Composto por cinco artigos, o livro Memória, prática e pesquisa para a docência, organizado pelas professoras Neide Elias e Sueli Fidalgo, faz parte do projeto Cadernos de Licenciatura em Letras. Neste volume, os autores pretendem pensar a relação entre a teoria e a prática do curso de licenciatura da graduação em Letras e problematizar questões como memória, formação e pesquisa.
Leia abaixo a apresentação do livro. O download do livro completo pode ser feito aqui.
Apresentação
Neide Elias e Sueli Fidalgo
Há uma relação entre a alegria necessária à atividade educativa e a esperança Freire, 1996, p. 72 Com o apoio do Projeto Prodocência financiado pela CAPES: Diálogos pertinentes – proposições para um projeto institucional de formação de professores da Educação Básica, os Cadernos de Licenciatura em Letras têm como objetivo pensar a relação teoria-prática das nossas licenciaturas, englobando, no presente volume, a problematização da relação memória, prática e pesquisa relativa à formação docente e ao ensino-aprendizagem de línguas e literaturas.
Aos colegas que participaram deste volume foi solicitado que privilegiassem as práticas ou memórias de ensino-aprendizagem fundamentadas teoricamente, tendo como interlocutor o aluno de Licenciatura em Letras e/ou o professor da educação básica, incluindo, portanto, exemplos práticos e outros recursos explicativos, tais como comparações, definições e usos de imagens, tabelas, entre outros.
O trabalho foi elaborado em um momento em que algumas mudanças estão sendo propostas na educação básica e no ensino superior – e nem todas parecem favorecer a prática docente ou o aluno da escola pública.
Com a iminente aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – o professor se verá (1) obrigado a se familiarizar com outra política pública, embora as existentes ainda não tenham sido apropriadas por ele, visto que não há formação para que essa apropriação ocorra, como nos mostra o texto de Fidalgo, neste volume; (2) forçado a adaptar-se aos cortes de disciplinas consideradas por alguns – talvez mais burocratas da educação – desnecessárias para a formação do aluno jovem.
Essa política acaba por ampliar ainda mais o espaço que existe entre os alunos de classes mais abastadas e os das camadas mais pobres da população, visto que os primeiros, certamente, continuarão a receber a formação com todas as disciplinas que compunham os antigos núcleos comum e diversificado. Em outras palavras, continuará sendo formado para compor os quadros acadêmicos das melhores universidades do país, enquanto os alunos com menos poder aquisitivo não aprenderão mais na escola alguns dos conteúdos que poderiam dar-lhes suporte para competir nas concorridas vagas do ensino superior ou, no mínimo, ampliar-lhes os horizontes quanto ao que podem fazer em termos profissionais.
Outra mudança importante no cenário da educação é a revogação da 11.161/2005 de oferta obrigatória da Língua Espanhola no Ensino Médio, pela lei 13.415/2017. A quem favorece essa lei se o país faz fronteira com sete países de Língua Espanhola e apenas um de Língua Inglesa? E se, em estados como São Paulo, por exemplo, as escolas públicas recebem cada vez mais alunos de países latino-americanos? A quem interessa cercear o ensino das línguas estrangeiras? Pela primeira vez na história da política linguística brasileira, temos, no texto da lei, a língua inglesa explicitamente como língua a ser ofertada, quando em documentos anteriores se fazia referência às outras línguas ou aparecia o sintagma “língua estrangeira”, sem privilegiar uma língua estrangeira específica.
Deste modo, na atual lei, perdemos de vista cada vez mais no horizonte o desejado plurilingüismo, que se vê obliterado pelo que podemos ler no parágrafo 4º: Os currículos do ensino médio incluirão, obrigatoriamente, o estudo da língua inglesa e poderão ofertar outras línguas estrangeiras, em caráter optativo, preferencialmente o espanhol, de acordo com a disponibilidade de oferta, locais e horários definidos pelos sistemas de ensino (grifos nossos) Também nos cursos de Licenciatura, algumas mudanças propostas limitam a formação do aluno. No caso de Letras, já se discute a eliminação das habilitações, tão importantes para ampliar as possibilidades de emprego do professor, principalmente se pensarmos que, muitas vezes, o professor formado presta concursos para português e para inglês – por exemplo – para poder completar a sua carga horária ou a sua matrícula. Ter formação apenas em uma das línguas o impede de assumir em uma única escola – ou em duas escolas próximas – todas as aulas de que necessita, exigindo que este viaje diversas horas entre escolas, principalmente nos grandes centros urbanos.
Em que momento o professor deverá fazer cursos de formação contínua, preparar material, pesquisar, refletir sobre a sua prática, corrigir tarefas? Além disso, muitas vezes, a escola tem carência de docentes com a habilitação em português, por exemplo, mas o professor, formado apenas em língua estrangeira, não poderá assumir as aulas de língua portuguesa. E não esqueçamos que há o “Movimento Escola sem Partido” que vem sendo muito publicizado no que se refere ao suposto combate à doutrinação, no entanto pouco debatido na sua essência.
Essa visibilidade acaba por mascarar o debate de temas vitais para a educação que deixam de ser discutidos. Ser sem partido não é o mesmo que ser sem ideologia porque qualquer que seja a posição tomada pelos professores, diretores, coordenadores, pais e, na verdade, todos os membros das escolas e da sociedade em geral, será uma posição ideológica.
Em outras palavras, acreditar que é preciso ensinar religião ou acreditar que a escola deva ser laica são posições ideológicas. São distintas, opostas até, mas são igualmente ideológicas. Retirar filosofia ou sociologia da grade curricular e propor a inclusão de uma educação mais militar no Ensino Fundamental, por exemplo, são escolhas ideológicas, não necessariamente opostas porque há filósofos e cientistas sociais com ideologias diversas.
