Por Marco Weissheimer.
Sul21
O debate sobre a democratização da comunicação no Brasil está vivendo um momento peculiar. A luta por um novo marco regulatório segue fundamental, mas é pesada, lenta e sofrida. Por outro lado, em certa medida, a democratização da comunicação já está ocorrendo na prática, como mobilizações de rua e ocupações estão mostrando. Estão se rompendo os monopólios da informação e a experiência da #PósTV é um exemplo disso. São dois processos que correm em paralelo, mas que em algum momento vão convergir. A avaliação é do sociólogo e jornalista Laurindo Leal Filho professor de Jornalismo da ECA-USP, autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão”.
Em entrevista ao Sul21, Laurindo Leal Filho analisa o atual estágio do debate sobre a democratização da comunicação no Brasil e o novo marco regulatório do setor, identifica a existência do que chama de Síndrome de Jango, que tornaria os governos brasileiros reféns da grande mídia comercial, e aponta as novas formas de comunicação que estão, na prática, rompendo o monopólio da informação:
“As grandes emissoras – a Globo particularmente, dada a hostilidade que começou a enfrentar na rua – tiveram que transmitir do alto dos prédios ou de helicópteros. Essa é uma visão do alto. A #PósTV dava uma visão do chão, e sem edição. É algo completamente diferente. Uma coisa é a narrativa de cima, do alto, outra é a do chão, algo que nenhuma emissora conseguiu fazer, nem a Record, que até tentou”.
Sul21: Qual sua opinião sobre o atual estágio do debate envolvendo a construção de um novo marco regulatório das comunicações no Brasil, se é que esse debate está acontecendo mesmo?
Laurindo Leal Filho: Acho que o fato novo mais recente desse debate é a campanha pela coleta de assinaturas para viabilizar uma lei de iniciativa popular, já que nem por parte do Executivo nem por parte de Legislativo há alguma movimentação neste sentido. A situação até pode mudar, mas, neste momento, só resta esta iniciativa não só como uma ação concreta, mas também como um fórum de debates. Tenho participado de alguns debates onde o mote para discutir a questão da comunicação é a coleta de assinaturas. É claro que, do ponto de vista prático, mesmo que se consigam as assinaturas, é pequena a possibilidade de sua aprovação no Congresso Nacional, dado sua atual composição.
Sul21: Na sua avaliação, a que se deve essa posição do governo federal de não querer mexer com esse tema, de não enxergá-lo como uma questão prioritária?
Laurindo Leal Filho: Acho que isso faz parte da história do país. Não é só esse governo que tem essa posição. Segundo alguns pesquisadores, nós já podemos contar, da Constituição de 88 para cá, 19 anteprojetos em vários governos, passando pelos governos Fernando Henrique, Lula e chegando até o governo Dilma. Essa proposta da lei de iniciativa popular seria o vigésimo projeto. Esses 19 que foram gestados no Executivo nem chegaram a ser discutidos pela sociedade e muito menos encaminhados ao Congresso Nacional.
Os governos são reféns da mídia no Brasil, com certeza. Uma hipótese que eu levanto é que a Síndrome de Jango, mesmo que de uma maneira inconsciente, ainda está presente no imaginário dos governantes. Como qualquer proposta de legislação é vista pela mídia como um enfrentamento, os governos têm medo que esse enfrentamento possa levar a uma tentativa de desestabilização política. Isso de uma maneira mais geral. Além disso, há interesses particulares de ministros que não querem se indispor com a mídia, que consideram que é fundamental para a carreira deles aparecer nas páginas amarelas da Veja ou dar uma entrevista ao Jornal Nacional. Esses dois fatores, um mais geral e histórico, e outro particular e pertencente à pequena política, levam a todos os governos, incluindo o atual, a não avançar nesse processo de formulação de uma lei de meios, como outros países da América Latina estão fazendo, para não falar da Europa.
Sul21: Há quem diga que uma das dificuldades para esse debate avançar é o caráter um tanto abstrato da ideia de um marco regulatório da comunicação para a maioria da população. O que essa proposta implica, afinal, para o cotidiano das pessoas? Esse possível caráter abstrato é, de fato, um problema, na sua opinião?
Laurindo Leal Filho: Quem afirma isso tem certa razão. É muito mais fácil as pessoas saírem às ruas para defender o posto de saúde, criticar a falta do médico ou do professor, do que pedir democratização da comunicação. Mas nós avançamos muito em relação ao que acontecia, por exemplo, até a metade da década de 90. Essa era uma discussão restrita aos meios acadêmicos e aos sindicatos das categorias ligadas à comunicação. Hoje, a situação é diferente. A Conferência Nacional de Comunicação teve um papel importante na disseminação dessa ideia de que a comunicação é um direito do cidadão, direito de receber uma comunicação ampla, plural e de qualidade. Isso tem mobilizado muita gente por todo o Brasil.
