A literatura é um território de infinitas possibilidades e nos proporciona momentos de afeto, encantamento e conhecimento, além de mergulhos em águas profundas e distantes. Podemos caminhar por terras onde nunca pisamos, passar um dia em uma aldeia indígena e até revisitar os tempos do descobrimento do nosso país para ler a história por um novo ponto de vista.

O educador indígena Daniel Munduruku tem dedicado sua trajetória pessoal escrevendo para crianças e adolescentes. Hoje, com mais de 54 livros publicados, a maioria infanto-juvenis, define suas obras como um trabalho de conscientização. Começou a escrever quando, como professor, percebeu que a história do país era sempre reproduzida nas salas de aula sob um único ponto de vista, o do colonizador, e que os indígenas sempre ficavam em um papel secundário.

“A minha intenção inicial era escrever para crianças e jovens não-indígenas, com o objetivo de trazer mais visibilidade para essa temática, para romper com os estereótipos, com os preconceitos que sempre estiveram presentes na educação escolar e também para oferecer um olhar diferenciado para essas crianças sobre quem são essas populações indígenas”, explica.

Conversamos com Daniel para falar sobre suas obras, literatura infanto-juvenil indígena e o ensino da história indígena nas escolas, estabelecido pela Lei n º11.645, de 2008, que determina a inclusão obrigatória da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” no currículo oficial da rede de ensino – a lei é complementar à Lei 10.639, de 2003, que inclui a história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares. Confira:

Qual a importância da representatividade das crianças indígenas na literatura infanto-juvenil?

Daniel Munduruku: Eu tenho dedicado parte da minha trajetória pessoal como educador para escrever para crianças e jovens. Na verdade, a minha intenção inicial era escrever para crianças e jovens não-indígenas, com o objetivo de trazer mais visibilidade para essa temática, para romper com os estereótipos, com os preconceitos que sempre estiveram presentes na educação escolar e também para oferecer um olhar diferenciado para essas crianças sobre quem são essas populações indígenas. Eu sempre optei por educar o olhar da sociedade brasileira. A literatura que eu faço é uma literatura engajada, militante, exatamente porque ela tem um objetivo. Ainda que muitas das coisas que eu faça tenham a ver com uma ficção, com um estilo meu de escrita, ela é também um trabalho de conscientização. Então para mim isso é muito claro e muito presente no meu momento de criar as coisas.

Eu pretendo ajudar as pessoas a olharem as crianças e a si mesmas e enxergarem o que há de indígena nelas. Mais do que escrever para crianças indígenas e elas se perceberem na literatura, a ideia é fazer com que as crianças não indígenas percebam o indígena que existe nelas e assim possam construir essa identidade. Esse sentimento de pertencimento é necessário e importante para que a gente crie um país mais tolerante e respeitoso e com isso a gente faça um caminho novo, um caminho de educar o olhar das pessoas, o sentimento, o pertencimento delas.

E esse foi o seu objetivo ao escrever o livro “O sinal do Pajé”, que conta a história de um curumim que está passando para a juventude e tem muitos questionamentos – não muito diferentes daqueles que jovens da cidade também se fazem, apesar de estarem em um outro contexto?

D.M: Exatamente. A ideia básica é humanizar a existência indígena. Infelizmente, ao longo da nossa história brasileira, fomos aprendendo a desprezar os indígenas, como se não tivessem alma, como se não fossem gente. É dizer que o que o jovem da cidade sente, o jovem indígena também sente.

Em situações de conflito como essas que temos vivido, o jovem indígena também tem suas dúvidas e faz os seus questionamentos, se rebela, também é revoltado com a situação. Então, o meu desejo como autor é justamente fazer essa aproximação que mostre que o que nós sentimos também tem a ver com o que os outros sentem e que isso nos aproxima efetivamente.

O livro “O sinal do Pajé” foi justamente pensado e escrito para mostrar como surge o conflito e como esse conflito vai sendo resolvido pela lógica daquele povo, uma lógica de um povo que educa suas crianças para a liberdade. Ou seja, o importante é a gente incutir nas pessoas, crianças e jovens, valores que estabeleçam neles um pertencimento, e depois deixar que eles escolham o próprio caminho. Às vezes o caminho é ir para a cidade, às vezes para a universidade, às vezes é ficar na aldeia. Aí a pessoa sabe que ela escolhe a partir de valores que ela foi herdando na sua própria cultura.

Você disse que escreve para contribuir para o debate que busca dar visibilidade para as questões indígenas. Porque você decidiu cumprir esse papel escrevendo para crianças e adolescentes?

D.M: Eu sou educador de formação e, quando comecei a exercer a minha profissão, vi que o conteúdo normal da escola acaba engessando a atuação do professor e reproduzindo a história a partir de um único ponto de vista, que é aquele que a gente aprende na universidade. A história do Brasil é contada pelo ponto de vista europeu, que é o nosso colonizador, e os indígenas sempre ficavam em um papel secundário, terciário, lá no final da fila, porque não tinha interesse e a imagem que se fazia desse personagem indígena era uma imagem desqualificada. Então, em função disso, de perceber que isso estava acontecendo, eu comecei a exercer uma função, digamos, como educador, de poder apresentar esse outro ponto de vista. E aí nasceu a minha vontade de escrever as histórias que eu ouvia quando criança e que me ajudaram a compreender o mundo onde eu vivia. Com isso eu queria fazer com que  as crianças pudessem ver essa outra perspectiva.

