Por Rita Coitinho, para Desacato.info.
A ascensão do neoliberalismo nas décadas de 1980/1990 trouxe à cena política, no Brasil e em grande parte do mundo, do chamado “terceiro setor”, formado por organizações da sociedade civil com o intuito de prover ações diversas, que vão do assistencialismo à militância por direitos, meio ambiente etc. As chamadas Organizações não Governamentais (ONGs) passaram a desempenhar, em muitos países, papeis que antes eram compreendidos como da alçada dos Estados.
Em alguns casos essas ONGs prestam papel importante de organização das comunidades e grupos de opinião, ampliando seu potencial de intervenção na realidade. No entanto, até em razão do papel importante que algumas dessas organizações desempenham, a face “sinistra” da nova modalidade de engajamento civil é ignorada. É o caso de ONGs e “fundações” como a Open Society Foundations, criada em 1993 pelo especulador bilionário George Soros.
Essa organização, criada com o objetivo de influenciar o processo de reorganização dos Estados que resultavam da dissolução da URSS, promove pautas diretamente vinculadas à agenda do neoliberalismo, como a desvinculação entre o Estado e as áreas sociais, que, de acordo com o receituário neoliberal, não devem mais ocupar o orçamento governamental. A propaganda ideológica gira em torno do “engajamento” da sociedade civil na solução de problemas comunitários e assistência social, propagando a ideia de que o Estado é ineficiente e, portanto, deve retirar-se dessas áreas. Dessa maneira, difunde-se a ideia de que espaços de atuação “naturalmente” vinculados aos orçamentos estatais, como a educação, seriam mais eficientes se fossem incorporadas às leis do mercado – o que implica em privatizações.
Essa organização, assim como outras, como a Fundação Ford, têm a preocupação de cooptar lideranças nos países onde atuam, oferecendo atrativos cursos de formação, nos próprios países ou no exterior. As novas lideranças apresentam-se a partir de uma agenda de temas progressistas, como as pautas identitárias, de gênero de meio ambiente, valores democráticos etc., desvinculada de suas raízes estruturais. Assim dissolvido, o discurso progressista passa a ser plenamente compatível com os preceitos do neoliberalismo, reduzindo-se a um ativismo atomizado, que não denuncia os nexos entre as opressões ou a destruição do meio ambiente e a vigência de um sistema econômico predatório e irracional.
Essa forma de atuação, plenamente adaptada às novas necessidades do sistema financeiro internacional, no entanto, não é uma novidade. Durante a Guerra Fria, o Congresso pela Liberdade Cultural, organizado pela CIA para articular uma rede de intelectuais e artistas que pudessem propagar os valores do “ocidente” capitalista contra os valores propagados dos países socialistas, inaugurou os mecanismos de “Guerra Cultural”, replicados nos dias de hoje por essas fundações “progressistas”. O livro de Frances Stonor Saunders (Quem Pagou a Conta? A CIA e a Guerra Fria da Cultura) documenta a construção desses mecanismos, baseados no recrutamento de ex-militantes de esquerda, intelectuais e artistas, os quais eram responsáveis pela edição de livros e revistas, bem como a organização de congressos de promoção dos valores ocidentais. A partir dessa articulação, a CIA e fundações ligadas à multimilionários como Rockefeller, por exemplo, lograram influenciar até na formatação de cursos universitários e currículos na América Latina e alguns países europeus.
Diante desse passado tão recente e da onipresença dessas fundações (especialmente a Soros e a fundação Ford) nas recentes campanhas de desestabilização de governos hostis à pauta do neoliberalismo – Ucrânia, Síria, Equador, Venezuela, Brasil etc., para não falar das Primaveras Árabes e outros “eventos” com simbologias e discursos semelhantes ocorridos mundo afora – é de se estranhar que tantos quadros e dirigentes da esquerda latinoamericana ainda aceitem ter seus nomes vinculados a eventos promovidos por essas organizações e, o que é mais grave, assumam a pauta política por elas promovida.
Os intelectuais e artistas que se engajaram primeiro no Congresso pela Liberdade Cultural (Franz Borkenau, Karl Jaspers, John Dewey, Ignazio Silone, James Burnham, Hugh Trevor-Roper, Arthur Schlesinger, Jr., Bertrand Russell, Ernst Reuter, Raymond Aron, Alfred Ayer, Benedetto Croce, Arthur Koestler, Richard Löwenthal, Melvin J. Lasky, Tennessee Williams and Sidney Hook) sabiam muito bem que lado defendiam e aceitaram conscientemente a tarefa. Posteriormente, outros vincularam seus nomes à produção de revistas e publicações coordenadas por aquele núcleo acreditando que apenas colaboravam com a ciência e a cultura. Cientes ou não, contribuíram para o avanço da propaganda ideológica do “ocidente” capitalista. De certa maneira, os ativistas, quadros partidários, intelectuais e artistas de hoje que aceitam vincular-se à fundação de Soros, prestam um papel semelhante, na medida em que empestam seu prestígio e influência a uma organização criada para defender os interesses da alta finança internacional, ainda que com uma roupagem “progressista”.
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[avatar user=”Rita Coitinho” size=”thumbnail” align=”left” link=”attachment” target=”_blank” /]Rita Coitinho é socióloga, doutoranda em geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz.