Literatura e “proletariado digital”

Imagem: Reprodução

Narrar situações dramáticas pressupõe o entendimento dos fatores históricos que as determinam. Um desafio e tanto para escritores que encaram de frente os problemas que nascem da reestruturação do capitalismo global. Nesta última, o mundo do trabalho é revelador de mecanismos perversos: precarização e fragmentação são elementos visíveis na vida dos trabalhadores. Presenciamos uma época em que o capital procura, pela máscara da “ pejotização “, encenar a farsa de que toda população economicamente ativa do planeta seria composta por “empreendedores “.

Uma muralha ideológica, erguida a partir de Aplicativos e serviços em geral, promove o uso de um vocabulário pronunciado pelos lábios gelados da terceirização: flexibilização, informalidade, gestão de metas e outras expressões deslavadas compõem o discurso venenoso derramado sobre o cérebro dos trabalhadores. Este novo proletariado, cuja formação e condições de vida e trabalho são estudadas atualmente por pensadores como Ursula Huws e Ricardo Antunes, necessita de formas ideológicas que apontam para a possibilidade política da sua libertação. Como a literatura, por exemplo, poderia intervir ideologicamente no contexto da servidão digital?

O presente artigo não tem, e nem poderia ter, pretensões para possíveis respostas literárias programáticas. Do ponto de vista da práxis, é toda a esquerda que busca estratégias de combate num cenário complexo, em que não existem manuais para lidar prontamente com as realidades econômicas e sociais decorrentes da terceira e quarta revoluções industriais. Não são apenas as manifestações artísticas críticas e participantes que buscam responder ás novas realidades, mas os próprios instrumentos políticos da classe trabalhadora tais como partidos, comitês e sindicatos, que por sua vez elaboram estratégias de mobilização popular.

A classe trabalhadora nunca foi homogênea. Mas enquanto parte significativa do proletariado do século XIX batia o martelo na bigorna e do proletariado do século XX apertava parafusos, hoje uma parcela que não é pequena processa informações. Como podemos ver a Mais valia assume perante a dinâmica das forças produtivas, diferentes roupagens na história do capitalismo. Mas olhando para as peculiaridades mentais do chamado proletariado digital, nota-se uma consciência estilhaçada: muitas vezes sem um espaço definido de trabalho, aonde constroem-se laços com outros trabalhadores, este proletário “veste a camisa da empresa” como se os meios de produção pertencessem a ele(um novo delírio oculta a hierarquia para que o trabalhador veja a si mesmo como um “colaborador “ e seus companheiros de trabalho como “concorrentes”). Não por acaso este proletariado sente-se atraído pela retórica fascista, pelo populismo de direita, por sentimentos pátrios, sendo que sua experiência cultural é condicionada pelas imagens bíblicas, pelo fundamentalismo religioso em que a narrativa sobrenatural bloqueia a narrativa realista. Porem, quem processa informações, quem forma sua percepção num mundo veloz de palavras e imagens condensadas, lida com símbolos : é aí que a literatura torna-se uma esperança crítica.

Se as relações de produção da era digital envolvem formas definidas de consciência social, textos em verso e prosa existem muitas vezes como possíveis curtos-circuitos: a percepção social que leva o trabalhador a enxergar os embustes do capitalismo como “naturais “, pode entrar em crise quando a palavra não serve para reproduzir valores financeiros, mas para promover o conflito com os significados estabelecidos. Assim sendo a forma dominante de compreender a realidade entra em contradição. A literatura pode ferir a falsa coesão de um mundo aonde o trabalhador é uma mera ferramenta online.

Uma obra literária combativa pode existir sob diferentes formas, em variados suportes. Tanto um romance de 500 páginas quanto um verso escrito num muro, tanto um conto salvo no celular quanto uma crônica a lápis num caderno escolar, oferecem experiências literárias. Todas elas são perfeitamente compatíveis com um tipo de proletário que lida diariamente com a palavra escrita. É fato que na fase informacional da produção, existem novas formas de controle do trabalho dentro e fora das empresas. Entretanto, o campo cognitivo de um trabalhador não pode ser totalmente controlado; ainda que seu uso nas redes sociais esteja restrito a slogans abobalhados, memes e outras manifestações reveladoras do senso comum e de piadinhas infinitas.

Entre a empresa e o lar, entre o bar e a igreja, existem possíveis esquinas do pensamento em que o sofrimento, a exaustão e a solidão do proletário digital o levam á necessidade de uma outra realidade: para a desgraça do capitalismo, a imaginação não pode ser trancafiada. É precisamente neste ponto que escritores de esquerda podem agir, fazendo circular(inclusive através dos novos meios de produção ) histórias e poemas de natureza anticapitalista.

Chamar a atenção do leitor, convida-lo a sair da ilusória linearidade da sua vida de assalariado e ler o mundo com olhos livres, envolvem sérios desafios que não podem ser subestimados. Mas quem lê não é necessariamente o cumpridor de tarefas impostas pelo capital. Quem descobre na palavra escrita expressões da luta de classes, encontra a possibilidade de rasgar a camisa da empresa e vestir-se como sujeito histórico.

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