Por Felipe Bianchi, com informações do FNDC.
Na segunda-feira (11), o Ministério das Comunicações publicou portaria que estabelece as diretrizes para o novo modelo de telecomunicações. A proposta vai de encontro ao movimento de setores conservadores pela flexibilização das condições de prestação de serviços. Na avaliação da sociedade civil, a recomendação beneficia apenas o setor privado, deixando de escanteio o interesse público.
Se o quadro no setor das telecomunicações já é ruim, tem tudo pra piorar. O acesso restrito a uma parte dos cidadãos, a desigualdade de condições, os serviços caros, a qualidade ruim e o desrespeito aos direitos dos usuários são alguns dos problemas listados pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), em nota publicada no mesmo dia em que a portaria foi lançada [leia a íntegra ao fim da matéria].
“Flexibilizar legislação é cabível se as condições da prestação do serviço são satisfatórias ou caminham, num cenário de compromisso, para melhorias acentuadas. Não é o caso das telecomunicações no Brasil”, afirma o FNDC.
Não é só no Ministério das Comunicações que o lobby das teles tem atuado. No Legislativo, tramita o PL 6789/13, cuja proposta exclui a telefonia fixa do regime público e cria requisitos mais restritivos para que um novo serviço passe a ser prestado nesta modalidade.
Renata Mielli, Secretária-Geral do FNDC e do Barão de Itararé, explica: “Alguns serviços como água, energia elétrica e, também, telecomunicações, são serviços de interesse público. Ou seja, não podem ficar simplesmente sob os critérios do mercado. Por mais que venham a ser privatizados, existem regras para a sua prestação, pois são serviços estratégicos”.
Uma empresa que fornece energia elétrica não pode cortar a energia por questões puramente comerciais, salienta Mielli. “Na mesma lógica, os serviços de telecomunicações, em acordo com a Constituição, estão sob maior prerrogativa de controle e regulação do Estado do que do mercado”.
A partir da privatização dos serviços, eles passam a ser uma concessão pública a um ente privado. Isso significa que há prazo para terminar e regras a serem seguidas. “Quando se concorre a uma concessão, tem-se consciência das regras impostas para a sua exploração”, argumenta. “Sabe-se que é preciso garantir a continuidade daquele serviço, por ser estratégico, assim como assegurar metas de qualidade, por exemplo. É uma série de obrigações”.
Telecomunicações compreendem diversos serviços, como a Internet e a telefonia fixa, esta última privatizada com a condição de prestação do serviço em regime público. Há, agora, uma forte pressão por parte da sociedade civil para que as novas tecnologias, em especial a banda larga, sejam colocadas em regime público. “Essa é a questão: a telecomunicação foi dividida em regime público e regime privado. O regime público é aquele que a concessionária do serviço precisa garantir continuidade, preços adequados para que a população tenha acesso ao serviço, metas de universalização, entre outras questões”.
O argumento das empresas de telecomunicações é que o regime público ‘engessa’ o mercado e afeta a lucratividade. “Por isso o lobby pelo fim do regime público”, frisa Mielli. “A solução, para eles, é colocar tudo em regime privado, acabando com as metas de universalização e as obrigações de modicidade tarifária, entre outras contrapartidas exigidas. Eles querem uma regulação frouxa”.
E o governo?
O lobby das teles para que o governo molde os serviços de acordo com suas preferências é enorme. “No governo Dilma Rousseff, em que se tem um cenário de crise política e econômica, pesa demais a pressão de um dos setores de maior faturamento mundial”, comenta Mielli. “O governo, desde o fim de 2015, está acelerando o processo de mudança na Lei Geral de Telecomunicações sem diálogo com a sociedade e o movimento social, desprezando as contribuições que podemos dar nessa discussão”.
A postura que o governo tem tido pode culminar em um grave retrocesso, inclusive na questão que as teles argumentam ser o objetivo dessa mudança: a ampliação do acesso à banda larga. “Se com os instrumentos de regulação existentes já não se garante a universalização, como isso ocorrerá com o fim desses instrumentos?”.
Leia, abaixo, a íntegra da nota publicada pelo FNDC, assinada, também, pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. A nota aprofunda e joga luz sobre as questões em disputa.
As telecomunicações brasileiras apresentam diversos problemas: acesso restrito a uma parte dos cidadãos, desigualdade de condições, serviços caros, qualidade ruim e desrespeito a direitos dos usuários. Mas esse cenário pode ficar ainda pior. Diversas tentativas de mudanças da legislação em vigor visam retirar obrigações das prestadoras dos serviços, em um movimento que trará impactos negativos sobretudo para o acesso à Internet de qualidade por toda a população. Se, atualmente, 50% dos domicílios brasileiros não estão conectados, essa barreira pode se tornar ainda mais difícil de superar com as propostas em debate na Câmara dos Deputados, na Anatel e no Ministério das Comunicações.
Cabe destacar que as distintas iniciativas em curso aparentemente não dialogam entre si. Em alguns pontos, chegam a ser conflitantes. Na Anatel, a proposta de manter o regime público para a prestação do serviço de telefonia fixa em pontos específicos do território nacional, convivendo com autorizações no restante do país, foi recentemente emendada com a criação de um denominado “serviço convergente”, ainda sem grandes esclarecimentos e discussões. No Ministério das Comunicações, a ideia corre no sentido do fim da separação entre regime público e privado, passando a prestação dos serviços a ser exercida por uma “autorização com mais obrigações”. Finalmente no Legislativo, na Comissão Especial que debate o PL 6789/13, a proposta exclui a telefonia fixa do regime público e cria requisitos mais restritivos para que um novo serviço passe a ser prestado nesta modalidade.