É preciso, sem dúvida, que ocorra uma transformação na escola, mas será que esta não deveria ser “na”, “para” e, principalmente “com” a escola? Para Freire (1980, p.21) A transformação radical do sistema educacional herdado do colonizador exige um esforço interestrutural, quer dizer, um trabalho de transformação em nível da infra-estrutura e uma ação simultânea em nível de ideologia. A reorganização do modo de produção e o envolvimento crítico dos trabalhadores numa forma distinta de educação, em que mais que adestrados para produzir, sejam chamados a entender o próprio processo de trabalho. Da mesma forma pensamos a escola e a formação do educador: o professor deveria ser, como diria Giroux (1997), intelectual de sua prática.
Deveria, então, pensar a escola, pensar a educação e sua sala de aula e não tê-las pensadas para ele. A formação, no entanto, e as licenciaturas, em grande parte, ainda estão centradas no conteúdo apenas. As leis e políticas públicas ainda estão centradas em mudanças que parecem buscar mais implementar uma diferença entre o trabalho adotado pelo partido anteriormente no poder e a ideologia partido da situação do que propriamente formar o aluno e os professores pensando em dar-lhes condições de igualdade para competir para cargos com melhores salários e para as vagas nas universidades de ponta, qualquer que seja o grau (graduação ou pós).
Especificamente em relação às Licenciaturas em Letras, como descrito no primeiro Caderno, publicado em 2013, na Unifesp, essas licenciaturas surgiram como um único curso, em 2009. Hoje, são quatro: Licenciatura em Português e três Licenciaturas em que são integradas a primeira língua e línguas estrangeiras. Nossos Projetos Pedagógicos dos Cursos buscam a formação crítica no campo das Letras, voltados para a compreensão dos fenômenos da linguagem como objetos de investigação das Ciências Humanas.
Em outras palavras, trata-se de uma formação crítica voltada para o questionamento do status quo. Para articular a teoria e a prática, como propõe nossos documentos, é de vital importância o Estágio Supervisionado que, como descrito no primeiro Caderno de Licenciatura em Letras, trata-se, no caso dos cursos em questão, de um estágio implementado em parceria com escolas conveniadas, inicialmente, por meio de um projeto intitulado Universidade-Escola em parceria: a formação do professor de língua e literaturas, elaborado e implementado a partir de 2011 pela Comissão de Licenciatura em Letras. Nesta publicação, os textos de Mizan e Fidalgo, demonstram algumas das ações de parceria realizadas atualmente no âmbito das Licenciaturas do Departamento de Letras da EFLCH com essas escolas conveniadas. São trabalhos, no entanto, bastante diferentes, como diversas são as necessidades das escolas.
Enquanto Fidalgo trata da flexibilização de materiais didáticos tendo em vista a inclusão de alunos com deficiências ou necessidades educacionais específicas (NEEs) e o foco na teoria historicocultural, Mizan trabalha com as diferenças linguísticas e sua relação com as identidades e os saberes em construção, tendo por base questões geopolíticas apontadas por autores como Sousa Santos e na ecologia dos saberes. Ambos os textos têm base em projetos de extensão desenvolvidos pelas autoras com foco na formação de professores em serviço – o de Mizan enfoca a formação de professores de língua inglesa e o de Fidalgo, como já explicado, enfoca a formação de professores que tenham alunos com deficiência ou NEEs em suas salas de aula.
Nóbrega e Sousa nos propõe uma reflexão, a partir do marco teórico da análise do discurso de linha francesa e dos estudos do campo da glotopolítica, sobre ideologias linguísticas que perpassam a produção do material didático de língua espanhola. A autora nos faz uma análise diacrônica de diferentes edições de uma mesma coleção de livro didático, nela podemos observar como as ideologias linguísticas, em conjunto com as políticas linguísticas, mobilizam concepções de língua que respondem a enunciados de diferentes filiações discursivas. Discutindo o chamado aprender a aprender ou a autonomia de aprendizagem e, analisando as ações dos alunos pela sua experiência como professor de língua francesa, Maruxo Junior trata da questão do aluno como sujeito da aprendizagem e o momento em que este deixa de ter um papel mais passivo para assumir a agência de seu desenvolvimento, promovendo a constituição da sua subjetividade na língua estrangeira.
O autor relata como a utilização dos diários de classe pode se transformar de instrumento burocrático em instrumento formador, de reflexão sobre a relação teoria-prática para os alunos da licenciatura e mesmo para o professor. Lopes problematiza o conceito de multilinguismo e nos leva a indagar como este se relaciona e reforça o princípio da meritocracia. Para superar essa visão o autor nos apresenta o translinguismo, ou seja, uma perspectiva que considera a comunicação para além da diversidade e da suposta autonomia das línguas, na qual é necessário mobilizar uma complexidade de recursos para a construção de sentido. Pela análise de filmes em língua inglesa, Lopes trata da diversidade linguística, mais especificamente, do que constituiria uma abordagem translinguística e uma perspectiva multilíngue em relação aos processos de agência de falantes da língua inglesa para a construção de sentidos.
O Projeto Prodocência que, como dito anteriormente, apoiou a elaboração deste volume e de todos os demais Cadernos de Licenciaturas da Unifesp, foi, na referida instituição, coordenado pela professoras doutoras Célia Maria Benedicto Giglio e Maria Angélica Pedra Minhoto.
Os textos que compõem esse livro tratam da formação docente, do professor e do aluno (de línguas ou não) na universidade e na escola de educação básica. Tratam, mais especificamente, do ser humano- -professor-e-formador que se sabe inacabado e que espera que seus alunos também assim se considerem porque É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornam educáveis na medida em que se reconhecem inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade. (Freire, 1996, p.64)