Por Ana Ferraz. Quando o antropólogo alemão Leo Frobenius (1873-1938), há mais de 110 anos, descobriu na África cabeças de bronze que representavam os reis de Ifé – reinado que teria florescido entre os séculos XII e XV -, ficou emocionado e atônito. Tamanha era a sofisticação das esculturas, a rivalizar em beleza e perfeição com o que de melhor os gregos e romanos produziram, que o explorador teve certeza de estar diante de obras da mítica Atlântida.
Depois de mais de cem anos de reflexão sobre a arte africana, muito ainda há a ser descoberto. “Será ela uma forma de arte saída direto da religião como foi a arte grega? Serão estes objetos em sua maior parte relacionados à sua função prática?” Quem lança as perguntas é Renato Araújo da Silva, pesquisador do Museu Afro Brasil.
No recém-lançado África em Artes, escrito em parceria com Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua, o estudioso analisa 15 das cem obras do acervo do museu, a maioria adquiridas após o fim do período colonial (segunda metade do século XX), representativas de 13 povos.
O livro, resultado do prêmio Ideias Criativas, concedido pela Fundação Palmares, foi distribuído para professores de arte de escolas públicas. Seu conteúdo pode ser baixado gratuitamente a partir do portal do Museu Afro Brasil.
CartaCapital: Pode-se falar numa tradição artística africana?
Renato Araújo da Silva: Não existe uma “tradição artística africana” no sentido de haver uma tradição única identificável por seus critérios estéticos, organizados por uma escola, com seus cânones e tendências dos quais não se poderia fugir sem perder seu “lugar ao sol”, como ocorre com as “tradições artísticas das culturas europeias”.
Nunca será possível fazer uma definição única dessas tradições, uma vez que são elementos da cultura material de diferentes povos. Por exemplo, no Brasil, conhecemos bem mais a cultura dos Iorubá da Nigéria do que qualquer outro grupo. Isto é assim por terem sido um dos últimos grupos a serem tratados como escravos no País. Deste modo, sua memória está mais “fresca” em relação à de outros povos que acabaram por se entremear à própria cultura brasileira a ponto de não distinguirmos mais uma da outra.
Para ficarmos apenas com os conterrâneos dos Iorubá, só na Nigéria há mais de 400 grupos étnicos diferentes. Além disso, atualmente, são mais de 50 países que compõem a África. São cerca de 30 milhões de km², a população total atualmente supera 680 milhões de habitantes, que falam cerca de mil línguas e dialetos diferentes. Não temos, portanto, a menor ideia da diversidade deste continente e por isso quaisquer tentativas de definição destas formas de arte, sejam acadêmicas ou não, terão de reconhecer sua insuficiência e superficialidade.
Essas formas artísticas tradicionais foram e algumas ainda são produzidas com objetivos também diversos. Não foram feitas para serem dependuradas em museus (se estão nos museus é para que tenhamos dirimida parte de nossa própria curiosidade, que até certo ponto não tem nada a ver com as obras). E mais, algumas delas não foram feitas sequer para serem vistas. Eram afastadas do grupo e depositadas em locais sagrados ou enterradas. São estatuetas, máscaras, bancos, tecidos, vestimentas, objetos decorativos e do cotidiano, instrumentos musicais e religiosos, joias, entre outra infinidade de artefatos da cultura material dos povos africanos tradicionais que servem de elementos para essa, por assim dizer, “tradição artística africana”.
CC: Qual foi o critério de seleção?
RAS: Juliana Ribeiro Bevilacqua e eu estudamos as artes tradicionais da África há mais de uma década. Para compor o livro África em Artes, selecionamos uma pequena parte de obras do Museu Afro Brasil. O acervo conta com mais de cem obras e escolhemos apenas 15 com o objetivo de oferecer uma pequena introdução aos diversos tipos de produção artística, especialmente de povos com os quais temos forte ligação histórica – são grupos de seres humanos que foram trazidos para o Brasil na condição de escravos, muitos deles com talento para o trabalho na madeira, no ferro, no ouro e em muitas outras atividades manuais e intelectuais que desenvolveram no Brasil ao longo dos quase 400 anos de escravidão.
O critério de seleção buscou dar ênfase aos tipos clássicos de objetos considerados nos estudos de arte africana, incluindo também algumas obras relacionadas à arte de corte e aristocrática, objetos estes relacionados comumente ao poder real ou das chefias africanas.
CC: A maior parte dos objetos pertence ao século XX. Alguns ainda são usados pelos descendentes dos que os produziram?
RAS: Há no Museu Afro Brasil obras cujos usos e atividades ocorrem a pleno vapor, ainda que em localidades remotas e em algumas poucas aldeias que, à sua maneira, resistiram ao processo de destruição capitalista ou bem o assimilaram conduzindo suas tradições mais antigas a modelos turísticos de um lado e à reelaborações das suas formas de religiosidade para se adaptarem à onda da chamada modernização.
Cito como exemplo de permanência as máscaras de uma associação feminina iorubana da Nigéria chamada Gueledé, que sofreu adaptações incríveis. Em algumas delas os símbolos do poder feminino deram lugar a motocicletas e aviões, entre outros objetos “modernos”, a partir das décadas de 1960 e 1970. As máscaras Kanaga dos Dogon do Mali, igualmente, são exemplos de permanência, embora boa parte de suas cerimônias tenha sido comutada para espetáculos turísticos fracos, mas não menos importantes do ponto de vista dos estudos artísticos ou sociais.
