Meu sossego foi interrompido por um tuíte do final do mês passado advogando pelos carros do mundo ideal como um instrumento quase futurista fascista, “pura libido”. O comentário parece superficialmente o tipo de retórica pseudobatailleana que inunda a internet servindo a um propósito mais estético que político, o louvor ao prazer como resposta à castração da modernidade. Mas também não é uma ideia ousada, no mais famoso ensaio de seu Mitologias, de 1957, Barthes analisa o belíssimo Citröen DS, modelo introduzido dois anos antes, como uma revolução na mitologia automotiva, atribuindo ao carro uma humanidade que transcendia o utilitarismo comumente presente em carros.
Mas o que torna o comentário anômalo é que carros serem portais da libido é um ponto importante da persona encarnada pelo automóvel comercial mesmo desde antes das notas de Barthes, que deviam incluir o DS na categoria de automóveis relativamente populares. Se ampliarmos a cena aos modelos inalcançáveis, mesmo o DS compete com os Talbot-Lago de uso particular de 10 ou 20 anos antes, numa época que mesmo carcaças motorizadas ainda eram raras. Nos anos seguintes a beleza inerentemente sexual do carro se tornaria parte essencial da sua mitologia no imaginário americano, a banheira do pai de familia ideal conservador, trabalhador e patriótico. Christine, de Carpenter, já falava do automóvel como uma catexia fálica tanto quanto os cigarros evidenciavam ser na extensa publicidade da Camel, o cigarro de macho, que nos anúncios evidenciava fumar como um momento de solidão e autoridade masculina. Uma série mostrava solitários exploradores másculos em missões distantes, outra os retratava relaxados com os sapatos levantados em primeiro plano, e finalmente, os ensaios de Joe Camel, que se tornariam grandes culpados pela maior vigia sobre a propaganda tabagista, caricaturava no animal o bon vivant pós-Magnum P.I., o mesmo homem estadunidense republicano dos filmes de James Stewart, liberado do fardo familiar depois do Vietnã e agora aproveitando sua liberdade entre mulheres e carros esportivos.
E carros não deixaram de ser pura libido depois disso. Hoje em dia é indiscutível a monotonia emocional nos designs automotivos. As famosas caras de bravo, que na verdade possuem uma ligeira profundidade maior: é um bravo meio Sonic the Hedgehog, Chester Cheetah, uma provocação 2cool4skool de desenho da Nickelodeon nos anos 90. Mesmo os carros de luxo em que normalmente se veria uma tentativa de classe a emoção morreu, mas continua sendo estampada uma forma de libido decadente de fim de “neoliberalismo TINA”.
Imagino os carros da sociedade ideal como algo maior que libido. Carros são tão entranhais pro funcionamento social industrial quanto escolas, e se é viável nomear escolas com o nome de heróis nacionais, revolucionários, santos e padroeiros, carros também deviam participar dessa lógica. Um carro possuiria não apenas o nome mas o design, e o rosto, do padroeiro nacional, uma ideia que na conjuntura real é, ou pelo menos deveria ser, encarada com desdém: carros já são indissociáveis do comércio privado e do fetichismo mercadológico e as guardas reacionárias não deixariam seus ícones serem vendidos como itens de troca descartáveis. Mas em uma sociedade ideal em que a essencialidade do carro é mais que fetichismo comercial, e seu design mais que libido, e sim uma ferramenta cultural como tudo se tornaria na sociedade ideal, o carro santo se torna aceitável.
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Zaza, um mal crítico, mas um bom escritor.
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Libido Automotiva. Por Zaza.