Por Ricardo Monteiro. É noite de quinta-feira (11/12) e a chuva começa a apertar na praça Roosevelt, centro de São Paulo, quando o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) engrossa a voz para falar sobre terrenos invadidos. A lista inusitada que viria a seguir, advertiu Guilherme Boulos, jamais fora alvo de incursões violentas da tropa de choque.
“Clube Pinheiros, Clube Espéria, Clube Paineiras do Morumbi, Clube do Círculo Militar. Todos em área pública invadida. Shopping Eldorado, shopping Continental, shopping Center Norte. Áreas públicas invadidas. Banco Bradesco, no Butantã e na Praça Panamericana. Mercado Extra da avenida Juscelino Kubitschek. Todos, todos em área pública invadida.”
A fala é parte de uma “aula pública sobre o direito à cidade” conduzida pelo militante junto a uma plateia de cerca de 100 pessoas encharcadas, que reunia harmonicamente grupos sem-teto do Grajaú, na zona sul, estudantes de arquitetura de Higienópolis, na região central, moradores de rua, modernosos e artistas dos teatros da região.
“Para quem as cidades são construídas? Quais os interesses econômicos e políticos que movem o seu desenvolvimento? Como as camadas populares resistem à força da grana que ergue e destrói coisas belas?”, questionava o convite do evento, que também foi transmitido ao vivo pela internet.
Pelo Facebook, quase mil pessoas confirmaram presença no encontro promovido pelo coletivo Arrua.
Função social
Os exemplos de Boulos sobre ocupações ilegais da iniciativa privada estão no relatório final da CPI das Áreas Públicas, apresentado em 2001 e esquecido por boa parte da população.
“Há dois pesos e duas medidas”, provoca o militante, questionando o que define como “discurso hipócrita” do direito à propriedade. “Mais de 730 mil m² de áreas públicas de São Paulo estão invadidas. Estão, e não pelo movimento sem-teto, mas por clubes, shopping centers e bancos”, diz. “E aí?”.
Em quase duas horas de papo, Boulos se dedicou a desmontar a suposta ilegalidade atribuída às ocupações urbanas de diferentes grupos sem-teto em todo o país.
“Nós dizemos, de forma provocativa, que as ocupações são uma maneira de garantir a Constituição. Se o Estado não é capaz de garantir, os movimentos garantem.”
Ele se refere ao Estatuto da Cidade, lei federal, cujo recado é claro: qualquer propriedade precisa cumprir sua função social – ou seja: ter uso, abrigar pessoas.
“Cada vez mais você vai encontrar casos de pessoas que ganham R$ 800 por mês e pagam R$ 600 de aluguel”, diz. “As pessoas estão sendo expulsas. Ocupar não é uma opção, é resultado da falta de opções e políticas públicas”, diz.
O Estatuto, aprovado no governo FHC para frear a especulação imobiliária, recomenda que áreas ociosas paguem IPTU mais caro com o passar dos anos. “Depois de cinco anos, se nada for feito, a área deve ser desapropriada e retomada pelo poder público”, diz Boulos, que então pergunta:
“Faz 13 anos. Desde então, quantas áreas foram desapropriadas para respeitar o que prevê o estatuto?”.
A plateia, em coro, acerta na mosca: “Nenhuma”.
Reforma urbana
“A lógica imposta pela especulação imobiliária nos rouba a cidade”, decreta o professor da praça Roosevelt.
Para garantir a moradia digna como “direito fundamental” como prevê a Constituição, ele defende, além das ocupações como “expressões de resistência”, ferramentas como o IPTU progressivo e uma nova lei do inquilinato, limitando os reajustes desenfreados de aluguel, como já acontece nos Estados Unidos e em países europeus.
“Não há que se ter leis para fortalecer o locador. Há que se ter leis para fortalecer o inquilino e desestimular a locação”.
A principal mensagem da aula de Boulos é a reforma urbana como via de mão dupla entre centro e periferia.
“São Paulo é das cidades mais segregadas do mundo”, diz, convidando a plateia a se lembrar da foto famosa de varandas luxuosas com piscinas ao lado dos barracos de madeira da favela de Paraisópolis, na zona sul de SP.
“O que está em jogo é combater e vencer essa segregação. Tem que trazer pobres para morar na região central, perto do serviço, perto de onde há infraestrutura. Há centenas de milhares de imóveis ociosos só no centro expandido. Ao mesmo tempo, tem que levar o centro à periferia, com politicas públicas, serviços, lazer, cultura, novos empregos. Nessa movimentação você resolve o conjunto dos problemas urbanos.”
O buraco para tanta mudança, diz o líder do MTST, fica lá embaixo. “O único serviço público levado hoje à periferia chama-se polícia militar.”
Festa
A aula pública foi organizada pelo coletivo Arrua, habitué das praças e ruas do centro de São Paulo.
Sua missão, descrita em sua página no Facebook, é “reinventar a cidade como espaço democrático e atuar nas redes de forma distribuída e colaborativa”.
Depois de promover durante o ano todo aulas públicas, rodas de debate e atos políticos e culturais, como os que defenderam a desmilitarização da polícia, o coletivo agora convida os paulistanos para uma festa de encerramento dos trabalhos do ano na próxima quinta-feira, no mesmo bat-local.
“Tragam os amigos, instrumentos, tragam suas cervejas e vamos celebrar a cidade”, anunciou o mestre de cerimônias da noite.
Os “alunos” da aula pública, debaixo de chuva, já cumpriam o chamado.
Assista a aula na íntegra:
https://www.youtube.com/watch?v=4PYaaHzzf7o
Foto: Reprodução/aponte.org
Fonte: A Ponte