entre ser trabalhador precário, informal e mal remunerado, realidade majoritariamente representativa de toda a periferia, na qual o informal pode ser converter em ilegal, a depender da hora, do local e da cor dos indivíduos, bem como da vontade da polícia.
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