Lideranças do Xingu repudiam escolha de indígena “simpatizante de Bolsonaro” para comitiva do Brasil na Assembleia da ONU

Foto: Reprodução Facebook.

Por Mônica Nunes.

O Brasil não participa da Cúpula do Clima – promovida pela ONU em Nova York desde sábado até hoje – porque, segundo seu secretário-geral, António Guterres, o país não demonstrou interesse. Compreensível: não teria mesmo o que dizer já que o presidente, o chanceler, Eduardo Araújo, e o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, negam as mudanças climáticas. Mas Bolsonaro confirmou presença na Assembleia Geral da ONU, que acontecerá amanhã, 24 de setembro. Com uma novidade: incluiu uma representante indígena na comitiva do governo, a youtuber Ysani Kalapalo.

Certamente o fez para tentar amenizar a imagem negativa que tem construído desde que assumiu o governo – contra os indígenas e a favor da exploração da Amazônia. Mais ainda com o aumento dos índices de desmatamento e os incêndios florestais pelo país. No entanto, a escolha não foi feita depois de consultar as lideranças destes povos, mas, sim, porque Ysani o apoiou fortemente durante e depois das eleições.

Quem acompanhou a campanha eleitoral de Bolsonaro, certamente sabe quem é a indígena polêmica que – ao contrário dos povos do Xingu e de outras etnias pelo país – fala mal do cacique Raoni sempre que tem uma oportunidade, e elogia Bolsonaro e seu governo. Sempre enfatizando que mora no Xingu – há controvérsias -, já defendeu o presidente em temas espinhosos como os altos índices de desmatamento e as queimadas na Amazônia (chegou a dizer que eram fake news). Quando Bolsonaro foi eleito, comemorou: “agora a produção agrícola indígena vai decolar!”.

Sim, Ysani – que se autointitula “indígena do século XXI – é da ala dos indígenas que apoiam o uso de agrotóxicos, transgênicos e Ricardo Salles. Na semana passada, em seu Twitter, ela escreveu post pela recuperação do seu presidente, que foi operado. Hoje, divulgou carta de apoio dos Agricultores Indígenas do Brasil (??) à sua participação na assembleia da ONU.

Há muito tempo ela tentava conquistar um papel no governo Bolsonaro. Defendia cada tomada de decisão, não importando o assunto. Se era sobre os indígenas, tratava logo de dizer que eles querem, sim, desenvolvimento, ou que já têm muita terra demarcada. Ofendeu o presidente francês, Emmanuel Macron, quando este recebeu e defendeu o cacique Raoni, xingou a ex-candidata à vice-presidência, Manuela D’Ávila, quando esta falou de demarcação de terras indígenas, e a cantora Anita, quando esta participou de campanha pela Amazônia. Pra Ysani, ninguém está qualificado para falar de tais assuntos. Só ela.

E, agora, finalmente, a youtuber conseguiu o que tanto queria. E ainda com projeção internacional: enquanto Bolsonaro discursar, ela ficará ao lado de Ricardo Salles, Ernesto Araújo e do senador Nelson Trad e do deputado Eduardo Bolsonaro, que o presidente quer transformar em embaixador nos Estados Unidos.

Desrespeito à autonomia indígena

Assim que souberam da escolha de Bolsonaro, lideranças indígenas de 16 etnias que formam a ATIX, Associação da Terra Indígena do Xingu, no Mato Grosso, se reuniram para protestar. Escreveram e divulgaram carta de repúdio, alegando que Bolsonaro não respeitou a autonomia desses povos e, que, como não os consultou, não se sentem representados nesse encontro.

Para eles, com essa decisão, “o governo brasileiro mais uma vez demonstra desrespeito com os povos e lideranças indígenas do Xingu” e outras lideranças do país, “desrespeitando a autonomia própria das organizações dos povos indígenas de decisão e indicação de seus representantes em eventos nacionais e internacionais”.

Sobre Ysani, disseram ser “uma indígena que vem atuando, constantemente, em redes sociais com o objetivo único de ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento indígena do Brasil”.

Leia a carta, na íntegra, no final deste post.

Não é a primeira vez que a ATIX se manifesta contra Ysani. Em outubro do ano passado, no calor da campanha presidencial, a associação divulgou nota pública para negar apoio ao então candidato, dizendo que a indígena não os representava.

Sua visita a Bolsonaro, em sua casa, teve cobertura das emissoras de TV, que a identificaram como “da tribo do Xingu”. Na ocasião, ela disse que foi lá tirar satisfações, mas que Bolsonaro explicou sua forma de ver os indigenas e suas terras e que, a partir de então, ela o apoiava. Na nota, a ATIX o chamou de “anti-humano” e destacou que Ysani era “residente e domiciliada em Embu das Artes”, na Grande São Paulo, e não no Xingu, como fazia questão de dizer. Faz.