Eu li uma entrevista em que você estava falando sobre como foi árduo o movimento para a conquista dos direitos dos indígenas, tanto na Constituição quanto em outras legislações, como a Lei nº 11.645/2008, que tornou obrigatório o ensino dos conteúdos étnicos-raciais nas escolas. Você pode falar um pouco sobre essa lei e sobre a importância da abordagem da cultura e da leitura de literatura indígena nas instituições de ensino?

D.M: Antes da promulgação da nova Constituição Federal, em 1988, os indígenas eram considerados brasileiros de segunda categoria, a gente nem podia ter o nosso próprio nome registrado na certidão de nascimento porque diziam que era um nome exótico. A partir de 1988, o Estado brasileiro aprovou um outro olhar, dizendo que os indígenas são brasileiros e brasileiros com alguns direitos exclusivos, como a uma educação escolar e tratamento de saúde diferenciados, direito às suas terras e que, portanto, cabe ao Estado brasileiro demarcá-las… e por aí vai.

A Constituição torna os indígenas brasileiros originários e com isso passamos a ter maiores garantias de participação na sociedade. A garantia de não ser perseguido, não sofrer preconceito, atos de vandalismo, apreensões indevidas, de não ter o nosso conhecimento envergonhado, de falar a própria língua. Todos esses direitos foram uma conquista, deixo claro, não um privilégio e nem uma caridade que o Estado fez. É uma conquista da sociedade civil organizada, que lutou para que esses direitos fossem efetivamente conquistados.

A partir desses direitos, outras tantas políticas públicas foram sendo desenvolvidas, tanto na área de educação, saúde, cultura, demarcação de terras. E uma das coisas que surgiu a partir disso foi a necessidade de que o Brasil olhe para os povos indígenas com um olhar diferenciado, que não seja com o mesmo olhar de antes. Daí houve o implemento da Lei 11.645, de 2008, que veio estabelecer que todas as escolas devem colocar nos seus currículos a temática indígena, principalmente na história, arte e na literatura. Porém, a lei por si só não resolve nada, ela precisa ser, de fato, implementada e, para isso, é preciso formar professores com uma visão diferenciada, comprar materiais e dar condições para os educadores atuarem. Então, a literatura passou a ser um componente essencial para essa efetivação e os editais que o Governo Federal usou durante aqueles anos também foram bastante importantes para que as escolas pudessem receber acervos literários que pudessem ajudar os professores a executarem bem o seu trabalho. Isso deu visibilidade aos indígenas no cenário nacional e na participação na história do Brasil. A lei por si só não resolve o problema, porque ela acaba sendo mal aplicada. O Estado brasileiro fez a lei e os editais e tem de garantir que os estados, as unidades federativas, possam também exercer o seu papel e, além disso, os municípios. E se isso não acontece, se não existe essa sintonia, acaba que alguns lugares colocam a lei muito mais em prática do que outros, o que, infelizmente, tem acontecido bastante.

Assim como os direitos dos indígenas, a nova Constituição também assegurou direitos específicos para todas as crianças e adolescentes. O artigo 227 estabelece que essa população deve ser prioridade absoluta e ter seu melhor interesse garantido em todas as áreas. Você acredita que a prioridade absoluta das crianças indígenas está sendo efetivada?

D.M: Na verdade, temos que pensar sob duas perspectivas: a da lei e do Estado brasileiro, que sempre foi muito despreocupado com a questão da educação e da infância em geral; e como as sociedades indígenas educam suas crianças. O cuidado que se tem com as crianças nas cidades, nos grandes centros urbanos, normalmente é uma catástrofe, se não fosse não teríamos crianças nas ruas novamente. A própria sociedade brasileira não olha para essas crianças com toda essa equidade, cuidado, e necessidade de priorização. O Brasil infelizmente, quando olha para a criança, ainda vê apenas um objeto problema, que precisa cuidar porque é preciso e não por ser também uma forma de garantir as condições para que a própria sociedade possa, um dia, ter adultos bem educados, bem preparados para o enfrentamento dos desafios da vida. Por outro lado, se a gente pensar nas sociedades indígenas, a criança é sempre tratada com todo o cuidado, a criança é uma prioridade absoluta. Claro que cada um dos 305 povos indígenas que existem no Brasil, têm uma cultura diferenciada, um jeito próprio de cuidar dessas crianças. Não podemos generalizar tanto dizendo que  cada uma dessas sociedades faz isso da mesma maneira, como a legislação que às vezes quer que todas as crianças sejam tratadas da mesma maneira porque isso gera uma unidade nacional. As sociedades indígenas são sociedades diferenciadas, portanto, o jeito como elas lidam com essas crianças são próprios de cada cultura e não podem ser também avaliadas, julgadas a partir dos critérios com base na sociedade nacional. É claro, estamos no século 21, muitos povos indígenas estão em contato permanente com a sociedade brasileira, mas isso não os torna isentos de terem a sua própria cultura, sua própria individualidade. No Brasil, eu diria que a criança nunca foi prioridade, sempre houve uma certa luta da sociedade civil para que as crianças virassem, de fato, uma prioridade, e se criasse um centro de cuidado da nossa legislação. Para isso o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi criado e olha que é uma lei lindíssima, mas às vezes se apresenta fora da realidade. Do mesmo jeito o direito à educação: quantas crianças estão sem atendimento, sem creche, sem o ensino básico garantido, como estão as condições das escolas e de trabalho dos professores? Tudo isso leva a gente a pensar que o Brasil realmente, enquanto nação, não se preocupa com as suas crianças.

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