As empresas de ônibus de Florianópolis têm operado com os contratos vencidos desde 2009. Porém, no final de setembro a Prefeitura finalmente divulgou o edital de licitação do transporte público, documento que regulamenta o processo de contratação da empresa que irá explorar o sistema de transporte coletivo da cidade. Apesar de anunciada como a grande solução para a questão da mobilidade urbana local, a licitação tem se revelado um verdadeiro problema que ameaça não dar trégua pelos próximos 20 anos. Em geral, as mudanças apresentadas pelo edital de licitação são bastante superficiais. Do ponto de vista do passageiro, elas preveem quase que exclusivamente inovações tecnológicas, como o monitoramento virtual dos ônibus e a instalação de painéis modernos nos terminais. Ou seja, o projeto que se propõe a resolver a crise de mobilidade que vem se aprofundando em Florianópolis não anuncia qualquer mudança estrutural do sistema, demonstrando o enorme desconhecimento da Prefeitura em relação aos problemas diários enfrentados pelos usuários do transporte coletivo da capital.
Além de tudo, a Prefeitura está dando as costas para a própria história. O atual modelo de transporte, implantado em 2003 e batizado como SIT (Sistema Integrado de Transporte), completou 10 anos marcados por inúmeras mobilizações populares que atacaram a forma que o governo planeja o sistema de mobilidade na cidade, sempre colocando o lucro das empresas acima de tudo. Dentre esses episódios de rebelião, passamos pelas vitoriosas “Revoltas da Catraca”, nos anos 2004 e 2005, e chegamos até as grandes manifestações que tomaram as ruas de diversas cidades brasileiras nesse ano. As “Jornadas de Junho” tiveram como elemento central a crise do transporte coletivo, que, essencialmente, é a crise do próprio sistema de concessão! Essa sequência de revoltas deixa evidente que a resolução dos graves problemas de mobilidade por que passa a cidade só pode se dar por meio da adoção de modelos verdadeiramente novos. No entanto, o edital de licitação deixa claro que o objetivo da Prefeitura Municipal de Florianópolis não é resolver os problemas de mobilidade da população. O foco é outro: dar segurança jurídica e garantir os lucros dos barões do transporte, que exploram um serviço que deveria ser público.
Além de não resolver os problemas do sistema de transporte, a licitação irá agravá-los! Vejamos alguns pontos:
O centro de tudo continua sendo a tarifa.
Ao contrário do que se devia esperar, a licitação mantém o modelo perverso de financiamento do sistema de transporte vinculado à arrecadação tarifária, jogando todos os custos do sistema para os usuários dos ônibus. O ponto 4.1 do edital diz que “as receitas necessárias para remunerar os encargos da concessão e a CONCESSIONÁRIA advirão da cobrança de TARIFA”. Esse é um problema gravíssimo porque o funcionamento do transporte coletivo não beneficia apenas quem anda de ônibus, mas sim toda sociedade, pois ele é um elemento central para o funcionamento da cidade. Se o transporte público atende a toda a sociedade, por que os custos do sistema são pagos somente pelos usuários do serviço? Aliás, se o transporte é chamado de público, assim como os sistema de saúde e de educação, porque é que temos que pagar por ele cada vez que entramos nos ônibus?
Temos que mudar urgentemente esse modelo de financiamento do transporte! Quem anda de ônibus contribui para que tenhamos menos engarrafamentos, acidentes e poluição. Por isso, o transporte coletivo deveria oferecer atrativos para que mais pessoas se utilizem dele. O que a licitação propõe é exatamente o oposto disso, cobrando tarifas elevadas dos usuários ao invés de criar fontes alternativas de financiamento para que possamos ter um transporte de qualidade e acessível à toda população, custeado pelos setores mais ricos da sociedade, liberando as catracas espalhadas pela cidade e distribuindo renda dos ricos aos mais pobres.
O Prefeito Júnior tem feito a propaganda de que seu edital irá baixar imediatamente o preço da passagem. No entanto, a CLÁUSULA XVIII da Minuta de Contrato (Anexo I do edital) afirma que “o valor da TARIFA BASE e das tarifas diferenciadas dela decorrentes será reajustado a cada 12 (doze) meses”. Ou seja, em relação ao preço da tarifa essa nova licitação nos dá apenas uma certeza: a de que todos os anos teremos novos aumentos no valor das passagens, tornando o serviço cada vez mais caro e inacessível e gerando maior insatisfação e revolta na população.
O lucro é a alma do transporte!
Ao vincular o pagamento das empresas à arrecadação tarifária (forma clássica da concessão) mantemos um outro problema: a remuneração das empresas será feita por passageiro transportado e não pelo custo real do serviço. A consequência prática dessa lógica perversa para o passageiro é a diminuição nas linhas e horários, mantendo os ônibus mais cheios para aumentar os lucros dos empresários. Cada passageiro transportado não aumenta o custo sobre a viagem: para as empresas, um ônibus transportando 40 passageiros não custa a metade de um ônibus transportando 20 passageiros, assim como um táxi transportando 4 pessoas tem exatamente o mesmo custo de um táxi levando uma única pessoa. O número de passageiros por ônibus só regula demanda e mostra a necessidade de transporte da população, mas não modifica o custo do sistema. Quando se remunera por passageiro criam-se distorções, aumentando o poder das empresas sobre o transporte e nos tornando ainda mais reféns de seus interesses. Se o custo de um ônibus transportando 40 passageiros é o mesmo de um que transporte 20 pessoas, por que as empresas vão receber muito mais no primeiro caso?
