Lei ‘premia’ policiais acusados de crimes com defesa gratuita

Policial aponta arma contra moradores de rua na Luz, São Paulo, em 21/5/17
Policial aponta arma contra moradores de rua na Luz, São Paulo, em 21/5/17 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Por Jeniffer Mendonça.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, instituição encarregada de fornecer atendimento jurídico gratuito a pessoas em situação de vulnerabilidade, agora ficará responsável também por fazer a defesa gratuita de policiais civis, militares e técnicos-científicos que forem acusados de crimes praticados no exercício de suas funções.

É o que determina a lei  16.786/2018, proposta por deputados da Bancada da Bala da Assembleia Legislativa e sancionada pelo governador Márcio França (PSB) na quarta-feira (4/7). Especialistas ouvidos pela Ponte afirmam que a medida pode ser considerada inconstitucional.

A lei é de autoria dos deputados estaduais Delegado Olim e Coronel Telhada, ambos do PP (Partido Progressista) e integrantes da Bancada da Bala, formada por policiais, na Assembleia Legislativa. Inicialmente, o projeto de lei do Delegado Olim, proposto em 2015, beneficiava somente policiais civis. Sua justificativa era a de que, além do direito à defesa, os agentes “no seu árduo desempenho das funções” no combate à criminalidade estavam “mais susceptíveis a um amplo espectro de ocorrências em que pode se envolver ou ser implicado”.

Durante a tramitação, uma emenda dos deputados Coronel Camilo (PSD), Coronel Telhada, Gil Lancaster (PSB) e Cezinha de Madureira (PSD) incorporou a Polícia Militar na proposta, argumentando que se trata de um “grupo social vulnerável” pelos conflitos em que podem se envolver, além de considerar que “não é razoável que [o PM] sacrifique o sustento de sua família para se defender em demandas judiciais ou extrajudiciais decorrentes de suas ações no cumprimento do dever”. Assim, caberia à Defensoria representá-los sem custos aos policiais.

No estado de São Paulo, a Defensoria foi criada em 2006 com a finalidade de dar assistência jurídica gratuita e integral a pessoas que não podem pagar por um advogado. A regra geral de atendimento é socioeconômica, voltada para pessoas que tenham renda familiar de até três salários mínimos (ou seja, até R$ 2.862,00, baseado no salário mínimo para 2018, de R$ 954), conforme deliberação de 2009 do Conselho Superior do órgão.

Em consulta ao portal de Recursos Humanos do Governo do Estado, atualizado em fevereiro de 2018, a remuneração inicial para um soldado de 2ª classe, cargo mais baixo no quadro de praças da Polícia Militar, é de R$ 2.492,06.  Já o de um investigador de 3ª classe da Polícia Civil, o salário inicial é de R$ 3.743,98. O site da PM, no entanto, aponta que a remuneração inicial de soldado de 2ª classe é de R$ 2.992,54.

A Ouvidoria-Geral da Defensoria emitiu nota pública de repúdio em relação à nova lei por considerar que a prioridade do órgão é atender a população necessitada segundo requisitos sociais e econômicos, não por categoria profissional. “A lei sancionada não observa o papel constitucional da Defensoria em relação à defesa dos cidadãos e cidadãs em situação de vulnerabilidade social, causada, em grande medida, pela própria atuação do Estado, em sua ação ou omissão”, afirma.

Prêmio aos infratores

À Ponte, a Defensoria Pública declarou por meio de nota que atende qualquer pessoa que se enquadre nos requisitos já estabelecidos, inclusive policiais. E que a principal preocupação, informada desde que o projeto estava na Alesp, é a “limitação do serviço público por falta de recursos e de pessoal”. De acordo com o site da Defensoria, há 724 defensoras e defensores em 65 unidades espalhadas por 43 cidades do Estado. “Atualmente, a maior parte das cidades do Estado ainda não conta com uma unidade da Defensoria Pública instalada”, aponta a nota. O órgão explicou que “agora estuda medidas que equalizem essa nova legislação com demais normativas e dispositivos legais (federais e estaduais) que regulamentam o serviço público prestado pela instituição”.

“O Estado deveria ser o primeiro a coibir as infrações cometidas pelos seus agentes, mas, com essa lei, premia esses infratores com uma defesa gratuita”, afirma a advogada criminalista Ana Carolina Moura Santos, membro da ABMCJ (Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica). Nesse sentido, ela afirma que a nova lei também fere o princípio de isonomia (de igualdade de todos perante a lei, segundo o artigo 5º da Constituição), ao colocar uma categoria acima do papel social da Defensoria. “Isso acaba criando um precedente para outras categorias do governo estadual poderem pleitear o mesmo”, critica.

A advogada criminalista Giovanna Migliori Semeraro afirma que a lei é inconstitucional por criar um desvio de finalidade da instituição. “Acaba criando um problema institucional muito grande porque a Defensoria fica responsável tanto pela proteção das vítimas de abusos policiais quanto pelos próprios policiais”, explica. “Amplia a rede de proteção para os policiais e dá uma mensagem em nível individual que, em caso de abuso, eles terão a proteção e a defesa do Estado, o que é complicado”, prossegue.

Para Giovanna, o conceito de “vulnerabilidade” deveria estar relacionado à condição por renda, já prevista no cumprimento de atuação da Defensoria, o que no texto da nova lei não está demarcado. “A princípio, a lei abre a interpretação de que qualquer policial terá o apoio da Defensoria. Não que os policiais não possam estar sujeitos a uma situação economicamente vulnerável, mas não é necessariamente a regra”, explica.

Essa é a mesma avaliação da ONG Conectas Direitos Humanos e pela Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, que endereçaram, na sexta-feira (6/7), uma carta ao Conselho Superior da Defensoria e à Secretaria Estadual da Casa Civil. “As entidades acreditam que transformar a assistência jurídica destinada aos necessitados em um órgão de assistência jurídica integral a policiais civis tornaria a Defensoria numa espécie de Procuradoria dos servidores públicos”, diz a carta. O documento cita decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) pela inconstitucionalidade da Defensoria atender servidores públicos no exercício da função. O caso aconteceu em 2004, a partir de uma lei de 1991 do governo do Rio Grande do Sul.

Procurada, a assessoria do governo do Estado informou por meio de nota que “o governador Márcio França não vetou porque é a favor que os policiais tenham quem os defendam na função pública que exercem, repleta de riscos”, afirmou. Sobre a questão de recursos, disse que “se houver necessidade de reforço na infraestrutura na Defensoria Pública, para esta nova tarefa, isso será providenciado”, garantiu.

A reportagem procurou o deputado Delegado Olim, mas não obteve retorno até agora. Já a assessoria de imprensa do gabinete do deputado Coronel Telhada informou que ele está de licença por questões familiares até 16/7.

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