Há também no Museu obras que caíram em desuso. Cito a máscara da associação ngbedo povo Ejagham da fronteira entre Nigéria e Camarões, usada em ritos funerários ou iniciáticos, ritos estes que foram tão modificados durante o processo de modernização que acabaram abolindo o uso da máscara no sentido tradicional, embora seja possível encontrar novos modelos deste tipo de máscara, outrora utilizada no contexto tradicional e hoje reelaborados apenas para suprir a demanda por souvenires.
CC: A função ritualística predomina?
RAS: Não sei dizer. Temos hoje já mais de cem anos de reflexões sobre o caráter da arte africana. Será ela uma forma de arte saída direto da religião como foi a arte grega? Serão estes objetos em sua maior parte relacionados à sua função prática ou, ao contrário, não se deveria ater às temáticas desta arte e às suas funções, mas apenas prestar atenção às suas formas plásticas, independentemente para o que estes objetos serviam ou servem? Poderíamos ao menos dizer que a sua função ritualística predomina? O que consideramos “ritual”?
Quando pergunto às crianças “o que vem a ser um ritual na nossa sociedade?”, elas jamais imaginam que formatura, aniversário, casamento, enterro, o hino nacional cantado no início de um jogo de futebol, a marcação do relógio de ponto das fábricas e dos “museus fábricas”, vernissages e aberturas, as filas das exposições-espetáculo também são formas de rituais.
Se em nossa sociedade, que tentou por todos os meios se desvincular dos modelos ritualísticos sem muito sucesso, o ritual ainda persiste, não há motivos para querermos tentar determinar a predominância de algum tipo de “ritual” em outras formas de sociabilidade se não combinarmos que estes rituais não sejam outros senão os nossos próprios, os rituais humanos – talvez até por isso, podemos supor que entre os humanos a função ritualística predomina, porque poucos passos são dados sem que algum tipo de ritual de algum modo nos influencie ou nos fundamente.
Na Grécia antiga e arcaica, fonte de onde boa parte da belíssima arte renascentista bebeu, a função ritualística certamente foi predominante. Esta não era uma questão para a Grécia arcaica, mas não deixa de ser nossa. Mesmo na era clássica grega, a representação de divindades e heróis “confundia” a arte e o mito – esta distinção é moderna. Neste mesmo sentido, ninguém discute a origem ritualística da arte teatral ou da herança religiosa nas obras de arte ocidentais.
Mas se no mundo moderno e pós-moderno relegamos as formas de arte religiosa para um campo próprio, isto tem mais a ver com os objetivos formais da tarefa modernista que com a arte mesma, já que se consegue perceber hoje que a transmutação dos ritos sociais compõe grande parte da materialidade e das temáticas dos objetos artísticos, mesmo considerando seus valores profanos e ditos “ocidentais”.
Com relação às arte africanas, embora tenham critérios próprios, incluem aspectos ritualísticos, mas também puramente estéticos. Uma joia de uso ornamental, bonecas, implementos agrícolas, pinturas rupestres, bancos ou objetos de uso cotidiano como colheres, jarros, copos e portas decorativas certamente compõem grande parte da chamada “arte africana”, mas não fazem necessariamente parte da classificação de objetos com “função ritualística”.
Essa teimosia fez parte do modelo de dominação dos povos não europeus pelos europeus, que precisaram dar ênfase e centralidade à sua cultura e ao seu próprio fazer artístico.
CC: Muitas das máscaras são usadas fora do rosto e podem incluir vestimentas.
RAS: Uma máscara tradicional africana não é apenas aquilo que os museus conseguiram preservar – geralmente a parte de madeira. Por definição, as máscaras, enquanto intermediárias entre quem mostra e o que se quer mostrar (ou elaborar), não podem se restringir nem a apenas um dos materiais dispostos nelas nem ao local no corpo onde podem ser colocadas.
De pronto, pode-se identificar inúmeros lugares em que dispor aquilo que os museus ocidentais chamam de “máscara”, ou seja, a parte preservada, geralmente de madeira. Além do rosto, pode-se colocá-la na cabeça ou acima dela, prendendo-a em outras partes do corpo, pode-se também utilizá-la como uma espécie de capacete e algumas máscaras menores podem ser colocadas apenas na testa, ou ainda serem utilizadas na altura da cintura, amarradas ou não a um cinto. Não há uma convenção geral, cada povo tem sua própria maneira de portar as máscaras e cada tipo de máscara possui meios distintos de posicionamento.
A máscara pode ser considerada um objeto “multimídia”, pois não é só a parte destinada ao rosto que deve ser chamada de máscara e sim todo o conjunto que engloba muitas vezes elementos que não duram muito tempo e por isso os museus não têm como conservá-los, caso das vestimentas usadas pelo mascarado, a pintura corporal, ornamentos feitos de fibras vegetais, adornos, a gestualidade do mascarado, etc.
CC: O que distingue este livro?
RAS: A ausência de obras em português sobre arte tradicional da África torna este pequeno livro fundamental. Segundo o British Council, apenas 5% da população brasileira fala inglês, a principal língua na qual são publicados estudos e catálogos sobre arte africana. A produção artística africana não pode ser elitista. Trata-se de um dos maiores legados que as tradições da África deixaram para toda a humanidade e está intimamente ligada ao surgimento do modernismo europeu.
É triste que iniciativas como estas ainda sejam raras no país, mas sendo sua distribuição gratuita isso passa a ser um ótimo ponto de apoio no alcance desta difusão. E as próprias obras podem ser observadas no Museu Afro Brasil (Parque Ibirapuera, Portão 10, São Paulo, de terça a domingo, das 10h00 às 17h00).
Foto: Reprodução/Carta Capital
Fonte: Carta Capital