É preciso urgentemente mudar a lógica de remuneração das empresas e de financiamento do transporte público da cidade, separando os custos do sistema da cobrança da tarifa! Se não mudarmos este quadro, continuaremos presos à seguinte fórmula desastrosa: (- ônibus – trabalhadores do transporte + gente num ônibus só + tarifa cara = + lucro para os empresários).
Dentro do regime de concessão, que privatiza o transporte ao invés de entendê-lo como um direito da população, é impossível ter ônibus de qualidade e acessíveis a todos, pois isso sempre vai esbarrar nos interesses e lucros dos empresários! Mais ônibus circulando, mais conforto e qualidade para os usuários e melhores condições de trabalho para os trabalhadores do transporte significam mais gastos para a empresa dona do negócio. Neste modelo, se o transporte tiver um pouco mais de qualidade, as tarifas serão muito caras, e se as tarifas forem menores, isso vai significar um péssimo serviço prestado à população. Isso na teoria, pois sabemos que na prática o que temos são tarifas altas e um péssimo serviço, com grandes lucros para os empresários.
Um erro com duração de duas décadas.
A licitação proposta terá um prazo totalmente insensato: 20 anos. Isso significa entregar para uma empresa, ou consórcio de empresas, a gestão do transporte coletivo da cidade por um período absurdo em que elas terão toda autoridade sobre o sistema e seus interesses econômicos estarão acima dos interesses de toda população. Quem vive aqui há bastante tempo sabe que é impossível prever como será Florianópolis daqui duas décadas. Em 2033 a cidade provavelmente já terá passado por uma série de mudanças, que irão demandar outras soluções. Não nos parece muito inteligente um plano que engesse a mobilidade nos próximos 20 anos em nome do lucro de meia dúzia de empresários. Como podemos ficar reféns dos “donos do sistema de transporte” por um período tão grande de tempo? Tal medida insana deixa óbvio que a verdadeira intenção desse edital é prover segurança jurídica e econômica às empresas de ônibus.
Sua opinião não importa.
A Lei 12.587/12, chamada de Política Nacional de Mobilidade Urbana, estabelece como direito instituído ao usuário do transporte “participar do planejamento, da fiscalização e da avaliação da política local de mobilidade urbana”. Esse direito nos foi completamente negado. Todos esses absurdos do edital foram decididos sem absolutamente nenhuma forma de participação popular. Por diversas vezes o Movimento Passe Livre e outras organizações solicitaram acesso ao edital que estava sendo elaborado e exigiram a participação dos usuários de ônibus no processo. A Prefeitura nos negou este direito, entregando um projeto pronto para que a população o aceitasse de cabeça baixa. Os usuários e trabalhadores do transporte coletivo, que são os dois grupos que terão suas vidas mais afetadas por esse edital, não tiveram absolutamente nenhum direito de intervir nele.
A única audiência pública convocada pela Prefeitura praticamente não foi divulgada. Ela aconteceu às 8h da manhã de uma segunda-feira, dia e horário em que a maior parte da população trabalhadora não pode participar. A audiência foi um verdadeiro circo: o conteúdo do edital nem sequer foi publicizado, o Prefeito Jr. não deu as caras e o Secretário de Transportes permaneceu calado durante toda a audiência. Quando os microfones foram abertos às falas, os poucos usuários de ônibus e militantes de movimentos sociais que puderam comparecer à audiência questionaram a ausência de mudanças estruturais no sistema e a falta de participação popular no processo. Alguns usuários levantaram questões básicas, como a ausência de vagas suficientes para cadeirantes ou a própria desintegração do sistema com a região metropolitana, que continuará excluída do planejamento da mobilidade da região. Acuados, os representantes do governo simplesmente deram a audiência por encerrada sem responder a nenhuma das perguntas feitas pela plateia. O evento foi tão desastroso que terminou sob vaias.
Alguns dias depois, a ampla maioria da Câmara de Vereadores se recusou a aprovar um projeto que propunha a realização de uma grande audiência pública para debater o tema. A ideia era que o edital fosse apresentado nas ruas do centro da cidade e fora do horário comercial, para que as pessoas pudessem participar e dar sugestões para mudar o sistema de transporte que elas usam diariamente. Ao negar tal proposta, a maioria dos vereadores da cidade mostrou que tem medo de encarar o povo e que prefere defender ferrenhamente os interesses dos empresários ao invés dos interesses da população. Um tema de importância tão grande não pode ser decidido dentro de gabinetes fechados! É preciso abrir a caixa preta dos transportes e ampliar o sentido da democracia, para que o povo decida que modelo de transporte quer para a cidade.
Quando a população foi às ruas no meio desse ano deu um recado bastante claro: nós não queremos mais o sufoco causado por esse modelo de transporte que têm por objetivo exclusivo gerar lucro para as empresas! Queremos a Tarifa Zero! Queremos que o transporte seja entendido como um direito e exigimos uma maior participação popular nesse processo. Caso a prefeitura insista em tapar os ouvidos para os gritos que vêm das ruas, viveremos mais 20 anos de Revoltas da Catraca.
Como diriam os educadores catarinenses em estado de greve: “feijão duro e político ruim só se resolve na pressão!”.
Movimento Passe Livre Florianópolis
14 de outubro de 2013.