Há 15 dias, participei de um evento em Florianópolis, realizado por uma intersindical que não tinha nenhum sindicato de jornalistas ou radialistas. Eram uns cinco sindicatos de servidores públicos, ligados ao INSS, que estavam discutindo o marco regulatório. Trouxeram até um palestrante da Argentina para explicar o processo que está acontecendo lá. Isso mostra que setores organizados da sociedade, sindicatos e movimentos sociais estão atentos ao problema. Então, ainda que lentamente e a despeito da resistência do governo, está avançando a ideia de que a comunicação é um problema hoje para a vida de todos os cidadãos. Acho que a internet contribuiu muito para isso, porque uma parte da sociedade que tem acesso à rede começa a perceber que há outras formas de ver o mundo do que aquelas retratadas pela grande mídia. Neste ponto, estamos avançando.
Eu acredito, contudo, – e aí o exemplo da Argentina é importante – que sem uma impulsão do governo fica muito mais difícil que um movimento como este vá às ruas. Ele irá, tenho certeza que sim, mas vai demorar muito mais. Na Argentina, o governo impulsionou o movimento, que foi às ruas e sustentou a ideia da lei de meios. Aqui nós não temos isso. Por outro lado, as manifestações contra a Rede Globo que estamos assistindo agora em julho tem uma dimensão histórica. Nunca antes neste país houve manifestações tão grandes contra uma empresa de comunicação como está ocorrendo agora. Acho que isso é sintomático. Se as pessoas saem às ruas para protestar contra o que faz a Rede Globo, a tendência é que isso se amplie para a mídia como um todo. Isso ocorreu agora em várias capitais: Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza… Então, há um movimento nacional de pessoas que estão indo às ruas para exigir uma comunicação mais democrática e plural, que ofereça diversidade. Estão identificando nesta mídia, tendo a Globo como grande exemplo, o contrário disso.
Sul21: As manifestações de rua parecem estar mostrando, na prática, iniciativas que apontam para uma democratização da produção e circulação de informações. É como se, de certo modo, estivesse ocorrendo uma reforma à quente na comunicação brasileira. Os manifestantes estão fazendo a sua própria mídia.
Laurindo Leal Filho: Há um exemplo disso, que também considero um marco histórico, que é a experiência da PósTV. Os meninos foram para a rua com um 4G e transmitiram o que estava acontecendo a quente. Em Belo Horizonte, por exemplo, um desses meninos se perdeu do movimento e ficou atrás da polícia. A situação me lembrou a daqueles jornalistas que, na guerra do Iraque, viajavam embarcados junto com tropas do exército dos Estados Unidos. Esse menino não estava embarcado, mas estava atrás da polícia. Então, ele registrou cenas que a televisão de maneira alguma podia mostrar. É muito curioso que as grandes emissoras – a Globo particularmente, dada a hostilidade que começou a enfrentar na rua – tiveram que transmitir do alto dos prédios ou de helicópteros. Essa é uma visão do alto. A PósTV dava uma visão do chão, e sem edição. É algo completamente diferente. Uma coisa é a narrativa de cima, do alto, outra é a do chão, algo que nenhuma emissora conseguiu fazer, nem a Record, que até tentou. Eu virei fã da PósTV. Quando posso, assisto.
Sul21: Parece que temos um cenário um pouco paradoxal aí. De um lado, temos um governo cativo da Síndrome do Jango, como você chama; de outro lado, nas ruas, esse debate sobre a mídia e a comunicação está mais aceso do que nunca. E não se trata apenas de debate, mas de novas formas de fazer também. É como se a democratização da comunicação, em certa medida, já estivesse acontecendo na prática.
Laurindo Leal Filho: Exatamente. Acho que estamos vivendo um momento interessante. É claro que a luta pelo marco regulatório é fundamental, mas é curioso notar que, enquanto essa luta é pesada, lenta e sofrida, na prática a democratização da comunicação está ocorrendo. Estão se rompendo os monopólios da informação. Esse é um processo interessante que a gente não sabe bem onde vai desaguar. São dois processos que correm em paralelo, mas que em algum momento vão convergir. Seria ótimo, por exemplo, que a PósTV tivesse um canal aberto para mostrar o que está acontecendo, segundo a narrativa deles, que é totalmente diferente da tradicional. Mas, para isso, nós precisamos da lei de meios para garantir a concessão de um canal para esse tipo de iniciativa.
A situação no Brasil é terrível. Eu estava falando agora há pouco com o Eduardo Castro, que é diretor da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação). O governo não consegue nem abrir um espaço para o seu canal público. A TV Brasil não entra em São Paulo, com sinal aberto, pois não tem espaço no espectro, que foi todo ocupado pelas empresas comerciais. E o governo não tem vontade política de abrir esse espaço. Poder tem, pois é ele que outorga esses espaços. Eu estava em Florianópolis há alguns dias e conseguia ver a TV pública argentina, mas não a brasileira. É um processo difícil.
Além do problema do medo, que eu chamo de Síndrome de Jango, há também uma relação de amor e ódio entre nossos políticos – incluindo aí sindicalistas também – e a mídia tradicional. Odeia (os grandes veículos), mas quer aparecer (neles). E há também uma relação de subalternidade. Acham que esses comentaristas da Rede Globo, por exemplo, são pessoas importantes que, apesar de tudo o que falam, merecem grande respeito do governante. Odeiam quando são atacados, mas bajulam porque acham que é importante ter o respaldo desses meios.