Itamaraty tenta enfraquecer direitos indígenas em reunião na ONU

Vale destacar, aqui, que, de acordo com denúncias de grupos indígenas estrangeiros, feitas na semana passada, o Itamaraty tem trabalhado para esvaziar seus direitos na Organização das Nações Unidas. “Eles acusam o governo Bolsonaro de estar tentando esvaziar a aprovação de uma resolução na ONU que trata de seus direitos. Na visão dos povos indígenas, a atitude do governo nas negociações nos últimos dias revela como o discurso adotado pela administração Bolsonaro começa a ser traduzido em posições e vetos em documentos oficiais da ONU”, como contou o jornalista Jamil Chade, em seu blog. Ele contou também que, de acordo com fontes próximas à relatora da ONU para temas indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, “existe um esforço de Brasília para que, nos bastidores, seu mandato seja enfraquecido”.

Chade revelou ainda que, em 18 de setembro, “o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) tomou a palavra na reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU para pedir que a comunidade internacional ‘monitore’ a situação no Brasil, considerada por eles como ‘grave’. ‘Os incêndios intensos nas selvas do Brasil preocupam toda nossa família planetária’, disseram. Rebatendo o discurso usado pelo governo, o grupo denunciou a iniciativa de Bolsonaro de ‘responsabilizar, sem provas, ONGs trabalhando na região’. Os grupos indígenas ainda criticam a flexibilização das regras para a mineração, o congelamento de demarcações, o corte de orçamentos e o discurso de ódio ‘que legitima o desmatamento e a violência’”.

O repúdio do Xingu

TERRITÓRIO INDÍGENA DO XINGU: CARTA DE REPÚDIO À REPRESENTAÇÃO INDÍGENA NA DELEGAÇÃO DO GOVERNO BRASILEIRO NA ONU

Nós representantes maiores dos 16 povos indígenas habitantes do Território Indígena do Xingu (Aweti, Matipu, Mehinako, Kamaiurá, Kuikuro, Kisedje, Ikpeng, Yudjá, Kawaiweté, Kalapalo, Narovuto, Waurá, Yawalapiti, Trumai, Nafukuá e Tapayuna), viemos diante da sociedade brasileira repudiar a intenção do Governo Brasileiro de incluir a indígena Ysani Kalapalo na delegação oficial que participará da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU, que será realizada na cidade de Nova Iorque no próximo dia 23 de setembro de 2019.

O governo brasileiro mais uma vez demonstra, com essa atitude, o desrespeito com os povos e lideranças indígenas renomados do Xingu e outras lideranças a nível nacional, desrespeitando a autonomia própria das organizações dos povos indígenas de decisão e indicação de seus representantes em eventos nacionais e internacionais.

O governo brasileiro ofende as lideranças indígenas do Xingu e do Brasil ao dar destaque a uma indígena que vem atuando, constantemente, em redes sociais com objetivo único de ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento indígena do Brasil.

Os 16 povos indígenas do Território Indígena do Xingu, através de seus caciques, reafirmam seu direito de autonomia de decisão por meio de seu próprio sistema de governança composto por todos os principais caciques dos povos xinguanos.

Faça como os apoios institucionais da Apufsc Sindical, Fecesc, Editora Insular, Sinergia, Sintram/SJ, Sintrasem e Sinte e apoie a realização do Quarenta você também. Para contribuições individuais, clique em https://www.catarse.me/quarenta

O governo brasileiro, não se contentando com os ataques aos povos indígenas do Brasil, agora quer legitimar sua política anti-indígena usando uma figura indígena simpatizante de suas ideologias radicais com a intenção de convencer* a comunidade internacional de sua política colonialista e etnocida.

Não aceitamos e nunca aceitaremos que o governo brasileiro indique, por conta própria, nossa representação indígena sem nos consultar através de nossas organizações e lideranças reconhecidos e respaldados por nós.

Atestam esta carta:
– Tafukuma Kalapalo / Cacique do Povo Kalapalo
– Aritana Yawalapiti / Cacique do Povo Yawalapiti
– Afukaká Kuikuro / Cacique do Povo Kuikuro
– Kotok Kamaiurá / Cacique do Povo Kamaiurá
– Atakaho Waurá / Cacique do povo Wauja
– Tirefé Nafukuá / Cacique do Povo Nafukua
– Arifira Matipu / Cacique do Povo Matipu
– Awajatu Aweti / Cacique do Povo Aweti
– Mayukuti Mehinako / Cacique do Povo Mehinako
– Kowo Trumai / Cacique do Povo Truma
– Melobo Ikpeng / Cacique do Povo Ikpeng
– Kuiussi Suya / Cacique do Povo Kisedje
– Sadeá Yudjá / Cacique do Povo Yudja
– Mairawe Kaiabi / Cacique do Povo Kawaiwete

– Associação Terra Indígena Xingu – ATIX

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