O que todas as iniciativas acima tem em comum é a retirada de obrigações das operadoras prestadores de serviço. Metas de universalização, obrigações de continuidade, reversibilidade dos bens explorados, qualidade do serviço e controle tarifário são obrigações previstas, na LGT, aos serviços considerados essenciais, prestados em regime público – atualmente, somente a telefonia fixa. Já os prestados em regime privado contam com carga regulatória reduzida, e sua oferta aos usuários depende mais da iniciativa das empresas e da concorrência de mercado – na verdade, pouco competitivo. O que as tentativas de mudança da LGT buscam é colocar a prestação de todos os serviços de telecomunicações nesta segunda situação.
Uma maior liberdade na legislação de serviços poderia até ser considerada se o cenário das telecomunicações nacionais estivesse com resultados adequados em seus principais indicadores, o que não é o caso. Senão, vejamos:
• O Brasil ocupa o 61º lugar em índice de recursos de TICs – Tecnologia da Informação e Comunicações (Relatório da União Internacional de Telecomunicações – UIT);
• Está em 68º lugar em uma cesta de tarifas (Relatório da União Internacional de Telecomunicações – UIT);
• Ocupa o 84º lugar em disponibilidade de conexões de rede (Relatório do World EconomicForum – WEF);
• Estamos em 93º lugar em média de velocidade de internet (Relatório da Consultoria Akamai);
• Balança comercial de eletroeletrônicos seguidamente em déficits anuais de cerca de 30 bilhões de dólares (Relatório da Abinee);
• Índices de qualidade não atingidos nos diversos serviços (Relatório Anatel para o ano de 2015 recém divulgado);
• Enfrentamos um abismo digital de 32 milhões de domicílios sem acesso à internet, com atendimento de 60% dos domicílios na região Sudeste contra apenas 37% na região Nordeste (Relatório TIC domicílios 2014 do CGI.br).
Tudo nisso quando a Constituição Federal de 1988 determina à União a responsabilidade sobre a prestação de serviços de telecomunicações, podendo fazê-lo diretamente ou mediante autorização, permissão e concessão. Ainda que prestados por particulares, portanto, os serviços de telecomunicações seguem sendo serviços públicos, a serem regulados e fiscalizados pelo estado.
Neste contexto, questionamos, nas propostas apresentadas:
• A destruição ou “desidratação” das garantias do regime público, criando as condições regulatórias para que praticamente toda a prestação de serviços de telecomunicações se dê conforme as características do regime privado, com menores exigências às empresas, desprezando-se a regulação atual com relação às obrigações de universalização, continuidade, qualidade e modicidade tarifária para a telefonia fixa – e que deveria ser aplicada também ao serviço de telecomunicações que suporta o acesso à Internet, considerado essencial de acordo com o Marco Civil da Internet;
• A retirada de prerrogativas do Poder Executivo para definir se um serviço deve ou não ser prestado com as garantias hoje associadas ao regime público. Na legislação atual, essa definição ocorre por Decreto, o que é compatível com as atribuições da Presidência da República para decidir sobre as políticas públicas do setor. No substitutivo em debate na Comissão Especial da LGT na Câmara, essa definição passa a ser do Congresso Nacional, com aprovação por lei, selando ainda mais o destino da prestação de todos os serviços de telecomunicações nos moldes do atual “regime privado”;
• O fim da reversibilidade dos bens (a manutenção do caráter público da infraestrutura do Sistema Telebrás), uma vez que tais redes são de interesse público e importância estratégica – em especial as redes de transporte que cruzam todo o país e se estabelecem como pontos de presença de alta capacidade nos diferentes municípios. Essa medida não significa apenas mudanças para o futuro, mas flexibiliza a reversibilidade que já atinge as redes atuais, podendo significar uma transferência de bilhões de reais para o patrimônio privado das operadoras em troca de investimentos em suas próprias redes;
• O uso do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) em serviços prestados sem as garantias hoje associadas ao regime público – aquele que, justamente, traz as metas de universalização às operadoras;
• A possibilidade de reduzir em até 95% a obrigação de contribuição das operadoras para o FUST e demais fundos de telecomunicações, que devem ser aplicados no desenvolvimento, na fiscalização e na universalização do acesso a esses serviços.
Na atual situação das telecomunicações nacionais, acreditamos ser um erro adotar tais medidas, que só servirão para acentuar ainda mais o abismo de atendimento existente entre os usuários e o favorecimento aos grandes prestadores de serviços.
Também repudiamos toda e qualquer tentativa de realização de reformas de uma legislação complexa a toque de caixa. Mudanças desta natureza trarão reflexos por diversos anos, talvez décadas, na vida dos cidadãos usuários. Sem a devida discussão, que envolva efetivamente o conjunto da sociedade civil neste debate, nenhuma alteração na Lei Geral de Telecomunicações pode ser considerada legítima.
Em diversas oportunidades, as organizações abaixo assinadas se manifestaram, inclusive apresentando propostas concretas de como melhor atender aos interesses dos usuários na prestação dos serviços de telecomunicações no país. Contudo, elas não foram consideradas.Esperamos, assim, que, antes de qualquer tomada de decisão, o Congresso Nacional, o governo federal e a Anatel promovam um debate coordenado, participativo e profundo acerca dos rumos do setor. E que este seja guiado pela garantia dos direitos da população, e não apenas pelos interesses econômicos das operadoras.
Assinam:
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação – FNDC
Central Única dos Trabalhadores – CUT
Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
Federação Nacional dos Jornalistas – Fenaj
Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão – Fitert
Conselho Federal de Psicologia – CFP
Clube de Engenharia
Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal – SJPDF
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Fonte: Barão de Itararé.